O GRITO ANCESTRAL

Eliana da Motta Salles Carvalho de Lopes
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lespace épisodique II
l'espace épisodique II - reginaldo cardoso

“Estou agora ouvindo o grito ancestral dentro de mim: parece que não sei quem é mais a criatura, se eu ou o bicho. E confundo-me toda.”
Clarice Lispector

Em Água viva, Clarice sugere uma dúvida quando em O grito ancestral questiona-se diante do grito, um som anterior a qualquer forma de linguagem articulada, sobre sua natureza. Por meio do grito parece haver uma confusão entre o humano e o animal, uma aproximação que a princípio denota um desconcerto e a deixa sem uma resposta. Há aí uma pergunta que aponta para um encontro com a falta a ser que o sujeito histérico delata, ao mostrar a impossibilidade de haver um significante que nomeie inequivocamente o sujeito. 

A escolha aqui pelo significante “delatar” para nomear o direcionamento da pergunta ao Outro no discurso e em manifestações histéricas parece apropriado diante dos fatos históricos, quando nos primórdios da medicina a histeria era relacionada às doenças do aparelho sexual feminino, chegando a ser associada à possessão e feitiçaria. Delatar se enlaça com o que está relacionado a um delito, transgressão da moral ou de preceito preestabelecido, e assim as manifestações histéricas eram vistas, como algo estranho e por isso consideradas como fora e não pertencentes ao socialmente aceito. Ninguém é estranho em si mesmo, mas sempre em relação a alguma coisa ou hábito partilhado por uma comunidade.  Manifestações corporais ou que se referem a algo de indomável e desvairado passaram a marcar a condição feminina, pois se posicionam neste limbo de confusão entre o humano e o bicho, em um “entre” sem significação.

O grito de que aqui tratamos não é qualquer um se não o nomeado como “ancestral”. Há uma conexão com gerações antecessoras que o posiciona em categoria de ritual. Remete ao grito puro, a interjeição tomada ainda como insatisfação desarticulada, que parece, em certa medida, se perpetuar. Um grito então de um sujeito em posição histérica, na tentativa de lidar com o enigma do gozo opaco que vai além do falo, além do sentido. Denota um apelo ao Outro por uma resposta que nomeie algo do ser. Expressa aquilo que não se circunscreve em uma significação, que foge ao controle, à temperança e ao domínio. Nesse sentido chega a se animalizar, tem um pé no selvagem.

Curiosamente a noção de que as mulheres eram mais propensas a não refrear seus impulsos, de que algo irracional e louco era inerente a condição feminina, fez aproximar a arte da noção do feminino. Alexandre Nodari comenta que o feminino e o poético atuam de forma convergente, pois expressam o princípio e a prática da errância, da instabilidade, e dessa forma da diferença e da loucura. Em 1913, Freud (2014, p. 119-120), em Totem e Tabu, apresenta a ideia de que as neuroses mostram: “notáveis e profundas concordâncias com as grandes produções sociais que são a arte, a religião e a filosofia” e constata que “uma histeria é uma caricatura de uma obra de arte”.

O artista, em seu ato criador, contorna esse lugar vazio, esse sem sentido do real, na tentativa de produzir uma verdade. Roça o limite do simbólico e do real, buscando domesticar um gozo. É nessa lógica que, para Miller, as mulheres parecem às vezes e na medida do possível mais amigas do real. A mulher, na posição histérica, é amiga do real na medida em que delata a inexistência de um ser. Cito Miller (2010, p. 2):

[...] por que não dizer que as mulheres parecem mais amigas do real? [...] isso se explica pelo fato de elas não terem necessariamente a mesma relação com a castração que os homens. Em certo sentido, como assinala Lacan, a castração nelas é de origem, o que se confirma com a conhecida indicação sobre a ausência de fetichismo nas mulheres. O fetichismo traduz no homem o horror, o desmentido da castração que aqui podemos homologar, por aproximação, ao real do qual alguém se protege. Em todo caso, é desse modo que elas se inscrevem na literatura psicanalítica e por isso mesmo justificaria a expressão ─ também arriscada ─ de amigas do real.

Nesse caminho, Miller (2010, p. 2), ao se perguntar sobre a veracidade do dito popular “A mulher varia, louco de quem nela se fia”, propõe o sentido do semblante como algo que se faz passar pelo que há onde algo não há. Segue na lógica de que o conjunto do que pode ser dito de uma mulher é inconsistente. Ele explica:

Desde o momento em que se faz girar as coisas (as coisas da relação sexual, da clínica, da própria natureza das coisas) em torno do significante imaginário do falo, a mulher está na posição do Outro: é a que não tem. E como falta nesse espaço uma indicação que permita saber se sim ou se não, naturalmente lhe é imputada uma inconsistência (MILLER, 2010, p. 2).

É possível questionar se a busca pelo ser, na histeria, culmina em um alojamento em um semblante e se, na falta deste, desembocaria na loucura. O ser é um semblante necessário para que o sujeito se aloje. O que a mulher denuncia, vez por outra, é a falha desse mecanismo, a falha inerente ao feminino. Falha no sentido de falta, sendo a falta aqui a de sentido. Assim, a mascarada se instaura se utilizando do véu que cobre essa falta a ser. Cito Lacan (1998, p. 701): “Por mais paradoxal que possa parecer essa formulação, dizemos que é para ser o falo, isto é, o significante do desejo do Outro, que a mulher vai rejeitar uma parcela essencial da feminilidade, nomeadamente todos os seus atributos na mascarada.”

Dessa forma, dizer que a histérica ocupa a função de falo para que ao Outro nada falte é na lógica de que nessa medida ela encobre a castração. Podemos pensar que é uma tentativa de dominar a criatura, o bicho, o que a animaliza. Lacan, ao trazer a noção de paradoxal para o conceito de mascarada, deixa nas entrelinhas o que Miller retoma ao escrever que se pode observar nas mulheres um ódio muito especial ao semblante. Enuncia o cinismo feminino, representado pelo semblante, dizendo ser “uma maneira de sublinhar que as mulheres pensam, talvez com menos vontade, em capturar o real com o significante.” (MILLER, 2010, p. 3).

Em A paixão segundo G.H., Clarice (1964, p. 134) denuncia mais uma vez essa falta de vontade quando escreve “eu sou uma pergunta de certo. Uma pergunta que não deseja ser respondida. Que também não se contenta com as respostas porque acha tudo um tanto quanto relativo".

O “relativo” de Clarice vai de encontro ao “cinismo feminino” de Miller e ao “paradoxal” que Lacan pontua. Talvez essa sequência de significantes aponte para o fato de ser o semblante algo para ser tratado com muita delicadeza.

Nessa perspectiva, é possível perceber uma posição que aparece entre o semblante e o bicho, que se aproxima talvez de uma pacificação diante do que não vai ser significado posto que não o é. Diz a narradora: “Não humanizo o bicho porque é ofensa - há de respeitar-lhe a natureza - eu é que me animalizo” (LISPECTOR, 1973, p. 58). O bicho aqui é bicho não inserido na linguagem. É o feminino que se associa ao selvagem, como que em uma acomodação, uma metamorfose. Daí a pergunta de Clarice que não deseja ser respondida. É de se pensar que o grito de Água viva é um grito que se ouve, está dentro do sujeito. Não há menção de que seja emitido em um som, de fato, para além do sujeito.  É um grito em silêncio. É por não haver uma resposta do Outro e por saber disso que a parceria entre o feminino e o silêncio encontra lugar e possibilita o silêncio do grito. Talvez possamos dizer que, em Clarice, o silêncio do feminino grita.


REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. Totem e tabu (1913). São Paulo: Companhia das Letras, v. 11, 2014. p.13-244.

LACAN, Jacques. A significação do falo. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 692-703.

LISPECTOR, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro: Artenova, 1973.

_______. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Rocco, 1964.

MILLER, Jacques-Alain. De mulheres e semblantes(1993). Revista Opção Lacaniana online. São Paulo, v. 1, n. 1, mar. 2010. Disponível em: < http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_1/mulheres_e_semblantes_i.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2018.

NODARI, Alexandre. De onde vem a poesia? Ensaio publicado no antigo blog da Cosac Naify, hoje sem acesso.

Resumo: Aborda a histeria e aspectos culturais de sua história traçando por qual viés a noção da arte e feminino tocam a estrutura em questão. Utiliza textos de Clarisse Lispector para fazer borda a conceitos da psicanálise desenvolvidos por Lacan e Miller e costura, pela linha tênue entre o simbólico e o real, buscando localizar pontos de enlaçamento entre mulher, feminino e histeria.

Palavras-chave: Feminino. Histeria. Mulher. Real. Semblante.

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