Cartel, que laço é esse?

 Falling Ribbons 3Falling Ribbons 3 - Judeen Young

Nohemí Brown, AP, Membro da EBP / AMP
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Agradeço pelo convite feito por Cinthia Busato, Cleudes Slongo e Nancy Greca para falar sobre o cartel, para falar desses pequenos grupos de trabalho na Escola que nestes momentos de pandemia têm se mostrado uma via para sustentar o vivo de um trabalho. Os cartéis têm se sustentado via online, com pessoas diferentes, de lugares distintos, a partir das mais variadas questões.

Podemos dizer que o cartel é um grupo de trabalho que tem a tarefa de preservar a singularidade.

Quero me deter um pouco no título. De alguma forma, no título, já se coloca o cartel como um laço. É uma afirmação: o cartel é um laço. O que fica em aberto é o que enlaça e com o que se enlaça para que possamos chamar de cartel.

Por exemplo, em “Novas reflexões sobre o cartel”, um texto muito interessante que vale a pena retomar, Miller (2010, p. 27) se surpreende com os poucos colegas que, em 1994, falavam do cartel como um lugar de trabalho na Escola. Parecia não haver muito entusiasmo pelo cartel naquele momento. O que se destacava eram os cursos, os seminários, especialmente o curso magistral, onde o carisma de quem fala é fundamental. O que enlaça é o carisma e se espera um orador.

Então, o enlaçamento pode ser pelo carisma. Mas, no cartel, o Mais-Um não satura a demanda de carisma. Nesse sentido, o lugar do Mais-Um é um lugar fundamental para fazer um laço que dê como resultado o trabalho no cartel e do qual possa se obter um produto, de preferência escrito, mas não só. O laço faz referência a um lugar, que possibilite o enlaçamento entre os elementos.

Se pensamos isso a partir do que se espera de um cartel, isto é, do produto, podemos dizer que esse produto não é algo isolado que surgiu da cabeça do cartelisante. É a narrativa de uma experiência de interação entre os elementos do cartel. Em outras palavras, dos enredos, das conexões que se fizeram ao longo desse dispositivo.

O saber e as ideias são construídos em uma transversalidade de intercâmbios, para os quais seria impossível atribuir todas as referências.

Se no grupo freudiano há um líder que enlaça o coletivo, no cartel lacaniano, o Mais-Um é um líder enfraquecido. Sua base é a inexistência da relação, um furo que provoca a enunciação e que a força a partir desse furo, conduz a uma relação, às vezes, inédita com um saber.

Podemos dizer que se trata de um laço paradoxal. O cartel faz laço, mas não é um laço qualquer que faz grupo, é mais bem um anti-grupo.

Laço com a causa e laço com a Escola

Parece-me marcante que quando Lacan funda sua Escola, esse coletivo, ele o faz desde seu laço com a causa e não com o grupo. Ele diz: “fundo – tão sozinho como sempre estive em minha relação com a causa psicanalítica – a Escola” (LACAN, 2003, p. 235).  Um laço que leva em conta o furo central para a formação de um coletivo.

Como sabemos, foi no “Ato de fundação”, em 1964, onde ele disse isso e onde propôs o cartel como um dispositivo de sua Escola – estão na mesma página! O passe foi alguns anos depois. Isto é, quando Lacan funda sua Escola, ele propõe o trabalho nela, nesses pequenos grupos chamados cartéis. O cartel não é um meio entre outros, é o meio para realizar o trabalho na Escola.

O cartel está na juntura mais íntima da Escola como Lacan a propôs. Nesse sentido, o cartel é consubstancial à Escola, não é simplesmente uma metodologia de pesquisa.

Considerar que o cartel é consubstancial à Escola implica que não podemos pensar o cartel sem o laço com a Escola, mas podemos nos perguntar: haveria Escola sem carteis?

Dentre as indicações que Lacan propõe sobre o cartel no “Ato de fundação”, ele diz:

Para a execução do trabalho, adotaremos o princípio de uma elaboração apoiada num pequeno grupo. Cada um deles se comporá de no mínimo três pessoas e no máximo de cinco, sendo quatro a justa medida. MAIS UM encarregado da seleção, da discussão e do destino a ser reservado ao trabalho de cada um (LACAN, 2003, p. 253).

Então, esse pequeno grupo tem a função de sustentar um trabalho, há um laço de cada cartelisante com o trabalho, que não é fácil – como vamos ver –, e o Mais-Um é o encarregado de que esse trabalho seja realizado e de que seu produto tenha algum destino.

O cartel é um instrumento de leitura, um instrumento vivo... É onde se aprende a ler. Na análise, aprende-se a ler nosso inconsciente e não é fácil. Em um cartel, aprende-se a ler outras coisas que são fundamentais saber ler para a formação. Então, o cartel é um instrumento muito afinado de leitura.

Nesse trabalho há algo vivo, trata-se de vivificar a letra de Freud, Lacan e outros. Há um prazer em aprender psicanálise; se não é letra morta.

O Mais-Um, o que enlaça?

É em “D’Écolage”, em 1980, onde Lacan joga com o significante decolar, descolar, de Escola, de um laço que não é cola. O interessante é que justamente nesse momento de dissolução, Lacan preservou o cartel como um dispositivo a manter em sua Escola. Mas não só o preservou, senão que elaborou a versão mais apurada desse dispositivo e nos deu um esclarecimento mais preciso sobre o que podemos extrair como função do Mais-Um. Ele coloca: “a conjunção dos quatro se faz em torno do Mais-Um, que, se ele é qualquer um, deve ser alguém. Cabe a ele a tarefa de velar pelos efeitos internos à empreitada e de provocar a elaboração” (LACAN, 2010 [1980], p. 14, grifos meus).

Conjunção dos quatro em torno do Mais-Um. Destaco especialmente como Lacan colocou a cargo do Mais-Um um laço, a conjunção dos quatro. Mas esse laço a partir de sua função: “provocar a elaboração” no cartel. Esse ponto tem sido particularmente esclarecido por Miller fazendo uma inversão dos termos e que nos permite considerar o que se espera do cartel. Podemos dizer, o que se espera do cartel é: uma “elaboração provocada”, um escrito preferencialmente.

No cartel, trata-se de provocar o trabalho, de provocar a elaboração e isso é o que faz laço. Como sabemos, não há a tendência ao trabalho, há a tendência à preguiça. Daí que a elaboração precise ser “provocada” e o Mais-Um tenha que saber fazer com isso, provocar, inventar, a partir de sua singularidade, um certo “despertar”. Quando se identifica o Mais-Um ao lugar do saber, quando se tampona esse vazio candente da causa, se amortece o desejo e todos dormem.

O trabalho sempre é suscitado por um apelo, um chamado de provocadores.

Se a análise é uma elaboração provocada pelo significante da transferência. No caso do cartel, o Sujeito suposto Saber, não é um saber agente do discurso, ele, pelo contrário, tem um efeito bloqueador da elaboração.

O Mais-Um no cartel não é nem mestre nem analista. É um agente provocador da elaboração a partir da qual há aprendizagem. Ele se coloca a trabalho a partir de suas próprias perguntas.

Nesse sentido, se é o Mais-Um que sustenta essa função, ela não lhe é exclusiva. É colocada em circulação, é um elemento livre em referência à estrutura do cartel. Mas, então por que nomeá-lo? Podemos pensar sobre isso a partir de uma observação de Luis Tudanca, que são necessários ‘funcionários’ para sustentar uma função. Alguém que a sustente, que seja nomeada, mesmo que ela circule.

O Mais-Um encarna, principalmente, a função de provocar a elaboração. Mas ele também está provocado no cartel. No cartel, fica como um provocador-provocado, como o chama Miller (2010, pp. 55-61). Entendo isso como alguém que não só convoca a elaboração, mas que também está fisgado pelo tema, pela questão, se sente convocado.

De alguma maneira, trata-se de que se recuse a ser o senhor que faz o outro trabalhar ou ser aquele que sabe ser analista no cartel. Por isso, Miller indica que o discurso que mais convém no cartel é o histérico. Mas no cartel é necessário um deslocamento, pois no discurso histérico ficaria como um sujeito provocador. O deslocamento implica que a divisão seja tomada para si. Por isso, de sujeito provocador se passa a provocador-provocado.

O Mais-Um não é o sujeito do cartel, ele precisa inserir o efeito de sujeito no cartel, mas tomar a seu cargo a divisão subjetiva.

Se bem é certo que Lacan indica que não deve ser qualquer um, isto é, que tem certo efeito agalmático. Não é o lugar que o Mais-Um deve sustentar no cartel. Não é isso que sustenta o laço de trabalho. Ele está também a trabalho, como Mais-Um, mas principalmente como qualquer outro membro do cartel com relação a suas próprias perguntas.

O Mais-Um não é a causa do cartel. Ele deve tomar para si a divisão subjetiva de tal modo que fique como menos-um. O Mais-Um está ali para descompletar o cartel. A conjunção dos 4 se faz em torno do Mais-Um, como nos disse Lacan, mas o Mais-Um se junta ao cartel para descompletá-lo. Um laço que não visa a cola, senão que mantem um furo que enlaça.

O Mais-Um tem a função de fazer buracos nas cabeças, porque também a letra de Lacan, Freud, etc. faz buraco na cabeça dele. E com isso convoca ao trabalho.

É a partir desse lugar que entendo a afirmação de Lacan quando diz que “o ensino não pode se transmitir de um sujeito ao outro, senão pelas vias de uma transferência de trabalho”.

Se aprendemos com Lacan, podemos dizer que um ensino só se sustenta incitando o saber a partir da posição de analisante, e só falando a partir de Freud.

Dar seu lugar ao objeto no cartel implica que o Mais-Um não se aproprie do efeito de atração, mas que o refira a outro lugar, entre nós, a Freud e Lacan. Um laço que estabelece um ponto de fuga.

Laço entre o íntimo e o coletivo

Em O lugar e o laço, curso que está sendo trabalhado no Seminário de Orientação Lacaniana, Miller faz uma referência ao rasgón, ao ponto onde há um desgarro no saber, no que até então cada um pode adquirir como saber.

Acho interessante, porque com a ideia de rasgón, como desgarro, Miller destaca que é a possibilidade de se abrir para uma relação com o saber. Esse rasgón, por um lado, “atormenta”, não é tranquilo, mas, por outro, pode ter um valor fecundo que dá satisfações (cf. MILLER, 2013, P. 13). Para alcançar essa satisfação, é necessário fazer um esforço para alcançá-la, um esforço que podemos colocar na linha de uma elaboração provocada ou do trabalho como estamos falando.

Com o que nos enganchamos no cartel? O que nos enlaça no cartel no um a um? Para haver um laço no cartel é necessário que exista a extração do rasgo de cada um, de uma questão que enlaça ao tema do cartel e que coloca a trabalho a cada cartelisante.

No cartel, há algo entre o íntimo e o coletivo. Nesse sentido, o cartel como dobradiça que enlaça algo da ordem do íntimo ao coletivo sem perder a relação com o que causa a cada um. Por isso, não faz grupo, massa. Não se trata de um produto sustentado pelo cartel, senão de uma elaboração sustentada no cartel por cada um de seus participantes.

Esse dispositivo tem uma relação de dobradiça com a questão mais singular que move a cada um que participa dele e que o enlaça ao coletivo. A partir da solidão de seu próprio rasgão, de sua própria questão.

Porém, para que funcione como dobradiça, a função do Mais-Um enquanto elemento que circula, como vimos, é fundamental para que se sustente a diferença, a alteridade e possibilite a elaboração singular do que é causa para cada cartelisante. No cartel, não se pretende homogeneizar os membros que participam dele, senão, colocar a trabalho a diferença. O ponto em comum é o interesse pelo tema que os interroga, mas o lugar a partir de onde os interroga é sempre particular. No cartel, chama-se rasgo de trabalho no cartel, mas gostei da ênfase dada por Miller com rasgão. Algo que se desgarra no saber, que atormenta, mas que no cartel pode ter um efeito fecundo.

Nesse sentido, a função do Mais-Um, visa a que a tendência natural à comunhão seja interrompida, o qual não impede o trabalho conjunto. Trata-se não de um Um que unifica, senão da relação com um Um que mantém a diferença, a dimensão irredutível da solidão com a própria causa, mas que abre a possibilidade de enlaçamento com o Outro.

Inclusive, quando falamos de ensino no cartel, isso se considera na transmissão do produto que lhe é próprio a cada um, em uma temporalidade particular ao conjunto da Escola, segundo o percurso de cada um.

No cartel, não se trata de um laço de 4 + 1 igual a cinco, senão de uma topologia que preserva o valor do +1 como 1 que mantém a diferença. Nesse sentido, o enlaçamento tem o risco de se tornar tão frouxo que leve à dispersão, mas também, por outro lado, se tornar tão consistente que aperte o laço e afogue (tampone) o furo do próprio rasgão. Então, não se trata da cola, mas também não da dispersão.

A relação com o saber no cartel, é uma relação alegre com o saber e, então, pode durar até quando é divertido. Quando deixa de ser divertido pode se tornar outra coisa. Podemos dizer que se trata de uma erótica do cartel vinculada ao desejo.

Laço precário, mas de uma precariedade específica

Para que o funcionamento do grupo seja possível, enquanto cartel, é preciso que tenha um ponto de fuga, capaz de manter sua precariedade. Encontrei recentemente, esta afirmação de Romildo do Rego Barros, realmente a reencontrei, pois mesmo que já tivesse lido esse texto há um tempo, ela só ressoou agora a partir de uma reflexão sobre a precariedade no cartel que venho fazendo. Hoje, relendo o texto de Romildo, pude me apropriar dela. “O precário – diz ele – é a operação que leva em conta o seu próprio esgotamento” (BARROS, 2009, p. 102).

Sempre há algo da ordem da precariedade no cartel. As reuniões não estão marcadas por uma centralidade absoluta em uma doutrina ou ideologia. Nem em uma estruturação rígida quanto ao número, duração ou frequência das reuniões. Inclusive seu tempo é limitado, máximo de dois anos, onde a dissolução e a permutação são fundamentais.

Sobre a precariedade, Franco Berardi, filósofo italiano, faz uma reflexão e nos dá uma ideia da dimensão da precariedade como um modo de vida muito atual, fruto da desilusão com a ideia de progresso do conhecimento da ciência para governar e ordenar da forma mais efetiva o mundo. O que Berardi destaca em Depois do futuro, é que as premissas filosóficas, estéticas e sociais que desenharam a expectativa de um futuro rumo ao progresso se desfizeram e, como consequência, produziram uma ruptura na credibilidade em um modelo progressivo de futuro. Trata-se da desilusão com um tempo que se dirigia ao futuro, ao progresso. O que restou disso foi uma “paralização da vontade”, que, para ele, é a precariedade. Desse ponto de vista, a precariedade afeta os laços sociais e a composição da sociedade.

Nesse sentido, chama a atenção que Lacan, na formalização que faz do cartel em “D’Écolage”, faça um questionamento da ideia de progresso. Ele coloca que do cartel “não se espera nenhum progresso além daquele de uma exposição periódica, tanto dos resultados quanto das crises de trabalho” (LACAN, 2010, p. 14). O trabalho em cartel não se coloca em uma linha de progresso, senão de efeitos, de restos, de momentos, de uma periodicidade... de uma certa precariedade. Porém, trata-se de um precário que dá lugar ao desejo de cada um e que pode produzir efeitos de surpresa com relação ao saber. E não efeitos de devastação que é ao que Berardi se refere.

Inclusive, quando um cartel não funciona e se dissolve “antes do tempo”, coisa que não é pouco frequente, nós fazemos perguntas. De alguma maneira, isso nos coloca a trabalho, apreendemos sobre o que se passou nele. Introduzimos um espaço para elaborar sobre o que aconteceu enquanto crise. Trata-se de extrair do que fracassou o ponto vivo da experiência.

Para encerrar e abrir para questões

O cartel é uma operação que enlaça 4 + 1 em uma topologia que coloca em jogo o vivo e o que é causa em cada um, o rasgão de cada um, mas que também tem em seu horizonte a Escola. O Cartel, se enlaça à Escola como um modo de estar na Escola, mas também, e mais importante, como um modo de fazer Escola.


REFERÊNCIAS

BARROS, R. R. “Sintoma, grupo e Escola”. In: A clínica psicanalítica hoje: o sintoma e o laço social. Buenos Aires: Grama, 2009, pp. 91-102
BERARDI, F. Depois do futuro. São Paulo: Ubu, 2019.
MILLER, J-A. “Novas reflexões sobre o cartel”. In: Manual de cartéis. Belo Horizonte: EBP-MG, 2010, pp. 27-35
____. “Cinco variações sobre o tema da elaboração provocada”. In: Manual de cartéis. Belo Horizonte: EBP-MG, 2010, pp. 55-61.
____. El lugar y el lazo. Buenos Aires: Paidós, 2013.
LACAN, J. “Ato de fundação”. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, pp. 235-247.
LACAN, J. “D’Écolage”. In: Manual de cartéis. Belo Horizonte: EBP-MG, 2010, pp. 13-16

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