10 ANOS DE FUNCIONAMENTO DO NÚCLEO DE PESQUISA SOBRE PSICOSE DA EBP-SC[1]

 

Adriana Rodrigues[2]
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Maria Teresa Wendhausen[3]
AP, Membro da EBP/AMP

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Carolina Maia Scofield[4]
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eyes
to the naked eye [I] - reginaldo cardoso

Desafiados pela época na qual vivemos em que urge um posicionamento nosso – enquanto psicanalistas – frente a um mal-estar cada vez mais insustentável (...), lançamos o convite a todos aqueles que, direta ou indiretamente, mantêm uma transferência com o tema das psicoses, para se juntarem a nós nessa empreitada de estruturação do Núcleo de Psicose. (WENDHAUSEN, 1997).

É com esta força que inicia o texto do convite para a formação do Núcleo de Pesquisa sobre Psicose na Seção Santa Catarina da Escola Brasileira de Psicanálise, no início de 2007.

O desejo surgiu durante a realização de um cartel, dissolvido pouco antes, intitulado “Tratamento da psicose"[5]. Esta marca na origem da iniciativa reverberou ao longo da existência do Núcleo, fazendo do dispositivo do cartel uma inspiração para orientar o trabalho. A proposta era criar um núcleo de pesquisa onde cada um dos participantes pudesse colocar suas questões mais singulares em relação ao tema central. Um espaço onde o desejo de saber pudesse circular, de modo a ser relançado continuamente para as questões suscitadas no andamento da pesquisa.

A primeira convocatória escrita lá em 2007 traz também outro ponto importante do método de trabalho que se manteve ao longo dos anos. Trata-se do esforço em aliar os temas escolhidos para o programa de cada ano com os temas dos Congressos da AMP, dos Encontros Americanos, Brasileiros e das Jornadas da Seção. Como efeito as pesquisas realizadas no Núcleo se inscrevem num diálogo mais amplo e sempre atual, na medida em que debatem os textos e materiais no calor dos acontecimentos, engendrando um circuito muito frutífero entre debates, produção de textos, conversações clínicas e realização de eventos.

Já num primeiro momento, a proposta atraiu colegas dedicados que puderam dar a sustentação necessária para a consolidação do trabalho naqueles primeiros anos[6]. Esse movimento permitiu a realização, em maio de 2008, de um primeiro evento, tendo como convidado Henri Kaufmanner (EBP-MG), que trabalhou o tema “Clínica da psicose: uma relação pragmática”, conferência transcrita e publicada no caderno Enodamentos[7], publicado pelo próprio Núcleo.

Desde então, os eventos com convidados de outras Seções da EBP ou Escolas da AMP foram incorporados à metodologia de trabalho. Os convites são realizados de acordo com o programa e os eixos temáticos de cada ano. Estes encontros se tornaram um campo fecundo de discussão, reavivando o desejo de trabalho e fomentando a construção da pesquisa no Núcleo.

Dois anos depois de sua fundação, o trabalho já havia trilhado um percurso importante e chegava o momento de retirar o “em formação” do nome do Núcleo. Para tanto, a coordenação elaborou um projeto no qual estabelecia as coordenadas para o seu funcionamento. O primeiro ponto destacado foi a definição do programa de pesquisa sobre a psicose ordinária como objetivo geral do trabalho. O segundo foi a instituição de colóquios bianuais, com a presença de um convidado externo. E o terceiro foi definir o conceito de pesquisa a partir do qual os trabalhos deveriam se orientar.

Tal definição se fundamentou no texto A Arte do Diagnóstico: o rouxinol de Lacan, no qual Jacques Alain Miller afirma que há duas vertentes do ensino: a acumulação e a investigação. A primeira, a acumulação, situa o ensino como repetição e fala de sua importância: “repetir o já dito e acumulado pelos que vieram antes de nós”. A outra vertente é a investigação. Para o autor, investigação é pesquisa e, em suas palavras: “pesquisa do novo e aqui estamos no regime da surpresa, onde não há segurança”. E segue: “na acumulação temos segurança, na pesquisa não. Esta somente pode ser tratada como nas ciências duras, organizando lugares e produzindo encontros, lugares onde pessoas e ideias se cruzem e se manifestem ao acaso. Isto é tão importante como tudo aquilo que diz respeito ao sistemático” (MILLER, 2003, p. 15-16).

Na perspectiva de criar espaços, lugares e produzir encontros, foi realizado o primeiro colóquio, ainda em 2009, com o tema “Psicanálise e Saúde Mental: qual o encontro possível?”. Na época, parte dos integrantes do núcleo atuava nos serviços de saúde mental da Grande Florianópolis. Portanto, a fim de ajudar a pensar a presença do psicanalista em diversos contextos de tratamento e numa articulação da psicanálise com o campo da saúde mental e da cidade, o convidado foi Guillermo Belaga (EOL) com a conferência: "O que as psicoses ensinam para a lógica das curas?”[8].

No mesmo ano, o Núcleo realizou outro evento com a presença de Gilberto Rudeck da Fonseca (EBP-PR), que falou sobre “Uso do corpo e sintoma”, pontuando um dos temas que viria a ser muito caro às pesquisas desde então realizadas.

Dois anos depois, em 2011, realizou-se o II Colóquio, cujo tema “Perspectivas atuais da clínica da psicose” ampliaria o horizonte de trabalho sobre o tratamento das psicoses na contemporaneidade. Nieves Soria Dafunchio (EOL), trouxe sua contribuição com a conferência intitulada “As Psicoses Veladas: diagnóstico”.

Movidos pelos desafios impostos pelos casos de difícil diagnóstico, em 2012 passamos ao estudo do seminário “Loucuras Discretas”, proferido por Graciela Brodsky (EOL) em São Paulo, no ano de 2010. Rômulo Ferreira da Silva (EBP-SP) dialogou muito com ela nos debates realizados ao longo deste seminário, o que nos levou a convidá-lo para o III Colóquio do Núcleo, realizado em 2013, a partir da pergunta-tema “As psicoses mudaram?”.

O debate nos permitiu concluir que as psicoses não se apresentam mais e apenas do modo como se apresentavam anteriormente, caracterizando o que alguns autores têm chamado de “clínica dos ínfimos detalhes”. O trabalho fez reiterar o desejo de pesquisa sobre o tema, com uma infinidade de questões emergindo entre os participantes do Núcleo.

Sendo assim, em 2014, decidiu-se pelo estudo do livro A psicose ordinária, na época recém lançado em Português. Trabalhamos em torno dos eixos neodesencademento, neoconversão e neotransferência.

Neste mesmo ano, tendo no horizonte as loucuras discretas, inauguramos outra rubrica de trabalho que denominamos “O que nos ensinam os artistas?”. Nossa primeira convidada foi Nohemi Brown (EBP-PR), no final de 2014, com uma conferência a partir de seu trabalho de doutorado sobre Salvador Dali.

O tema da neoconversão mobilizou entre os participantes do núcleo muitas questões em torno do diagnóstico a partir dos fenômenos de corpo. Em consequência, estabelecemos como linha central de investigação em 2015 a problemática do corpo nas psicoses. O foco recaiu sobre os debates em torno do imaginário e do corpo no segundo ensino de Lacan, buscando mais especificamente pensar o corpo na psicose a partir do conceito de “acontecimento de corpo”[9].

Nos meses que se seguiram, os debates foram permeados pelo conceito da “prática entre vários”, uma modalidade de psicanálise aplicada desenvolvida como possibilidade de trabalhar com as psicoses dentro das instituições ligadas ao Campo Freudiano. O tema nos chegou a partir da exibição do documentário “A céu aberto”, realizado dentro do Courtil, uma das instituições belgas que trabalha com esta orientação. Chamou-nos a atenção o “vivo” da psicanálise naqueles espaços tão distantes do divã, nos instigando a pensar o que poderíamos apreender desta experiência em relação ao tratamento das psicoses.

Ao longo dessas discussões começamos a perceber que a “prática entre vários” poderia nos ensinar também sobre o funcionamento dos “vários” dentro do próprio Núcleo, como espaço de pesquisa e formação, numa produção compartilhada no coletivo, viabilizada por uma transferência de trabalho, mas sustentada “um a um”, na primeira pessoa do singular, a partir do que causa o desejo em cada um entre os vários.

Essa perspectiva dialogou diretamente com a orientação presente desde a fundação do Núcleo, ou seja, com o esforço em constituí-lo numa lógica inspirada no funcionamento do cartel, no intuito de que cada um pudesse se implicar a partir do seu desejo. Decisão acompanhada do cuidado para que não se ocupasse o lugar de mestria, permitindo a permanência de um furo em torno do qual pudesse circular o desejo de saber e se articulassem as produções de cada um dos integrantes do Núcleo. Desde então muitos trabalhos foram sendo propostos espontaneamente pelos participantes, culminando em distintas atividades, num curto período de tempo.

A partir de então, o entendimento foi de que o percurso realizado já nos permitia abrir uma nova frente de trabalho, aliando a discussão teórica com a construção, apresentação e debate dos casos clínicos trazidos pelos próprios participantes do Núcleo. Esta foi a novidade instaurada a partir de 2016, com a proposta de dedicar todo um semestre para a conversação clínica. O efeito de vivacidade na articulação entre teoria e prática fez com que estabelecêssemos o trabalho com os casos clínicos como parte do programa anual do Núcleo desde então.

Dialogando com o tema do X Congresso do AMP, “O corpo falante: o inconsciente no século XXI”, os casos clínicos apresentados no ano de 2016 buscaram evidenciar o que os pacientes apresentavam como “a ideia de si como corpo”, considerando que a relação que um sujeito tem com o corpo próprio pode nos orientar no diagnóstico dos chamados casos difíceis. Os enlaces, desenlaces e amarrações encontradas por cada sujeito para se sustentar no mundo colocam em evidência o debate sobre a função do analista nos casos em que esta amarração não se dá pela via do Nome-do-Pai. Os trabalhos foram inspirados no diálogo realizado com Ram Mandil (EBP-MG), nosso convidado para uma conferência sobre o imaginário e o corpo a partir da obra de James Joyce, atividade inscrita na rubrica “O que nos ensinam os artistas?”, que abriu os trabalhos do Núcleo em 2016.

No ano de 2017, organizamos o programa a partir da frase de Lacan sobre “a desordem provocada na junção mais íntima do sentimento de vida do sujeito” (Lacan, 1998, p. 565). Deste modo, os casos clínicos trazidos pelas colegas no segundo semestre se construíram dialogando com esta questão e com o tema do Congresso da AMP, “As psicoses ordinárias e as outras: sob transferência”, realizado em abril de 2018. Dos cinco casos que acolhemos, três foram apresentados também em outras atividades, levando o debate para além do Núcleo.

Os dez anos de atividades do Núcleo de Pesquisa sobre Psicoses foram comemorados pela Seção Santa Catarina com uma atividade especial realizada em novembro de 2017. Nossa convidada foi Elisa Alvarenga (EBP-MG), que nos presenteou com a conferência intitulada “Sobre o manejo da transferência na psicose”[10].

Esses primeiros dez anos nos permitem uma constatação: trata-se de um trabalho delicado que, entre outras coisas, implica na necessidade de suportar a evidência de um furo no saber. Mas sabemos que isto é justamente o que permite fazer com que a pesquisa siga, assim como a psicanálise, viva e se reinventando. Pois acreditamos, com Miller, que investigação é pesquisa do novo e aqui estamos no regime da surpresa, onde não há segurança (Miller, 2006, p.16). Não temos segurança, é fato. Mas, em compensação, não nos falta desejo em reiterar cotidianamente o convite feito por Lacan de não recuar diante da psicose. E que venham os próximos 10 anos!


NOTAS

[1] Texto adaptado da fala de abertura da Atividade de comemoração dos 10 anos do Núcleo de Pesquisa sobre Psicose

[2] Adriana Rodrigues é analista praticante, doutora em Psicologia (UFSC) e coordenadora do Núcleo de Pesquisa sobre Psicose (EBP-SC)

[3] Maria Teresa Wendhausen é Analista Praticante (AP), Membro da EBP-AMP e compõe a equipe de coordenação do Núcleo de Pesquisa sobre Psicose (EBP-SC)

[4] Carolina Maia Scofield é analista praticante e compõe a equipe de coordenação do Núcleo de Pesquisa sobre Psicose (EBP-SC)

[5] Maria Teresa Wendhausen, Soraya Valerim e Cleudes Slongo participaram deste cartel e da formação inicial do Núcleo.

[6] Vieram com Maria Teresa, Cleudes e Soraya, os colegas Jeronimo Ayala, Mariana Niemeyer, Romulo Vargas, Noris Stone, Adriana Sapino e Armi Maria Cardoso.

[7] Uma versão atualizada pelo próprio autor está publicada neste número 10 da Arteira.

[8] Originalmente publicada no caderno intitulado Enodamentos. Uma versão atualizada da tradução do original em espanhol está publicada neste mesmo número 10 da Arteira, sob o título “O que as psicoses ensinam para a lógica dos tratamentos?”.

[9] Cabe ressaltar que no ano de 2015, foi realizada uma permutação na coordenação, repassada para Adriana Rodrigues, que, na época, já fazia parte da equipe de coordenação. Maria Teresa Wendhausen, permaneceu na equipe e Carolina Maia Scofield integrou-se a ela.

[10] Texto publicado neste número da Revista Arteira.

REFERÊNCIAS

LACAN, Jacques. De uma questão preliminar a todo o tratamento possível da psicose (1957-58). In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

MILLER, Jacques Alain. A arte do diagnóstico: o rouxinol de Lacan. Revista Curinga, n.23, p. 15-33. Nov/2006.

WENDHAUSEN, Maria Teresa. Convite para a formação do Núcleo de Pesquisa sobre Psicose. Boletim EBP-SC. Junho/2007.

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