SUPERVISÃO E ATO ANALÍTICO

little sun 1969
Little Sun, 1969 - Hannah Höch 

Sandra da Silveira[i]
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São múltiplas as motivações que podem levar um praticante de psicanálise à supervisão.  Contudo, a despeito daquilo que a motiva, a demanda de supervisão é sempre marcada por uma pergunta do tipo: “cadê o psicanalista?”, conforme assinala Barros (2013, p 76). Assim, situar o analista parece ser o eixo em torno do qual giram tarefas essenciais à supervisão, como destaca o autor. Logo, de uma supervisão se espera, como efeito, que haja um analista.

Brousse, citando Serge Cottet, destaca duas vertentes da supervisão, “Uma é a gnóstica, coordenada e simbólica, trabalho de conversação e de debate sobre um caso”(BROUSSE, 2013, p. 11). Neste sentido a supervisão pode servir para a construção do caso, esclarecer um diagnóstico, redirecionar um tratamento, pensar o manejo da transferência. Nesta vertente trata-se da transmissão de um saber e por isto ela está mais do lado do discurso do mestre. A outra vertente, esclarece a autora, diz respeito “ao ponto de cegueira do analista que, preso na transferência, pode ter um ponto obscuro, resto de sua posição de gozo como sujeito no manejo de seu ser na análise” (p.11). Assim, trata-se de isolar o analista daquilo que impede seu ato ou o faz recuar diante dele.

Uma outra maneira de considerar estas diferentes vertentes consiste em reservar para a primeira o nome de “supervisão” e para a segunda a designação de “controle”, conforme esclarece Silva (2017). De acordo com o autor, supervisão e controle estão sempre em jogo quando, a partir da psicanálise, se expõe um caso para alguém com quem se tem transferência. Com relação ao termo “controle”, ele

... toca o que há de mais real no campo da prática psicanalítica. Vai em direção ao inconsciente real. O que está em questão é o desejo do analista e o ato analítico. Tudo o que é impossível ensinar […] Quando se está mais do lado do controle, algo do não saber paira no ar. Tudo vai depender da próxima sessão do paciente para que algum avanço ocorra. Nada de saber explícito. Trata-se de uma convocação à posição de que nada se sabe sobre o inconsciente do paciente e que provocar mudanças em relação ao gozo não tem nada a ver com o saber possível de se encontrar nos textos (p. 52).

Contudo, no Brasil, a despeito destas distinções, é mais comum o uso do termo supervisão.

Quanto à minha experiência, parece-se me que na maioria das vezes em que solicitei supervisão, o que me motivou relaciona-se à primeira vertente, ou seja, uma busca de saber no Outro no sentido de melhor conduzir um tratamento. Não raramente esta busca se deu impelida por algum tipo de urgência, seja algo que envolvesse algum tipo de risco para o analisando, ou a percepção de que algo não ía bem no tratamento e havia o risco de ele abandoná-lo.

Porém, somente durante a tarefa de preparar um texto a propósito de uma mesa de trabalho sobre supervisão na Escola Brasileira de Psicanálise da Seção Santa Catarina no ano de 2018, me dei conta de que nem sempre este foi o caso. Recordei-me de uma supervisão em especial em que algo diferente e muito importante para a minha formação se deu. Algo que marcou um antes e um depois, pois o que encontrei foi algo muito diferente daquilo que supus ter ido buscar.

O caso levado à supervisão era o de uma garota de 15 anos. Ela chegou ao tratamento trazida por seus familiares que estavam muito preocupados com as mutilações que ela provocava em seu corpo e com o risco de suicídio, algo que se manteve presente durante o tratamento por muito tempo. Logo de início ficou claro que realizar cortes sobre o próprio corpo era a única maneira que ela havia encontrado até então de se aliviar de um gozo mortífero. A possibilidade de cometer suicídio se apresentava como a saída aparentemente mais fácil de se livrar de um sofrimento que a fazia sentir-se como morta, mergulhada numa angústia atroz. A dificuldade em falar era patente. Era recorrente ela dizer que não tinha nada a falar ou que não sabia o que dizer. As sessões transcorriam arrastadas, marcadas no início sempre por um silêncio difícil para mim de suportar, pois sempre tinha a sensação de que nada sairia dali, a não ser que eu a ajudasse a falar, o que fiz durante um bom tempo. Em suas falas esparsas o relato de que todos demandavam que ela falasse era recorrente. Sem perceber o que se passava na transferência, eu era mais uma a demandar que ela falasse. Era-me muito difícil pensar em fazer qualquer tipo de corte, considerando o alto grau de angústia e tristeza em que ela comumente estava mergulhada e o risco de suicídio. Evidentemente, hoje posso vê-lo, algo do meu fantasma operava aí. Eu temia que um corte fosse algo muito arriscado e a lançasse ainda mais num desamparo que ela não poderia suportar. E nem eu. Assim, durante um bom tempo o tratamento transcorreu desta forma, ela sem vontade de falar e eu trabalhando no sentido de que pudesse falar algo sobre si. Até que em uma sessão, algo diferente ocorreu. Em mim, de início uma angústia, que hoje posso ver, sinalizava algo de um real em jogo naquele tratamento. E também uma certeza: aquele silêncio não poderia mais continuar. Não permiti que ele se instalasse e fui logo lhe perguntando: sobre o que você gostaria de falar hoje? A resposta, a mesma de quase sempre: “eu não sei, eu não tenho nada para falar”. Mas dessa vez, sem pensar, apenas movida por uma certeza, a de que aquilo precisava cessar, corto a sessão. Levanto-me, abro a porta e lhe digo: “não tem problema, se você não tem nada pra falar hoje, pode ir embora, volte na semana que vem, quem sabe na próxima você tenha algo a dizer”. Ela, surpresa e completamente desconcertada, nada diz e vai embora. Da minha parte, a angústia, pensava comigo: “o que fui fazer? Mandei esta menina embora e agora ela ficará sem tratamento”. Ou seja, lancei o Outro ainda mais ao desamparo. Imediatamente solicito uma supervisão. Queria encontrar no Outro um saber que me ajudasse a reparar aquele desatino, pois temia que ela não retornasse mais, e caso voltasse, eu precisava saber como conduzi-lo dali em diante.

Na supervisão, outra surpresa. A supervisora me indicava o contrário, que ali onde eu pensara que errara, eu provavelmente acertara, pois com meu ato eu incidira sobre um gozo que era necessário fazer cessar para que o tratamento pudesse de fato ocorrer, o que com efeito se verificou depois. Esta intervenção, sob a forma de um ato analítico, provocara uma reviravolta no tratamento. Já não se tratava mais de se furtar à demanda do Outro para que falasse, mas de ter que se haver com seu próprio desejo de falar e, em última instância, de se tratar. E como se verificou depois, este desejo existia. Ela começou a falar desde uma outra posição. Além disto, avalio que ter criado a possibilidade de que algo de seu desejo se apresentasse também foi fundamental no sentido de que a angústia começasse a ceder, assim como o sentimento de mortificação.

Ram Mandil, destaca que “A supervisão pode ser um local privilegiado para um tratamento do horror ao ato analítico, que muitas vezes gera um efeito de inibição” (MANDIL, 2013, p. 39). Segundo o autor, esse horror está associado à ausência de garantia, na medida em que o ato se desprende dos enquadres da fantasia e por isso não pode se salvaguardar aí. A partir desta perspectiva diz-se que no ato, o analista não se autoriza senão de si mesmo, isto é, não se faz representar por nenhum significante, por nenhuma identificação. Deste modo, o analista enquanto sujeito desaparece. Ele atua através de um “eu não penso”. Logo, há um furo do saber no lugar do ato analítico o que faz com que ele seja tão incalculável quanto incontrolável. Por isso diz-se que o ato é acéfalo, ou seja, o sujeito não é agente de seu ato, ele é agido e neste sentido ele é sempre ultrapassado por ele. Assim, conforme nos lembra Antônio Quinet “Não existe, portanto, subjetivação do ato a não ser a posteriori: só depois o analista poderá interrogar-se sobre o que o fez agir e dar a razão desse ato em uma construção” (QUINET, 2012, p. 105).

Ram Mandil ressalta ainda que diante do horror ao ato, pode-se recorrer à supervisão na  busca pelo alívio, incluindo o de uma desculpabilização. Nesta via, há o risco de tomar a supervisão como um modo de restabelecer o equilíbrio do que vacilou na fantasia. Desta forma, a angústia que leva à busca de supervisão pode ser considerada uma defesa contra o ato analítico. Ao que tudo indica, este parece ter sido o meu caso no exemplo trazido. Porém, por intermédio da supervisão e também do trabalho de análise foi possível sustentar aí, neste caso, o meu ato e não recuar diante dele.


Referências

BARROS, Romildo Rêgo. Sobre a supervisão. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise,  São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, n. 73, p. 73-77, 2013.

BROUSSE, Marie-Hélène. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, núm. 73, p. 11-12, 2013. Entrevista concedida à revista.

MANDIL, Ram. Supervisão em análise… e depois. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, n. 73, p. 35-40, 2013.

QUINET, Antônio. As 4 + 1 condições da análise. 12a reimpressão. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

SILVA, Rômulo Ferreira. Supervisão e controle: efeitos de formação. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise,  São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, n. 79, p. 45-52, 2017.

Resumo: O texto aborda as duas vertentes da supervisão. Uma é a gnóstica, coordenada e simbólica, trabalho de conversação e de debate sobre um caso. Nesta perspectiva  trata-se mais da  transmissão de um saber.  A outra vertente, para a qual se utiliza também o termo “controle”, vai em direção ao inconsciente real e o que está em questão é o desejo do analista e o ato analítico, ou seja, aquilo que é impossível ensinar.  Nesta dimensão trata-se de isolar o analista daquilo que impede seu ato ou o faz recuar diante dele. O artigo traz um relato de experiência em supervisão em que ilustra-se como pode operar a segunda vertente e quais podem ser seus efeitos na formação do analista.


Palavras chave: Supervisão. Controle. Ato analítico.



[i]  Analista praticante, compõe a equipe de coordenação do Núcleo de Pesquisa sobre Psicanálise e Cultura. Professora convidada do Curso de Psicanálise de Orientação Lacaniana do Instituto Clinico de Psicanálise de Orientação Lacaniana de Santa Catarina em 2018. Participante das atividades da EBP-SC e do ICPOL. Mestre em Psicologia (UFSC). 

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