NOTÍCIAS DA OUTRA CENA:

FREUD E A CRIATURA DA NOITE[1]

 

henri Rousseau
The Dream - Henri Rousseau, 1910

Gustavo Dessal
Analista Membro da Escola (AME), membro da ELP/ AMP

Respondendo ao gentil convite desta casa, vou apresentá-los ao mundo dos sonhos, tema que despertou a curiosidade e o respeito dos homens desde o começo da história da civilização. De fato, sabemos que todas as grandes culturas atribuíram aos sonhos qualidades especiais e virtudes essenciais. A sensibilidade do ser humano no passado não podia ser indiferente a essa ação misteriosa da psique, que não cessa enquanto dormimos e tece histórias fantásticas, algumas cheias de significado, outras absurdas e incoerentes, mas de qualquer modo todas dignas de serem consideradas. Aquém ou além de se atribuírem aos sonhos poderes proféticos ou de eles serem reputados como anúncios dos deuses, eles sempre foram reverenciados como produtos que faziam parte da vida, que tinham uma relação especial com a nossa existência e era imprescindível prestar atenção neles, já que eles nos informam sobre coisas que não devem ser menosprezadas.

Os onirocríticos, ou seja, as pessoas que possuíam o dom da interpretação dos sonhos, eram personagens que gozavam de grande prestígio e seu trabalho era muito procurado, principalmente por aqueles que possuíam uma alta posição na sociedade. Para dar um exemplo, Alexandre, o Grande: para ele, era inteiramente inconcebível realizar uma campanha militar sem consultar diariamente seu onirocrítico. No início de seu famoso estudo sobre os sonhos, Sigmund Freud nos conta uma história sobre este fato: o exército de Alexandre estava acampado diante da cidade de Tiro, sem que ele decidisse atacar. Cheio de dúvidas, o grande general sonha uma noite com um sátiro. Na manhã seguinte, quando o intérprete foi consultado, ele lhe diz: “Sa-tyros”, que em grego significa “Tiro é tua”. Não é preciso dizer que Alexandre levou em consideração seu sonho e atacou a cidade vitoriosamente. Esse pequeno exemplo serve para que observemos duas coisas fundamentais. A primeira, independentemente do significado atribuído ao sonho, ele sempre foi considerado como um produto que deve ser interpretado, ou seja, que não podemos nos conformar com seu sentido aparente. A segunda, é que a interpretação, como se pode ver nesse caso ao fazer uso de um jogo de palavras engenhoso, mostra que há uma diferença surpreendente entre o sentido aparente do sonho e seu significado. A imagem do sátiro pode nos confundir, pode fazer deslizar nossa imaginação para significados eróticos ou agressivos, e, no entanto, o intérprete de Alexandre não ficou cativado por essa primeira impressão e soube dar ao sonho um alcance para além da aparência.

Do mesmo modo, também nós não devemos sucumbir ao efeito imediato que um sonho produz. Para além da aparente incoerência de um sonho, ou das complexas tramas de vicissitudes e peripécias de outro, sempre se esconde uma significação que faz parte de nossa vida íntima e, na maioria dos casos, o sonho nos revela algum fragmento importante de nossa subjetividade.

Infelizmente, hoje em dia, os sonhos caíram um pouco no esquecimento. O homem comum, sobrecarregado pelas pesadas cargas da vida moderna, assolado por preocupações que a realidade não cessa de lhe dirigir, presta pouca atenção aos seus sonhos e os reduz à categoria de meros produtos secundários, desprovidos de qualquer importância. Acrescentado a isso, há a presunção da ciência ao dizer que os sonhos nada mais seriam do que um conjunto de imagens sem sentido, derivadas de mecanismos fisiológicos acionados durante o sono, como se a grande máquina do nosso cérebro, entregue ao descanso, regurgitasse certas substâncias químicas que produzem as belas imagens coloridas que nos intrigam durante a vigília, mas em relação às quais não valeria a pena desperdiçar um minuto sequer do nosso tempo. É curioso notar com que rapidez a ciência pretende nos explicar os sonhos, do mesmo modo que se orgulha de resolver tantos outros mistérios humanos, como, por exemplo, o amor. Recentemente, em um jornal, li notícias de que uma universidade descobriu que o estado de enamoramento se deve à ação de um hormônio chamado ocitocina, que certamente parece ter um papel decisivo no desencadeamento do trabalho de parto. Por que o enamoramento é um estado cuja intensidade tende a diminuir com o tempo? Segundo os perspicazes cientistas, isso se deve à diminuição do nível de ocitocina no organismo, o que nos faz deduzir que a paixão amorosa, então, se deve a um elevado acréscimo dessa substância mágica. Vocês poderiam imaginar Shakespeare matando Romeu e Julieta com uma overdose de ocitocina? Esse disparate deveria nos permitir refletir sobre um dos fenômenos mais comuns que sofremos hoje em dia, ao qual me permito dar o nome de superstição científica. Um “oceano de falsa ciência”, para retomar as palavras de um poeta, nos invade diariamente e, muito frequentemente, o prestígio de que gozam os cientistas permite que alguns (nem todos, é claro) façam passar preconceitos estúpidos e teorias absurdas como conhecimento supostamente obtido da observação e da experiência. No campo da vida psíquica, no espaço em que ocorrem os complicados mecanismos que governam nossa subjetividade, esse tipo de golpe disfarçado de suposta ciência é comum.  Podemos reduzir a força gravitacional dos planetas a uma fórmula matemática, podemos até encontrar na combinatória de alguns ácidos a substância na qual fermenta o magma da vida, mas nunca podemos nos orgulhar de colocar em fórmulas ou cifras um fenômeno tão extraordinariamente complexo quanto o amor, ou o desejo, ou algumas das paixões transbordantes que fazem parte do ser humano.

Em vez de confiar nas simplificações estúpidas com as quais o pensamento científico geralmente procura explicar os movimentos da alma, deixemos que nosso olhar e nossa compreensão sejam atraídos pela sabedoria com que os grandes poetas conseguiram iluminar alguns dos enigmas poderosos da condição humana. Nas grandes obras da literatura, é comum que o autor, em certo ponto da trama, conte um sonho como parte da consciência aflita do protagonista. A verossimilhança do sonho dependerá do domínio do escritor, do enlace de seu conteúdo com o que sabemos sobre o personagem, inclusive a capacidade de antecipar um elemento de sua vida anímica que ainda não conhecemos e que talvez nem o próprio sonhador tenha percebido. Vocês, por acaso, acreditam que o surgimento de um sonho no meio de uma história se deve a um mero capricho do autor, a um desejo vaidoso de brincar com as palavras e as imagens, procurando, com isso, preencher apenas mais algumas páginas da obra? Não. Tenho certeza absoluta de que todo leitor sensível sabe apreciar muito bem o valor da verdade, da verdade enigmática e dos meio-ditos que guardam os sonhos que lemos na literatura. Assim, por exemplo, Philip Roth, em seu livro Patrimônio, no qual narra, com estarrecedor realismo, o processo de adoecimento e morte de seu pai. Ele escolhe terminar seu livro com o relato de um sonho autobiográfico acompanhado por sua interpretação. A interpretação desse sonho é tão comovente, tão lúcida, tão integralmente ligada aos eventos e às vivências do autor, que mesmo a pessoa mais descrente não poderia deixar de se render à evidência de que os sonhos, como sempre se soube, têm um sentido e que esse sentido contém uma verdade profunda que pertence ao sonhador, por mais que ele a ignore.

 A razão disso, como disse São Lucas, é que “a verdade não pode não se manifestar” e o sonho é uma das vias fundamentais pelas quais acessamos essa verdade. Mas de que verdade estamos falando? Para que exatamente os sonhos nos abrem a porta? A porta de marfim ou a de ébano, como pensavam os gregos? Para responder a essa pergunta, terei que chamar a atenção de vocês fazendo um de desvio, mas primeiro quero deixar claro algo fundamental. Apesar de a psicanálise continuar a antiga tradição de dar valor e significação ao sonho, a semelhança entre Freud e os filósofos e os pensadores do passado não vai muito além disso. O sonho, portanto, não tem para nós, psicanalistas, uma função profética ou divinatória. Ele não antecipa o futuro nem o destino do sonhador. E, é claro, embora a ideia nos pareça romântica, o sonho não tem relação com nenhuma mensagem dos deuses. O sonho carece de toda e qualquer virtude mágica; é, pelo contrário, um produto da razão humana, se reconhecemos que essa razão, ou logos, se apoia no que há de mais propriamente humano: a linguagem, aquilo que nos foi dado para que nossa condição se separe por completo de todo vestígio animal e que nossa espécie se distinga como algo sempre incomparável ao resto das criaturas vivas. Os sonhos dizem algo sobre nós mesmos, algo que está tão intimamente próximo de nós que, ao mesmo tempo, não podemos vê-lo com clareza. Os sonhos dizem isso por meio de palavras, porque, ainda que, quando sonhamos, sejamos invadidos por muitas imagens ultraluminosas, às vezes confusas, é com palavras que relatamos nossos sonhos, é com palavras que nos lembramos deles durante a vigília e, às vezes, contamos a alguém, por exemplo, ao psicanalista, geralmente acompanhado de um aviso: “olha só, que coisa curiosa, tive um sonho esta noite que me intrigou”.

 O ser humano se sente tão implicado por seus sonhos que resulta interessante o fato de que, durante a terapia analítica, e sem que seja necessário indicá-lo ao paciente, ele não tardará muito tempo para começar, espontaneamente, a contar sobre suas aventuras oníricas. Não é difícil entender que, na medida em que oferecemos ao sujeito a possibilidade de que use suas palavras na investigação do que perturba sua alma, são suas próprias palavras que o levam, mais cedo ou mais tarde, em direção àquilo que os sonhos lutam por fazê-lo reconhecer.

A psicanálise, uma disciplina e um método terapêutico que sempre teve e seguirá tendo detratores – os quais, geralmente, expõem seus questionamentos sem conhecer nada sobre ele, no fundo, é algo que parte de um ponto de vista simples e elementar. Quem entre vocês não admitiria que é em nossa infância que se formam as experiências mais fundamentais, aquelas que nos marcarão pelo resto de nossa vida, determinando, em parte, o curso de nossa existência ulterior? Quem poderia negar que as palavras, os desejos, as advertências, os louvores, as proibições, as humilhações, os estímulos, os ensinamentos de todos os tipos que recebemos das pessoas que nos foram mais próximas, geralmente nossos pais, tocam fundo em nosso espírito, dotando-o de forma, de conteúdo, de afetos, de iniciativa, mas também frequentemente de dor, de ressentimento e de doença? Quem ousaria afirmar que em nossa vida nos sentimos perfeitamente donos de cada uma das circunstâncias em que temos que agir e que alcançamos facilmente uma identidade na qual nos apoiamos? Alguém se atreveria a assegurar que sabe sem sombra de dúvida aquilo que quer e que tantas e tantas vezes não se vê assolado pela dúvida ou pela inibição? Qualquer um que respondesse honestamente essas perguntas não teria nenhuma dificuldade em admitir aquilo que a psicanálise propõe em seu fundamento, e que resulta da experiência, da simples experiência de se deixar ser instruído pelas pessoas que nos falam sobre seus sofrimentos. Ou seja, que o ser humano é um tanto incompleto, que sua consciência apenas mostra uma ínfima porção de si mesmo, que nosso espírito foi submetido a uma extrema fragilidade, que aquilo que acreditamos ser e desejar não é mais do que uma máscara que nos permite dissimilar o profundo enigma que vive no coração de cada um de nós. Freud chamou esse enigma de inconsciente e devemos considerar que o que vamos encontrar aí não são forças misteriosas e sombrias da mente, mas uma parte de nossa própria história, um pedaço de nossa vida anímica que ficou fora de nosso domínio. Precisamente pelo fato de nossa subjetividade ser inicialmente construída por um discurso que chamamos de discurso do Outro, como regra geral, o discurso dos pais, que nos precede e que faz referência a nós antes mesmo de sermos gerados. Não podemos conhecer todos os fatos de nossa existência, já que, outros começaram a escrevê-la sem que fôssemos capazes de perceber. O que fomos para nossos pais? O que eles esperavam de nós, para além do que nos disseram, ou melhor ainda, se nos detemos no pensamento do que não nos disseram, no que calaram e guardaram para sempre? Se uma palavra pode ser gravada em nossa carne, também pode fazê-lo um silêncio, um segredo, um olhar mudo. Frequentemente, essas são perguntas que geralmente não fazemos para nós mesmos, mas o fato de que não as façamos não impede que essas coisas gravitem em nossas vidas, condicionando-nos, moldando uma parte de nosso destino, arrastando-nos por caminhos que, no fundo, não sabemos porque os havíamos escolhido. Falar do inconsciente não significa entrar em um campo supra-sensorial, uma força divina ou demoníaca. O inconsciente é o conjunto de tudo aquilo que faz parte da nossa subjetividade, mas que desconhecemos, e essa condição do homem, a de não ser inteiramente dono de tudo que pode saber sobre si mesmo, é um dos principais postulados da psicanálise. A psicanálise descobriu que nenhuma autorreflexão poderá nos dar uma resposta final sobre o que somos e acreditamos ser. Aquilo que acreditamos ser nada mais é do que uma sombra, um leve reflexo de um ser muito mais amplo, que inclui aspectos e características que preferimos desconhecer. É evidente formamos para nós uma imagem de nós mesmos, uma imagem que tenta se parecer com aquilo que nos propusemos como ideal e que, então, procuramos por todos os meios deixar de lado tudo aquilo que possa desmenti-la. Também quando apresentamos nossos defeitos tentamos justificá-los, demonstrar sua inevitabilidade ou atribuí-los a circunstâncias que nos são estranhas e que nos forçam a agir de maneira inadequada. Ignoramos ou queremos ignorar que haja em nós crueldade, egoísmo, ciúme, inveja, desejo do proibido, voracidade e uma série de outras paixões humanas. Reservamos como nosso cartão de visita apenas aquilo que nos mostra amáveis, ou, no máximo, com alguma falha leve, perfeitamente desculpável. É por isso que os sonhos têm a virtude de nos revelar algo que preferimos não saber. Eles fazem isso ao aproveitar que, durante a noite, uma parte da censura que involuntariamente exercemos sobre nós mesmos e sobre nosso modo de pensar, falar e agir, relaxa e, então, permite que os desejos reprimidos se manifestem.

Qual foi uma das extraordinárias contribuições de Freud ao mundo da mente humana? Sem dúvida, sua descoberta sobre a função dos sonhos. Para Freud, um sonho é a realização de um desejo, mas não um desejo no sentido vulgar do termo, um desejo enquanto algo que simplesmente queremos ou cremos querer. O desejo é, por definição, um desejo inconsciente, um desejo que vive em nosso interior, mas o desconhecemos, um desejo imperecível ao qual não podemos dar as costas, porque mais cedo ou mais tarde, no sonho ou em algum canto do despertar, ele nos mostrará sua verdadeira face. Esse desejo nos incumbe porque se trata de algo que nos pertence, embora não saibamos de sua existência. Por isso que o homem desde sempre se sentiu atraído por seus sonhos, ainda que com diferentes interpretações. De qualquer forma, o fato de o ser humano ter atribuído o sonho à ação de alguma entidade sobrenatural, um deus ou demônio, demonstra claramente que a vida onírica se refere a algo que vai além de nosso conhecimento consciente. A capacidade de consciência, que consideramos como o último degrau na escala da evolução das espécies, nada mais é do que uma reles miragem. Nossa vida mental, aquilo que somos, os complexos mecanismos que regem nossa conduta excedem completamente o domínio da consciência e afundam suas raízes no inconsciente.

No entanto, vocês poderão se contrapor dizendo que nem sempre é óbvio que o sonho se refira a um desejo. Às vezes, isso pode se realizar, mas há muitos sonhos em que o roteiro parece não ter nenhuma relação com um desejo, por exemplo, nos sonhos em que a trama redunda completamente absurda ou tola. No entanto, devemos levar em conta o fato de que o sonho nunca nos mostra sua mensagem diretamente, senão através de um disfarce extraordinário. Devemos desnudá-lo de suas aparências para poder decifrar seu verdadeiro conteúdo. Já contarei para vocês como conseguimos realizar esse trabalho de chegar à interpretação de um sonho na terapia analítica, mas, antes, deixem-me explicar como, de acordo com o Dr. Freud, ocorre o mecanismo de fabricação de um sonho.

Todo sonho é composto de dois elementos fundamentais, que são o desejo e a representação. O desejo, que descrevemos como um desejo inconsciente e que, geralmente, tem relações importantes com o passado infantil do sujeito, precisa encontrar um meio de expressão com o qual se manifestar. Aproveita para isso o momento de descanso, período em que o sujeito humano é menos suscetível à censura, aquela que, durante a vigília, opera involuntariamente sobre ele. O relaxamento da censura, que defini como a vigilância que uma parte de nós exerce sobre o resto de nós mesmos para nos obrigar a seguir os ditames de uma imagem ideal, permite ao desejo se aproximar de nossa consciência que, embora adormecida, não cessa de exercer suas funções. Porque, embora a censura esteja trabalhando com metade de sua intensidade, isso não significa que ela se desconectou completamente. Ainda que não possa impedir o desejo de se aproximar da consciência, a censura segue suficientemente ativa para forçá-lo a realizar um desvio. O desejo precisa encontrar um parceiro, alguém que possa ajudá-lo a atravessar a fronteira da censura sem ser descoberto. O que significa, nesse caso, ser descoberto? Significa que, se o desejo é muito explícito e não mantém o devido disfarce, a censura dispara o alarme e produz o despertar, estragando a possibilidade de que o desejo se manifeste. Muitas vezes acordamos assustados durante a noite porque tivemos um pesadelo. Um pesadelo é um tipo particular de sonho, um sonho em que o disfarce do desejo não foi bom o suficiente para esconder seu rosto, que se mostra de uma maneira evidente demais. No pesadelo, algumas de nossas tendências mais primitivas são reveladas, fazendo com que vejamos algum aspecto da sexualidade ou da relação com a morte que conscientemente procuramos evitar. Mas vamos deixar de lado o pesadelo, porque, como eu disse, é um caso especial no capítulo dos sonhos.

 Voltemos um pouco. O desejo precisa, então, encontrar um parceiro que o ajude no trabalho de burlar a censura. Esse parceiro é o que chamamos de representação, isto é, uma imagem. Geralmente, essas imagens, que recebem o nome de restos diurnos, provêm de algum fragmento da vigília que ocorreu no dia anterior ao sonho. Quando nos lembramos de um sonho, é comum distinguir nele algo que se conecta a um evento, um pensamento ou algo que dissemos ou ouvimos durante o dia. Esse resto diurno, que o desejo toma emprestado para entrar no sonho, não é escolhido ao acaso, mas porque guarda algum tipo de conexão, muitas vezes semelhante à produzida nas expressões metafóricas.

Escolhi para esta ocasião um exemplo que considero apropriado e que, apesar de sua aparente simplicidade, não nos poupará de apresentar a complexidade prodigiosa de seus mecanismos. Uma mulher vem me consultar sofrendo de uma grande depressão sonha que está dentro da água. A água é turva e espessa; não é possível enxergar dois de seus filhos, que, em seguida, afundam. Ela, desesperadamente, tenta salvá-los. Em vão, ela os procura na água escura e mergulha para tentar vê-los. Nada. Tudo é inútil. Quando ela está prestes a gritar, tomada de angústia, finalmente avista, ao longe, seus filhos sentados na praia em segurança.

Uma primeira observação que devem ter em mente é que o método analítico, desde o início, procede de uma maneira completamente diferente da crença popular sobre os sonhos. De fato, muitas vezes, pensa-se que os sonhos têm significados universais, ou seja, que os sonhos são interpretados de acordo com temas. Há livros assim, semelhantes a um dicionário, nos quais se procura, por exemplo, “sonhar com água” e o dicionário oferece o suposto significado. Se a psicanálise fizesse assim, se o trabalho de interpretação dos sonhos na terapia analítica se reduzisse a buscar significados fixos para as imagens dos sonhos, então não seríamos nada mais que vulgares charlatães. Pelo contrário, o psicanalista ignora completamente o significado dos sonhos de seu paciente. No máximo, ele pode ajudar a encontrar a interpretação, mas sem esquecer que essa é uma tarefa que o sonhador deve realizar, e não o psicanalista, que apenas serve de guia. A segunda observação a levar em consideração e que deriva da primeira, é que nunca poderemos entender um sonho se não conhecermos a vida e as circunstâncias daquele que o sonhou. Um sonho é sempre uma criação particular, é o produto de um sujeito concreto, individual e irrepetível, cujas vivências, emoções, aventuras e andanças pertencem apenas a ele. Por esse motivo, interpreta-se sempre um sonho concreto, uma vez que não existem dois sonhos iguais. Mesmo no caso hipotético de duas mulheres terem o mesmo sonho com águas turvas e mesmo que os elementos se repetissem de forma idêntica, o significado e a interpretação de ambos os sonhos seriam completamente diferentes, por virem de pessoas diferentes, cada uma com uma história e um destino que lhes é irredutível.

 No caso do qual lhes falo, a mulher em questão fez facilmente uma primeira interpretação de seu sonho. Na vida real e como consequência de sua separação, seus dois filhos mais velhos foram morar com o pai, enquanto o menor permaneceu com ela.  Embora ela veja esses seus outros filhos quinzenalmente, ela não pode evitar o sentimento de que os perdeu. Portanto, em seu sonho, essa vivência é reproduzida no início, ao passo que, no final do sonho, se realiza o desejo de recuperá-los. Sem dúvida, poderíamos nos contentar com essa interpretação, claramente simples e, ao mesmo tempo, inquestionável. É a própria paciente que chegou a essa conclusão, ou seja, que a formulou sem nenhuma indicação minha. Até então, meu trabalho se limitou a escutá-la.

Porém, a prática nos ensinou que um sonho não é algo tão simples. Por que seus filhos afundam em águas escuras, que não permitem distinguir nada? A paciente, que assumiu o dever exigido pela terapia analítica, ou seja, dizer tudo o que passa pela cabeça sem silenciar nada, por mais absurdo ou incoerente que possa parecer, lembra-se de algo desagradável que lhe aconteceu no dia anterior ao sonho: o vaso sanitário de seu banheiro entupiu e ela teve que usar um instrumento para mexer na água suja na tentativa de desobstruí-lo. Por que esse evento da vigília, um evento que, sem dúvida, seria preferível esquecer, serve de meio de expressão das preocupações da paciente?  Como vocês podem ver, essa pergunta elementar é suficiente para mostrar que as coisas não são tão simples de resolver quanto parecem. Se há algo obscuro no sonho, se algo borra a visão, é porque há algo que a paciente relutava a dizer com clareza, ela reconhece isso quando confessa as razões do porquê de seus dois filhos preferirem morar com o pai. Ela não havia me contado toda a verdade sobre os acontecimentos, entre eles, que havia maltratado seus filhos e que esse maltrato foi a causa fundamental da sentença judicial. A história do relacionamento com seus filhos, os quais ela queria abortar, remonta ao relacionamento que ela tinha como filha de uma mãe que lhe disse, de mil maneiras diferentes, que ela significava menos do que nada, algo que só valia a pena para jogar no vaso sanitário. Sua vida, exclama com tristeza, teria sido melhor se não tivesse tido filhos, embora esse desejo a horrorize e a encha de culpa, pois descobre dessa maneira que, inconscientemente, repete o comportamento desastroso de sua mãe, que, quando a paciente era uma menina, costumava repetir que teria sido melhor que ela não tivesse nascido.

Para melhor ou pior, os seres humanos sempre sofrem com algum drama interior. A história dessa mulher é particularmente infeliz, mas todos nós carregamos dentro de nós algum segredo que nos atormenta, algum pensamento que não nos permitimos pensar, ou alguma parte da nossa história que preferimos esquecer por estar ligada a algo vergonhoso, proibido ou simplesmente cruel e agressivo. Não devemos esquecer que nossa constituição humana inclui todo tipo de pulsões, entre as quais também encontramos a agressividade, os desejos de morte, as tendências suicidas, os comportamentos destrutivos e os desejos sexuais que foram submetidos à repressão. Essas tendências, por mais desagradáveis ou estranhas que sejam, fazem parte de nós mesmos e, no trabalho analítico, buscamos que o sujeito possa reconhecê-las, o que não significa dar-lhes vazão. Ao aumentar a visão que o paciente pode ter de si mesmo, ao permitir que ele se aventure no conhecimento dos aspectos inconscientes da sua vida psíquica, devolvemos para ele parte de sua liberdade de ação, pois a partir desse momento essas tendências, que o condicionavam secretamente, deixarão de atormentá-lo e a energia que deveria ser usada para mantê-los reprimidos pode ser usada de melhor forma.

A neurose, que é o sofrimento do indivíduo comum, consiste precisamente nisso, em sofrer pelo esgotamento, já que uma parte de nossa mente foi sequestrada por essas tendências inconscientes que perturbam nossas vidas, essas tendências que devemos manter sob controle. Esse controle, no entanto, acaba sendo impossível, pois o inconsciente é, por definição, algo que foge ao nosso alcance e ao qual somos submetidos repetidamente, dificultando nossos propósitos e nossos projetos.

Freud considerou que o sonho é um dos caminhos mais privilegiadas para acessar nosso inconsciente e vislumbrar aqueles aspectos de nossa personalidade que nos são ocultos. Sem dúvida, sua afirmação ainda é válida e os sonhos são uma ajuda indispensável na tarefa do psicanalista. Longe de tentar dar ao paciente uma interpretação do sonho como um todo, convidamos ele a fragmentá-lo em partes, a dividir o conteúdo em seus diferentes elementos e a estabelecer associações baseadas em cada um deles. Dessa forma, veremos imediatamente como uma grande rede de associações e conexões começa a se tecer. Uma palavra leva a outra, um detalhe do sonho leva a uma recordação, essa recordação está ligada a outra, e assim por diante. Para a psicanálise, a interpretação de um sonho não consiste em dizer “seu sonho significa isto ou aquilo”. Interpretar um sonho é abrir o envoltório das imagens com as quais ele se apresenta para descobrir em seu interior a interconexão de pensamentos, lembranças e evocações que ali se encontravam condensados. Certamente, a produção da livre associação em torno do sonho conduzirá ao passado, às vezes, até a mais tenra infância, para nos mostrar algo que, no decorrer de nossa história, foi bloqueado, incompreendido, mal interpretado ou caluniado.

Para nós, psicanalistas, qual é a importância do fato de que os sonhos nos permitem descobrir um material da vida mental do paciente que permaneceu reprimido, ou seja, inacessível à sua consciência? A resposta é muito simples. Quando analisamos os sintomas que afetam nossos pacientes, sintomas que são criações cheias de sentido, que possuem uma coerência e uma lógica que podem ser decifradas, percebemos que esses sintomas são construídos com os mesmos materiais que vêm do inconsciente e também que os sonhos ajudam a reconstruí-lo. Frequentemente, com a ajuda dos sonhos e especialmente quando eles são elaborados durante as sessões de terapia psicanalítica, as pessoas conseguem recuperar memórias, às vezes, muito antigas, de cenas esquecidas, mas que deixaram uma marca profunda e que estão na base dos sintomas e das inibições que as perturbam.

Voltando ao caso de que falei há pouco, graças à análise do sonho da “água turva”, a paciente também conseguiu se lembrar da obsessão de sua mãe por suas fezes, sua mãe as examinava procurando sinais de doenças ou anomalias. A lembrança dessas cenas que causaram angústia e humilhação na menina serviu para entender um dos sintomas que a atormentaram durante a vida adulta, uma grave colite que, graças à psicanálise, pode melhorar.

O tema dos sonhos na psicanálise é extremamente complexo e extenso para poder resumi-lo em uma breve apresentação. No entanto, espero ter conseguido despertar em vocês o interesse pelo assunto e que vocês possam expandi-lo ao ler um livro facilmente encontrado, uma vez que possui inúmeras edições: A interpretação dos sonhos, escrito por Sigmund Freud há 120 anos.


 

[1] Texto apresentado em 17 de outubro de 2019 na atividade preparatória da XIV Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise – Seção Santa Catarina, Tempo de sonhar, instantes de despertar, em parceria com LAPSIC (UFSC). Tradução de Silvia Ghizzo e revisão de Diego Cervelin.

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