SUBMISSÃO, SUBVERSÃO

strauss 1965
Hannah Höch - Strauss,1965

 

 

Fred Stapazzoli[i]
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De certa maneira, o tema da XIII Jornada da Seção Santa Catarina da Escola Brasileira de Psicanálise, Submissão, subversão e a heresia do sinthoma, coloca em relevo as descontinuidades pelas quais nós nos deparamos ao acompanharmos o ensino de Lacan.

Se, por um lado, conforme pudemos ler em Desuniversos[1], acompanhamos a escansão dos significantes colocados em jogo no título desta Jornada, por outro, e ao mesmo tempo, temos uma visão de conjunto – outra forma de falar das descontinuidades produzidas por Lacan ao advogar a causa analítica. Um movimento do universal ao singular – inclusive em termos conceituais.

Das inúmeras entradas possíveis em sua obra, tomo de empréstimo o título de um artigo de Lucíola Freitas de Macêdo, O fracasso do sentido em psicanálise, já que a psicanálise prospera aí, ao fazer fracassar o sentido. (MACÊDO, 2012, p. 2). Ao se falar em fracasso do sentido na orientação lacaniana, ao invés de se recorrer à mística, a um calar-se diante do inefável tal qual Wittgenstein, se vai aos confins do significante, desatrelado do sentido e em direção à letra, que revela a opacidade do gozo em sua vertente real. Eis a heresia de Lacan, que corresponde ao tempo assemântico da análise, ao momento do ultrapasse. (MILLER, 2010-2011, p. 126).

Mas a prática herética revelada ao se atingir o sinthoma não foi possível sem a prática dita ortodoxa, aquela não desvinculada do sentido. Uma heresia não se faz às expensas da ortodoxia. “O sinthoma é definido como um acontecimento de corpo que evidentemente dá lugar ao sentido. A partir desse acontecimento uma semântica dos sintomas se desenvolve, mas, na raiz dessa semântica há um puro acontecimento de corpo.” (MILLER, 2010-2011, p. 88). Na leitura que Lucíola faz desse fragmento, um advérbio é aí colocado: eventualmente. Eventualmente o sinthoma convocará sentidos porque há diferenças entre neurose e psicose. Enquanto o suporte do “normal”, na prática ortodoxa, é o pai (MILLER, 2010-2011, p. 128), a prática herética possibilita pensar em outras soluções frente ao real, já que nem tudo do gozo é passível de negativar.

Eis que somos levados a pensar, então, em um dos descaminhos pelos quais Lacan, em sua prática herética, subverteu a própria psicanálise, não sem antes uma submissão, ao seguir os rastros de Freud, no momento em que toca em uma de suas pedras angulares. Não falo de outra coisa neste momento a não ser do Pai, de “importância nodal na Psicanálise, tanto na clínica freudiana com o Édipo como no ensino de Lacan ao longo de suas várias perspectivas. Passar do Nome-do-Pai para Os Nomes do Pai começa um caminho que cada vez mais acaba com a figura de um Pai-Deus”. (HORNE, 2018, p. 321). E à beira do último, do ultimíssimo ensino, ao avançar no campo do feminino, nas fórmulas da sexuação, nos deparamos com um gozo que não responde ao Nome-do-Pai e que “se manifesta claramente no [falasser] que escolheu não passar pelo gozo fálico” (MILLER, 2010-2011, p. 81), seja homem ou mulher. Aqui já não nos deparamos com a mãe da metáfora, com o Desejo da Mãe, mas A/ mulher, não-toda.

Talvez esse percurso me tenha sido necessário porque, para alcançar a heresia lacaniana, o sinthoma, ao mesmo tempo temos implicadas a submissão e a subversão, pois estes descaminhos nos levam a um prescindir do Nome-do-Pai com a condição de servir-se dele do alto de um seminário 23. É um longo percurso. E pelo viés da submissão e da subversão que talvez podemos ler Taxi Driver, de Martin Scorsese, e Rosinha, de Gui Campos. Nestes filmes, ao pensarmos em Travis ou Assis, respectivamente os personagens principais de referidos filmes, de saída já poderíamos pensar em um servir-se do Pai, uma submissão ao Pai no sentido da apropriação “dele nas suas próprias constituições como falasseres” (GOROSTIZA, 2013 apud HORNE, 2018, p. 320), assim como poderíamos mencionar não se tratar de alguma psicose, como em Léolo.[2]

Em Taxi Driver, Travis, um homem solitário de 26 anos, ex-combatente de guerra, no trabalho busca um phármakon para sua insônia, até então remediada de sala em sala dos cinemas pornô nova-iorquinos. É de seu táxi, gozando de seus pensamentos, que imagina o dia em que cairá uma verdadeira chuva que limpará a perversão e a corrupção da metrópole. O senso de justiça deste sujeito será levado às últimas consequências e esta chuva cairá, mas da bala de seu revólver em punho! Franca artilharia de um franco delírio, como vemos na passagem ao ato do personagem que De Niro dá vida e parece sugerir uma neurose obsessiva. Sua passagem ao ato parece estar atrelada a Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens, um ponto muito preciso em Freud, em suas Contribuições à psicologia do amor que, com Miller, poderíamos dizer “Contribuições à doutrina do gozo” (MILLER, 2010, p. 9), “condições de gozo que determinam a eleição do objeto de amor”. (MILLER, 2006, p. 165).

Travis parece cumprir o itinerário descrito por Freud para a eleição de objeto no homem: a existência do terceiro prejudicado, excluído – o cafetão –, da puta – a jovem Jodie Foster – e da intenção de salvá-la – como nas cenas do hotel. O personagem de De Niro parece não saber usar de recursos fálicos para gozar com uma mulher: ao levá-la a um cinema pornô, parece não entender a recusa para um próximo encontro. Aí, não conseguimos ver qualquer possibilidade de subversão, de um saber-fazer com o gozo e a dificuldade de fazer o gozo do Um passar pelo Outro, necessário ao amor – precisamente a via pela qual Assis, ao servir-se do Pai, soube fazer uso dos recursos fálicos e deles prescindir e subverter.

O “terceiro incluído” na parceria entre Assis e Rosinha ilustra o que em psicanálise é sabido: não há idade para o amor, infindáveis as suas possibilidades. Na sombra que faz a morte sobre a vida do homem, o personagem Assis parece ter escutado em Renúncia, interpretada por Nelson Rodrigues, sua subversão. O amor, “um doce prazer, embriagador e vulgar, difícil é saber renunciar...” Ao amor.


Referências 

HORNE, B. Servir-se/prescindir do Pai. In: ASSOCIAÇÃO MUNDIAL DE PSICANÁLISE. Scilicet: As psicoses ordinárias e as outras – sob transferência. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, 2018.

MACÊDO, L. F. de. O fracasso do sentido em psicanálise. Opção lacaniana online nova série, São Paulo, ano 3, n. 8, jul. 2012, p. 2. Disponível em: < http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_8/O_fracasso_do_sentido_em_psican%C3%A1lise.pdf>. Acesso em: 31 ago. 2018.

MILLER, J.-A. (2010-2011). Curso de orientação lacaniana III, 13: O ser e o Um. Inédito.

MILLER, J.-A. Uma conversa sobre o amor. Opção lacaniana online nova série, São Paulo, ano 1, n. 2, jul. 2010, p. 9. Disponível em: < http://opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_2/Uma_conversa_sobre_o_amor.pdf>. Acesso em: 31 ago. 2018.

MILLER, J.-A. Introducción al método psicoanalítico. Buenos Aires: Paidós, 2006.


[1] Boletim da XIII Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Santa Catarina.

[2] O autor faz menção a alguns excertos de filmes exibidos e comentados no Colóquio de Cinema e Psicanálise realizado pela atividade Psicanálise vai ao Cinema da EBP-Seção SC, em 2018, sob o auspício da FAPOL.



[i] Analista praticante. Participa das atividades da EBP-SC e coordena o Ateliê de Leitura O Eu e a tópica do imaginário no Instituto Clínico de Psicanálise de Orientação Lacaniana de Santa Catarina. Mestre em Filosofia (PUC/PR).

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