A ESCRITA INSCRITA NO CORPO PODE SER SUBVERSIVA 

 indian dancer from an ethnographic museum 1930Hannah Höch, Indian Dancer: From an Ethinographic Museum, 1930

Cínthia Busato
AP, Membro da EBP/AMP
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O acontecimento Freud levantou algo do recalque, em escala social. Com Freud,  algo em relação à sexualidade passa à ordem do consentimento e não apenas da confissão (MILLER, 2004, p. 10). A Igreja pedia que se confessasse a sexualidade, mas na lógica da expiação e da culpa, sob o escudo da recusa da carne. Freud inaugurou o reconhecimento e a aceitação da “carne”, isto é, das pulsões. O corpo erotizado encontra no sintoma uma satisfação substituta, enquanto não são reconhecidos e aceitos os desejos sexuais. Ou pelo menos era isso, até 1920, quando no Além do Princípio do Prazer a importância da pulsão de morte fica mais pontuada em sua obra.

No início do projeto das Luzes a ciência já substituía o mundo fechado e dado de antemão pela tradição, pelo universo aberto e infinito, aquele que se perguntava, ousava não crer na palavra do Pai, condição para o nascimento da psicanálise (MILLER, 2004, p. 11). Somente com essa ideia estando no conhecimento comum fazia sentido pedir para alguém enunciar tudo que lhe passa pela cabeça, sem ordem nem ideia pré-concebida, acreditando que isso revelaria um saber insabido, submetido a outras leis. Falar sem se preocupar com a forma, apostando que esse movimento poderia elucidar “outra cena”.

Já o acontecimento Lacan, aquele que teve a “ousadia de não ser como todo mundo”, radicaliza a essência das descobertas freudianas, principalmente insistindo na virulência dos conceitos fundamentais: pulsão, inconsciente, repetição e transferência. Todos eles portadores disso que vai além do princípio do prazer, além da lógica positivista.

Lacan desconfia dos ideais, sistemas fechados e utopias, como aponta Miller (2004, p. 11) sucintamente, ele é “contra tudo que é a favor”, portanto, tudo que recusa o saber sobre o mal-estar estrutural que habita o ser falante. Aos olhos de Lacan a política procede por identificações, ela manipula significantes-mestres e busca desse modo, capturar o sujeito fixando-o em identificações a um ideal comum. O sujeito capitula agradecido, já que se angustia com sua falta de identidade basal, sua falta a ser.

A psicanálise vai contra as identificações do sujeito, remetendo-o à sua vacuidade primordial, e com isso “libera a fantasia inconsciente que ordenava suas escolhas e seu destino, e isola o que a suporta, tenha isso o nome que tiver: quantum de libido, objeto pequeno a, condensador de gozo” (MILLER, 2004, p. 12). É a partir desse elemento heterogêneo ao significante, mas que só toma corpo a partir do próprio significante, que gostaria de pensar a saga subversiva da psicanálise.

Miquel Bassols (2017, p. 28) nos oferece uma via para interrogar de maneira radical a natureza do vínculo social mais além da análise freudiana em “Psicologia das massas” revitalizando uma pergunta trabalhada por Miller em “O banquete dos analistas (2000, p. 181)”: É a identificação a base de todo laço social? É possível um laço social fundado em outro princípio além das três identificações clássicas de Freud?

O seminário 17 nos convoca a estudar toda fórmula de vínculo, “já não somente desde a identificação ao Outro, mas desde o próprio corpo como um viés discordante. Porque o gérmen de toda articulação com o Outro não é o conhecimento do mundo nem a harmonia representativa, mas sim a marca de gozo singular inscrita no corpo” (BASZ; GUREVICZ, 2019).

No último ensino de Lacan já não se trata dos modos de identificação do sujeito enquanto representado por um significante para outro significante, nem do laço S1-S2. Quando falamos em falasser falamos de outro processo de identificação que surge, não do Outro, mas do Um-Corpo. Já não o corpo dos vestígios imaginários gestando sentidos, mas sim o corpo gozante, organizado pelos orifícios corporais, circuitos pulsionais que forjam uma escrita indecifrável, porém inscrita.

Dessas marcas que a contingência dos significantes colocou em funcionamento nas experiências singulares de cada um, forjamos nossa identidade sinthomal. Esse processo se produz em uma análise por extração e redução:  “ extração dos momentos em que um dizer marcou esse Um-corpo, redução dos enunciados e desvelamento da enunciação são as condições para formular uma identidade desde o sintoma que, embora seja fruto do acaso, não deixa de ser a única garantia de unidade” (BROUSE, 2018). Esse resto que encontramos no fim de uma análise, vislumbrado no hiato aberto entre o simbólico e o imaginário pelo real, é nele que mira a interpretação que pretende fazer descolar do sentido a surpresa que pode subverter o já dado.

Lacan funda sua Escola “sozinho quanto sempre esteve” e coloca no Ato de Fundação a pergunta sobre “o que é um analista?”. Essa pergunta funciona como uma orientação para o real, já que qualquer resposta imporia ao analista uma identificação e a orientação de Lacan vai na via de apontar aí um vazio de saber. Trata-se de um saber não verificável pela via da identidade ou do modelo que traz como consequência não ceder frente ao real em jogo na formação do analista.

Nohemi Brown (2018) nos trouxe uma questão muito interessante em nossa Jornada de Cartéis de 2018: “O que se forma na formação do analista?”. A partir desta nos apresentou Eduardo Chillida, escultor basco que interroga a ideia da forma na escultura. Para Chillida a forma não está dada de antemão, a forma é ao que contingentemente se chega, não sem um trabalho que se efetua entre a matéria e o vazio. Mais do que visualizar a forma à qual se quer chegar, à forma que se quer fazer, ele pegava a matéria, um pedaço de pedra, madeira, ferro, e ‘introduzia o vazio e o levava até o limite da matéria’. O que resultava desse esforço era a forma.

Heidegger faz uma reflexão sobre o espaço e o vazio, por isso se interessou pela obra de Chillida. Para ele, opera-se uma inversão na forma de conceber a escultura. Segundo a visão platônica: a forma gera o espaço. Em Heidegger, isso se transforma: é o avesso, o vazio que gera o espaço e cria a forma. A forma fica como aquilo que resiste à matéria, aquilo que não pode ser submetido, dominado. Isso aponta a forma como um resto que se decanta (BROWN, 2018).

Esse vazio que se introduz criando a forma essencial decantada da materialidade... Desde que ouvi isso fiquei pensando que é uma ótima maneira de pensar a  possível relação subversiva entre a singularidade e o universal, a relação do inapreensível, esse elemento não significante,  com o que é da ordem do significante e está orientado para o Outro. Não é o vazio em si, mas os movimentos que fazemos para elaborar em torno dessa opacidade que constroem nosso trajeto singular e, às vezes, subversivo.

Termino com um poema de Adélia Prado (1976), que tece tão bem a materialidade do significante com o inapreensível:

                                                

                                                  Antes do Nome

Não me importa a palavra, esta corriqueira.

Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,

Os sítios escuros onde nasce o “do”, o “aliás”, o “o”, o “porém” e

o “que”, esta incompreensível muleta que me apoia.

Quem entender a linguagem entende Deus

Cujo filho é verbo. Morre quem entender.

A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,

Foi inventada para ser calada.

Em momentos de graça, infrequentíssimos, se poderá

Apanhá-la: um peixe vivo com a mão.

Puro susto e terror.


REFERÊNCIAS

BASSOLS, Miquel. A impossível identificação do analista. Correio - Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo: EBP, n. 81, p. 28-50, dez. 2017.

BASZ, Gabriela; GUREVICZ, Mónica. Argumento da 28ª Jornadas Anuales da EOL. Buenos Aires: EOL, 2019. Disponível em: <http://www.eol.org.ar/template.asp?Sec=jornadas&SubSec=jornadas_eol&File=jornadas_eol.html>. Acesso em: visualizado em: 20 ago. 2019.

BROWN, Nohemi. Apontamentos pessoais da Conferência “Pontuações sobre o cartel e a política na Escola de Lacan” proferida em 24/08/2018 na Jornada de Cartéis da EBP-SC. Florianópolis, agosto 2018.

BROUSSE, Marie-Hélène. As identidades, uma política, a identificação, um processo, e a identidade, um sintoma. Opção Lacaniana online. São Paulo, v. 9, n. 25/26, mar./jul. 2018. Disponível em: <http://opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_25/As_Identidades_uma_politica_a_identificacao.pdf >. Acesso em: 20 ago. 2018.

MILLER, Jacques-Alain. El banquete de los analistas. Buenos Aires: Paidós, 2000. (Los cursos psicoanalíticos de Jacques-Alain Miller).

MILLER, Jacques-Alain. Lacan e a Política. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo: Eolia, n. 40, p. 7-20, ago. 2004.

PRADO, Adélia. Em Bagagem. São Paulo: Record, 1976.

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