DA EXISTÊNCIA SEM MUNDO: UM-CORPO 

Fred Stapazzoli
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bellebelle de jour - reginaldo cardoso

“Se hoje eu tivesse de resumir o itinerário de Lacan, poderia dizer que ele vai da ontologia à henologia, do ser ao Um, e que o ângulo do qual se pode considerar a prática analítica varia singularmente segundo o ordenemos ao ser ou ao Um”. (MILLER, 6 abr. 2011). Este itinerário poderá adotar outro critério, à medida que se toma Lacan deslocando-se no registro do imaginário; um segundo momento, a primazia do simbólico; e, terceiro, o último ensino, no real. Mesmo considerando esta tripartição válida, como passar das três escansões a duas? É Miller (6 abr. 2011) mesmo quem o responde: “Podemos fazê-lo porque M1 e M2 decorrem ambos da perspectiva ontológica. É apenas com o momento do real [quando profere Yad’l’un] que Lacan abandona ou relativiza sua ontologia.” Em O ser e o Um, então, Miller propõe um percurso na obra de Lacan que nos remete a uma cronologia, mas também a uma lógica que se voltará a uma constante: “dar conta da relação do gozo com a palavra”. (FINA, 2016, p.133).

Entramos em terreno árido. As noções em filosofia muitas vezes nos são difíceis, mas foi algo que se impôs, uma aposta que fiz para trabalhar aquilo que se revelou como um ponto obscuro: a emergência de Um-corpo antes de o ser falante poder dizer “meu” corpo. E este texto foi um dos resultados de meu trabalho[1] no cartel “O inconsciente e o corpo falante”.

Antes de se pensar na passagem que se operou na obra de Lacan a partir da renúncia à sua ontologia para uma ôntica, a do gozo (MILLER, 2011), o que nos leva à henologia, procurei me localizar neste campo e eis o que encontrei. Já sabemos que a filosofia, um dos saberes pelos quais Lacan transitou para advogar sua causa, pode ser dividida em áreas de estudo. Há a epistemologia. Há também a Ética, por exemplo, Lacan (1997) dedicou um seminário para abordá-la. Há também a metafísica, como se diz, a filosofia primeira, aquela que, segundo Aristóteles, é uma ciência do ser enquanto ser, dos aspectos polissêmicos do ser, do qual se ocupará o ramo que denominamos ontologia. Isso está além do campo fenomênico, além da maneira como o ente se nos apresenta aos sentidos, o que afeta o vivo, o que se sente, como o gozo. Esta é a dimensão ôntica. Aquela, a ontologia, é o lugar da linguagem, do ser da linguagem, do Outro, do sentido, do discurso, é o próprio desfile dos significantes que representarão o sujeito, o seu ser – em nosso caso, falta-em-ser. A ontologia é tão infinita quanto podemos imaginar. “A associação livre é a ontologia desencadeada”, como nos dirá Miller (16 mar. 2011).

No campo mesmo da metafísica, uma metafísica radical, como a instaurada por um neoplatônico, Plotino (205-270 d.C.), os comentadores se referirão ao desenvolvimento de uma henologia. Mas isso fora iniciado já por Platão (427-347 a.C), no diálogo Parmênides. Henologia no lugar da ontologia, pois tratará de um princípio aquém e além do ser, já que diz respeito ao Um, à unidade como origem da existência, embora o Um não seja algo que propriamente é. Há. “A partir da henologia de Plotino, o ser é visto desde o Um, como sua derivação.” (BAUCHWITZ). Eis porque Miller (2011) afirma que a henologia é um campo mais restrito. É como traçarmos um paralelo entre ontologia e linguagem e henologia e lalíngua. Estas últimas não se prestam à cópula do verbo ser, não se referem a uma elucubração de saber, ao sentido, não atribuem predicados ao ente, não se prestam à comunicação. É da ordem da constatação. Há. Eis o canteiro teórico de Lacan (2003, p.400-446), um conhecedor da filosofia antiga, como podemos ver inclusive em “Radiofonia” a referência aos estoicos. É nesta tradição que Miller (9 mar. 2011) afirma Lacan se inscrever ao dizer “Há Um”, “Um para além do ser e da essência”, “o Um como superior, anterior, independente em relação ao ser.”

Se o ser depende do discurso, se o sujeito é efeito de uma operação significante, este real da linguagem é alcançado por intermédio da lógica e nos lança da ontologia à henologia, da linguagem à lalíngua.

Para haver discurso é necessário o Um, a marca originária; Há Um, e não o Um é... “O que é o Real?”, poderíamos nos perguntar com Miller (apud GOLDFARB, 2016, p.113). “É a pergunta que não há que se formular porque a forma mesma em que se apresenta não convém à elaboração do real tal como se impõe na experiência psicanalítica, ao menos segundo Lacan.” É interessante esta indicação. Por um lado, poderia nos deixar de mãos atadas pelo fato de talvez nos lançar ao mutismo, a um inalcançável da experiência. De outro lado, como abordar o real, então, já que a pergunta “O que é?” aponta para uma resposta última, a um conceito fechado, a um dado último, a uma última palavra sobre o real? Talvez outra formulação: qual relação, quais implicações o real tem na experiência da análise? “Esta indicação põe em relevo que o real e o verbo ser não têm o mesmo estatuto, não são compatíveis. Não se pode afirmar que o real é.” (GOLDFARB, 2016, p.113).

Este Um remete-nos à existência sem mundo, a um há, tão-somente. O Um é Um, mais aquém do ser e daí é derivado. Se o Outro não existe, eis outra forma de dizer Há Um, o Um do significante (S1) na dimensão de lalíngua, da fauna dos fonemas, é a marca traumática e originária que faz um acontecimento de corpo. No campo da existência, do S1 disjunto de S2, estamos no âmbito de Um-corpo e seu acontecimento, daquilo que lhe faz ressoar, como um eco de um dizer sobre Um-corpo, na impossibilidade, ainda, do falasser dizer “meu” corpo. Trata-se da “terência” primeira.

Da perspectiva do significante considerado isoladamente, Lacan (2003, p. 407) o abordará como signo[2], por exemplo, em “Radiofonia”. Se um dos problemas que nos é colocado é como se articulam ontologia e henologia – palavra e gozo –, segundo Miller (2006) foi necessário a Lacan adotar uma categoria mais ampla que a de significante – letra, o mais radical do significante, o sem sentido que nos remete ao Outro gozo, à produção de um gozo perverso, no sentido do autoerotismo, como Um-corpo que se goza tocado por lalíngua. (JURADO, 2016, p. 79). Noutras palavras, nesta perspectiva o sintoma não é tomado como mensagem, mas como escrita. “Quando [se] entra no campo da linguagem pela escritura, considerada a partir da letra como gozo, não há relação com o Outro. [...]. O gozo é autista.” (MILLER, 2006, p. 132).

À medida que o ensino de Lacan avança, observamos o psicanalista pôr em relevo Um-corpo, assim como anteriormente, pari passu, eram feitas elaborações sobre o Outro. Se se considerar o inconsciente estruturado como uma linguagem, pode-se abordá-lo a partir da iteração de S1, da produção do gozo fora de sentido, o que nos remete ao campo da henologia, mas também se pode abordá-lo a partir do discurso do Outro, da mensagem cifrada, o que nos remeteria ao campo da ontologia. Se o corpo próprio agora se nos afigura como um parceiro, o que concerne à reiteração do Um, do gozo perverso polimorfo da sexualidade infantil, mais aquém do Édipo, antes que a significação fálica o organize, daí podemos extrair consequências.

[...] esta mudança de nenhuma maneira implica a ideia de “curto-circuitar” a análise, é dizer que os efeitos de verdade [...] não poderão ser excluídos da análise; o interessante é que existe outra dimensão que parte do há um gozo não afetado pela interdição, um gozo do corpo que é prévio a qualquer dialética e qualquer relação com o Outro. (JURADO, 2016, p.75-76).

Ao falarmos da existência sem mundo de Um-corpo, no abandono da ontologia, estamos na “zona irremediável da existência”, “na qual se apresenta a ausência absoluta de caridade, de fraternidade, de qualquer sentimento humano. É para aí que nos leva a busca do real despojado de sentido.” (MILLER, 2014).


NOTAS 

[1] Jornada de Cartéis ocorrida nos dias 4 e 5 de agosto de 2017, na Seção de Santa Catarina da Escola Brasileira de Psicanálise.

[2] “Não é o que se dá com toda carne. Somente das que são marcadas pelo signo que as negativiza elevam-se, por se separarem do corpo, as nuvens, águas superiores, de seu gozo, carregadas de raios para redistribuir corpo e carne.” (LACAN, 2003, p. 407).

REFERÊNCIAS

BAUCHWITZ, Oscar Frederico. Ontologia e Henologia em Plotino. In: MACEDO, Monalisa Carrilho de; BAUCHWITZ, Oscar Frederico (Coord). GT-22: neoplatonismo. Disponível em: < www.cchla.ufrn.br/eventos/XI_Humanidades/programacao/gts/gt_22/GT-22.doc>. Acesso em: 17 jul. 2017.

FINA, Marcos. A las puertas del uno: lectura de un impasse. In: MATUSEVICH, José Ernesto et al. Conversaciones con El ser y el Uno: ensayos sobre el Curso de Jacques-Alain Miller “El ser y el Uno”.  Buenos Aires: Grama, 2016. p. 133-146.

GOLDFARB, Eduardo. Ontología y causalidade em Lacan. In: MATUSEVICH, José Ernesto et al. Conversaciones con El ser y el Uno: ensayos sobre el curso de Jacques-Alain Miller “El ser y el Uno”.  Buenos Aires: Grama, 2016. p. 97-115.

JURADO, Carlos. Hay Uno. In: MATUSEVICH, José Ernesto et al. Conversaciones con El ser y el Uno: ensayos sobre el Curso de Jacques-Alain Miller “El ser y el Uno”.  Buenos Aires: Grama, 2016. p. 71-81.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

_______. Radiofonia. In: ______. Outros escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 400-446.

MATUSEVICH, José Ernesto et al. Conversaciones con El ser y el Uno: ensayos sobre el Curso de Jacques-Alain Miller “El ser y el Uno”.  Buenos Aires: Grama, 2016.

MILLER, Jacques-Alain. Orientação lacaniana III, 13: O ser e o Um [2010-2011]. 2011. Inédito. Documento de trabalho para os seminários de leitura da EBP.

_______. Introducción al método psicoanalítico. Buenos Aires: Paidós, 2006.

_______. Apresentação do tema do IX Congresso da AMP. Paris, 14-18, abr. 2014.  Disponível em: <http://www.congresamp2014.com/pt/template.php?file=Textos/Presentation-du-theme_Jacques-Alain-Miller.html>. Acesso em: 17 jul. 2017.

Resumo: Dos possíveis itinerários adotados para se percorrer o ensino de Lacan, será abordada a transição da ontologia lacaniana à henologia. A partir deste percurso, coloca-se em relevo a constituição de Um-corpo no âmbito da existência a partir de lalíngua.

Palavras-chave: Ontologia. Henologia. Um-corpo. Lalíngua. Gozo.

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