A OBRA E A LOUCURA1

Gustavo Ramos2
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Paris 6
paris VI, setembro 2018 - louise lhullier

No ano de 1961, Michel Foucault publica seu livro Folie et déraison, posteriormente reintitulado de Histoire de la folie à l’âge classique, em 1972. Entre essas duas datas, em 1964, ele escreve o texto La folie, l’absence d’oeuvre, com o intuito de fazer as vestes de prefácio ao seu livro, o que nunca aconteceu. Nesse prefácio irrealizado, lemos que a loucura não manifesta nem relata o nascimento de uma obra, mas ela designa a forma vazia de onde vem essa obra, quer dizer, o lugar de onde ela não cessa de estar ausente, no qual jamais a encontramos porque jamais aí se encontrou (FOUCAULT, [1964] 2014, p. 218). Tal concepção é de extrema relevância na psicanálise devido à última virada no ensino de Lacan quando este se detém nos nós a partir do seminário 19 e culminando no 23 onde se propõe a ler James Joyce. No último ensino, a concepção de obra ganha ressonâncias na psicose, pois, segundo Fabienne Hulak, em La lettre et l’oeuvre dans la psychose, “l’absence d’oeuvre pose le problème même de la psychose par rapport à la relation à l’Autre de la reconnaissance”3 (HULAK, 2006, p. 13) A psicose se manifestaria, portanto, no não consentimento do sujeito à linguagem, na sua não submissão à linguagem. Se na neurose, o S2, o saber, retorna ao S1 significando-o, na psicose não ocorre o retorno desse saber, e, a partir disso, cabe ao psicótico inventar esse retorno de S2, o que chamamos de delírio, a saída da lira. No seminário 22, R.S.I., lemos que a desaparição do sentimento de se ter um corpo corresponde a uma falha na amarração dos três registros e, como consequência, o imaginário se solta. Quando isso ocorre, o Ego, por conseguinte, também se solta, e o olhar não está mais na dimensão do esquema L, onde a imagem do semelhante faria com que o Eu se alienasse ao que vê pela via do significante, mas o olhar se encontra no ponto de não visão, de não retorno, do que se vê no espelho. A diferença com a paranoia é que nela o sujeito vê seu duplo, e o Outro lhe aparece como perseguidor. Talvez seja aí onde a invenção do sujeito viria fazer suplência ao Nome-do-Pai, esse significante ausente na cadeia e, por faltar, a ficção do sujeito ficaria em um gap referencial, um espaço em branco em sua história. Miller, em A invenção do delírio, diz que “Dado que o eu de cada um é delirante, um delírio pode ser considerado uma acentuação do que cada um leva em si, e é possível escrever como delirEu” (MILLER, [1995] 2009, p. 81) Se as formações do inconsciente se localizam na neurose, os fenômenos elementares estão na psicose, mas ambos fazem jus ao delirante Eu. É o mesmo Miller quem não fará mais uma oposição estanque e direta entre psicose e neurose ao dizer que todo S2 é um delírio, ou seja, todo saber é um delírio, resultando na chamada foraclusão generalizada, pois

a fórmula que define o sujeito, como aquilo que é representado por um significante para outro significante, faz desvanecer a função do reconhecimento. Não é dito que o outro significante deva reconhecer o primeiro; simplesmente se indica que eles devem se articular. Já não se trata do reconhecimento, embora permaneça inscrito nessa fórmula o para outro. Desde então, o significante que ‘representa’ aparece como médium do sujeito para o outro significante. (MILLER, [1987] 2010 p. 18-19)

O médium, no latim, significa tanto o meio como o registro sonoro da voz, sendo aí  localizado o problema do psicótico com o reconhecimento do Outro, pois, se na neurose, isso é mediado pelo significante que vem do Outro, na psicose estamos somente pela via da voz como mediação entre os significantes e estes não mais representam o sujeito a outro significante, mas eles retornam, delirantemente, ao sujeito como um imperativo do ser: ele é aquilo que a voz lhe apresenta. No caso de Joyce, por exemplo, o que amarraria os três registros seria o Eu de Joyce manifesto em sua obra; aí está a diferença com relação ao lógion de Michel Foucault sobre a ausência de obra. O crítico Fabián Ludueña em seu último livro, afirma: “[...] a loucura, no caso de [Aby] Warburg, não é a ‘ausência de obra’, mas, ao contrário, a própria obra em sua totalidade.” (LUDUEÑA, 2017, p. 37-38). Essas duas figuras não estão muito distantes. Warburg permaneceu internado no sanatório Bellevue sob os cuidados do médico Ludwig Binswanger e é lá onde produz sua obra Mnemosyne, iniciada em 1905, mas que só ganhou intento em 1924. Ele pede ao médico essa chance: provar que não estava mais louco ao ler, diante de todos os médicos e pacientes, sua obra. Anos depois, esse texto receberia o título de O ritual da serpente, uma dança kachina. A dança envolve o corpo, o qual, por sua vez, está entrelaçado no caso Joyce. Na Escrita do Ego, capítulo do Seminário 23, Lacan desenvolve essa hipótese:

Ter relação com o próprio corpo como estrangeiro é, certamente, uma possibilidade, expressada pelo fato de usarmos o verbo ter. Tem-se seu corpo, não se é ele em hipótese nenhuma. [...] Mas a forma de Joyce deixar cair a relação com o corpo próprio é totalmente suspeita para um analista, pois a ideia de si como um corpo tem um peso. É precisamente o que chamamos de ego. Se o ego é dito narcísico, é porque, em certo nível, há alguma coisa que suporta o corpo como imagem. (LACAN, [1976] 2007, p. 146)

Há um porém: em Joyce não há o interesse nessa imagem e talvez esteja aí o cerne da possível psicose do escritor, e da teoria proposta por Hulak do Outro do reconhecimento, pois, quando do castigo perpetrado erroneamente pelo bedel, ocorrido no Um retrato do artista quando jovem, lemos: “Pensar nelas [as pernas] espancadas e inchadas de dor tudo ao mesmo tempo o fez ter pena delas como se não fossem suas, mas de outra pessoa, de quem sentia pena.” (JOYCE, [1916] 2016, p. 70) Em outra cena, a da surra, após ficar “quase cego por causa das lágrimas” (p. 106), lemos que ele “não tinha esquecido de absolutamente nada da covardia e da crueldade deles, mas lembrar disso tudo não despertava raiva nele.” (p. 107) Como o efeito do Outro não ressonou no corpo desses sujeitos (Warburg e Joyce), fazendo com que o significante entrasse no pedaço de carne, e produzisse o delírio do Eu próprio, ocorre uma disjunção entre o corpo e a imagem desse corpo. Sendo a loucura a ausência de obra – como pensa Foucault – ou a obra em sua totalidade – como apregoa Ludueña –, talvez possamos ver o que, em ambas, acontece: essa “obra” já não se encontra no centro da cena recebendo o sentido de um outro sujeito, ela está desaparecida e, assim, o artista se torna sem obra, pois, se é a obra que produz o escritor – se é a imagem que produz o Eu – ambos desaparecem, permanecendo em um eterno jogo de presença e desaparecimento. Utilizo-me, para finalizar, das palavras de Stephen, sobre o centro esvaziado da cena: “O que é que vinha depois do universo? Nada. Mas será que tinha alguma coisa em volta do universo para mostrar onde acabava e onde começava o lugar do nada?” (p. 30)


NOTAS

1 Texto elaborado sob orientação de Eneida Medeiros, psicanalista e membro da AMP e da EBP, como requisito de conclusão do segundo ano do Curso de Psicanálise da Orientação Lacaniana da Seção Santa Catarina da EBP, turma 2016-2018.

2 Doutorando em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) sob orientação do Prof. Dr. Raúl Antelo com tese intitulada "A fixão e o desaparecimento no casus Ricardo Lísias". É aluno do Curso de Psicanálise da Orientação Lacaniana (CPOL) da Escola Brasileira de Psicanálise Seção Santa Catarina (EBP-SC) e participante das atividades da EBP-SC. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

3 “A ausência da obra coloca o problema mesmo da psicose na sua relação com o Outro do reconhecimento.” (tradução minha)

 REFERÊNCIAS

FOUCAULT, Michel. História da loucura: na Idade clássica. 8. ed. Trad. de José Teixeira Coelho Neto. São Paulo: Perspectiva, 2009.

_______. A loucura, a ausência da obra. In: _____. Problematização do sujeito: psicologia, psiquiatria, psicanálise. Manoel Barros da Motta (Org.). 3. ed. Trad. de Vera Lucia Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.

HULAK, Fabienne. La lettre et l’oeuvre dans la pychose. Paris: Éditions Érès, 2006.

JOYCE, James. Um retrato do artista quando jovem. Trad. de Caetano W. Galindo. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2016.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976). Trad. de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

_______. O Seminário, livro 22: R.S.I. (1974-1975). Inédito.

LUDUEÑA, Fabián. A ascensão de Atlas. Glosas sobre Aby Warburg. Trad. de Felipe Augusto Vicari de Carli. Desterro: Cultura e Barbárie, 2017.

MILLER, Jacques-Alain. La invención del delírio. In: El saber delirante. MILLER, Jacques-Alain et al. Buenos Aires: Paidós, 2009.

_______. Foraclusão generalizada. In: Todo mundo delira. BATTISTA, Maria do Carmo Dias; Laia, Sérgio (Org.). Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2010.

Resumo: Este artigo trabalha com o conceito de obra e sua relação com a loucura. A partir das noções de neurose e psicose, lê-se a deriva filosófica de Michel Foucault, quem pensa a obra melancolicamente, e Fabián Ludueña, o qual, por sua vez, coloca a obra mais ao lado da totalidade, trazendo à tona o caso de James Joyce. É o caso Joyce o que faz com que Lacan leia a neurose a partir da psicose, ao detalhar o que acontece entre S1 e S2 nas duas estruturas, tendo relevância, na clínica da foraclusão generalizada, o delírio como possibilidade de criação.

Palavras-chave: Psicose. Delírio. Foraclusão. Obra.

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