IMPASSES E LIMITES DA SUPERVISÃO

 

around a red mouth 1967Around a Red Mouth, 1967, Hannah Höch

 

Cleudes Maria Slongo
AP, membro da EBP/AMP
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O princípio lacaniano de que "o analista não se autoriza senão de si mesmo" reenvia o analista à solidão de seu ato. Ainda que tente escapar desse "si mesmo" que o faz autor, ele não tem como fugir desse fato. Pois, se ele está apto a passar do divã à poltrona, é necessário que tome lugar, que instale aí seu próprio corpo. É a si mesmo que ele presta conta. A poltrona do analista é, com efeito, um lugar de solidão, posto que é com ele mesmo que ele conta. E ele só se pode contar como Um. Daí o horror que acomete o analista frente ao seu ato. Ali onde opera, ele não pensa. Não há um ponto de certeza que possa garantir o seu ato. Ele não pode, portanto, prever de antemão, seus efeitos, suas consequências.

É para cernir o real que sua prática solitária comporta que precisa interrogá-la junto a outro analista. E se a situação em jogo deve ser manejada à luz do discurso analítico, a escolha do analista-supervisor se dá por intermédio da transferência uma vez que implica o suposto saber do analista. Todavia, quando o analista - tomado por essa solidão onde apenas ressoa a voz de seus analisantes - se pergunta como ocupar esse lugar, pode se ver tentado a interpelar o outro analista como seu ideal do eu, quer dizer, enquanto supostamente alojado na mesma insígnia. Contudo, ainda que ele possa obter algumas orientações de "como opera o outro", ele não poderá se eximir de buscar o "seu modo de operar", a partir de um estilo e de um desejo que lhe são próprios. À propósito, ele só pode se contar como Um por diferença absoluta com o outro (SILVESTRE, 1991, p. 24).

O analista-praticante não encontrará no supervisor a resposta à pergunta "como ser analista" para poder extrair daí um ideal de "como analisar". Lacan nos lembra, no seminário sobre a transferência, que deste ideal o analista precisa saber se resguardar.

Segundo Beneti (1991, p. 09):

Longe de um domínio da técnica de um “savoir fare”, o que está em jogo numa supervisão é um ponto ético: a verdade do ato analítico, enquanto algo que por estrutura coloca a dimensão de um “furo no saber”, de uma incompletude quanto ao saber sobre o mesmo, o que determinará ao analista - enquanto um imperativo ético - falar do mesmo, a um outro, “suposto-saber-do-analista”, para vir a saber, portanto, a “posteriori”.

Ainda que o analista-praticante tente suprimir sua presença, colocando de seu o mínimo possível, ele não pode fazer com que o analisante - de quem ele fala - fale ao supervisor. É a ele que foi dirigida sua demanda de análise. E, portanto, é a ele que cabe sustentar o desejo do analista. O texto, o relato, é o analisante que o produz. É a ele, seu analista, portanto, que ele ensina. Quando, em supervisão, o analista retoma essa fala, ele não diz de seu analisante o que ele quer. Ele não sabe o que vai dizer. É inútil anotar o que lhe foi dito e tentar resumi-lo. Seu relato é cheio de lacunas. Ele se confunde, hesita. Seu texto se revela muito distante daquilo que lhe confidencia seu analisante pois, como em toda construção, a transmissão do caso terá a mesma estrutura não-toda da verdade, sempre como um meio-dizer.

A dificuldade encontrada pelo analista em supervisão, ao relatar um tratamento, deve-se ao fato de que no material que escolhe para transmitir ao supervisor, ele está aí por qualquer coisa e em alguma parte. Ele não é um simples depositário dessa fala, posto que essa fala o contém. Ele, aí, se faz representar. Pensar que desse dizer do analisante o analista seria apenas o narrador seria eximi-lo da parte que ele tem nesse dizer. “Expor um caso clínico como se fosse de um paciente é uma ficção; é o resultado de uma objetividade que é fingida porque estamos implicados, ainda que seja pelos efeitos da transferência” (MILLER, 2013). 

Porém, essa presença do analista, nem sempre é manifesta. Ela pode aparecer nos sonhos ditos de transferência, nos comentários do analisante quanto à expressão do rosto do analista numa determinada sessão, ou quanto a mudança de um móvel ou objeto de lugar, etc.

 Essa presença de "si-mesmo" que o analista-praticante tenta suprimir diante do analista-supervisor, constitui, entretanto, o traço singular necessário ao lugar do analista a ser sustentado diante de seu analisante. Como bem nos lembra Miller (2013):

Estamos dentro do quadro clínico e não saberíamos abater nossa presença nem prescindir de seus efeitos. Tratamos, sem dúvida, de comprimir essa presença, de esmerilhar suas particularidades, de alcançar o universal do que chamamos o desejo do analista. E o controle, a prática do que se chama supervisão serve para isso: para lavar as escórias remanescentes que interferem no tratamento. Mas, a partir do momento que conseguimos apagar o que nos singulariza como sujeito, então é o analisante quem sonha; quem sonha conosco, seu interlocutor, com os rodeios de seu fantasma e com a identidade que atribui a esse interlocutor, que não saberiam não figurar no quadro.

Trata-se sempre do analista e seu ser como falta-a-ser, de sua causa posta em cena, no momento da supervisão. Sua falta-a-ser coloca-o numa posição de analista-analisante, o impulsiona a uma partida, uma partida jogada a dois.

O que o analista deve apreender como retorno da supervisão, é, precisamente, o que não se transmite de um analista a outro, o que se manifesta como falta, como buraco. Nesse sentido, a supervisão pode ser considerada como o lugar que pode fazer retornar ao analista algo do real, da opacidade mesma de um tratamento de cuja experiência ele não é nem o mestre, nem o juiz.

Ainda que o analista não se autorize senão de si mesmo, e a partir do traço que o distingue em sua absoluta diferença, sem dúvida, um controle, uma supervisão se lhe impõe ali mesmo onde nenhuma instância o obriga. Ali onde falta uma medida standard para garantir que o que ele faz é uma psicanálise.

Qual é a posição que cabe ao analista-supervisor?

Numa supervisão manejada à luz do discurso psicanalítico, o analista-supervisor também está posto em causa. Ao invés de encarnar um Outro da sugestão, ele deve operar uma divisão entre o saber recolhido pelo supervisionando na cura, e a ignorância que anima a sua posição de não-saber. Longe de representar um "não quero saber nada disso" é quem mais perto se coloca de um "desejo de saber" (BENETI, 1991, p. 16).

O analista-supervisor deve operar a partir da posição de sujeito barrado diante da demanda trazida pelo analista-praticante. Isto possibilitará a este último interrogar-se sobre sua própria análise, sobre o que mais além do que tem se produzido nessa análise por ele conduzida, ainda nele não foi suficientemente atravessado pela castração.


Referências

BENETI, Antônio. Uma introdução à questão da supervisão. In: BENETI Antônio (org.). A questão da supervisão. Belo Horizonte: Tahl, 1992. p. 09-16.

 MILLER, Jacques-Alain. Falar com o corpo. Argumento de PIPOL V. 2013. Disponível em: <http://www.enapol.com/pt/template.php?file=Argumento/Conclusion-de-PIPOL-V_Jacques-Alain-Miller.html>. Acesso em: 20 maio 2019.

SILVESTRE, Michel. Submeter-se ao controle. In: BENETI, Antônio (org.). A questão da supervisão. Belo Horizonte: Tahl, 1992. p. 24.

Resumo: Ainda que o analista não se autorize senão de si mesmo e, a partir de um traço que o distingue em sua diferença absoluta, ele precisa interrogar sua prática junto a um outro suposto saber do analista ali mesmo onde nenhuma instância o obriga. Ali onde falta uma medida standard para garantir que o que ele faz é uma psicanálise.

Palavras-chave: Supervisão, ato analítico, impasses e limites, desejo do analista.

 

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