CLÍNICA DA PSICOSE: UMA RELAÇÃO PRAGMÁTICA[1]

Henri Kaufmanner[2]
AP, Membro da EBP/AMP

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world in fragments III
world in fragments III - reginaldo cardoso

Parte I

Inicialmente gostaria de agradecer pelo gentil convite, pela acolhida e pela confiança de Oscar Reymundo e de Maria Teresa, enfim, pela confiança da Seção Santa Catarina ao me fazer este convite. Espero de alguma maneira ajudar no avanço de suas discussões. Quero também agradecer a presença de vocês em uma sexta-feira à noite, o que mostra a disposição, o interesse e a provocação que a psicose produz em cada um daqueles que estão aqui.

Pelo que fui informado, muitos de vocês estão começando sua prática e penso ser importante ressaltar a abertura feita por Maria Teresa e sua lembrança do convite de Lacan a não recuarmos diante da psicose. Venho de Belo Horizonte e lá, em Minas Gerais, temos a chance de conferir o que é o efeito da psicanálise na clínica da psicose, tanto na clínica chamada liberal como na saúde mental. Não que tenhamos nesse caso algum talento específico, como acontece com nosso modo de fazer bons pães de queijo, mas pela própria condição histórica e política de Belo Horizonte. A reforma psiquiátrica, podemos dizer, inaugurou-se em Minas no ano de 1979, quando a grande referência da antipsiquiatria, Franco Basaglia, esteve por lá. De uma maneira bem particular, em Minas Gerais a reforma se fez em uma estreita aliança com os psicanalistas, em especial com os psicanalistas de orientação lacaniana. Essa experiência e seu seguimento me permitem assinalar com tranquilidade que realmente é possível apostar em uma clínica da psicose. Obviamente não se trata de uma clínica fácil. Contudo, ela aponta um caminho por onde é possível a um sujeito inscrever algo da sua singularidade, da sua diferença, do seu modo de gozo, no laço social, na cultura, na cidade.

Podemos falar de uma pragmática da relação da psicanálise com a psicose e eu me organizei para trabalhar essa ideia em dois momentos. Em um primeiro momento, tomo como referência uma fala de Miller proferida há alguns anos, em um seminário realizado em Belo Horizonte: “como vocês podem perceber, Lacan, na verdade, é simples”. É claro que, ao dizer isso, Miller provocou risos entre perplexos e céticos na plateia – ele é uma pessoa dotada de inquestionável ironia – e naquele momento não sabíamos muito bem se aquela afirmação não seria mais uma. O fato é que, passados esses anos, eu ainda não chegaria a dizer que Lacan é simples, até porque não sei exatamente a que simplicidade Miller se referia. Entretanto, tenho para mim, a ideia de que as elaborações de Lacan são elegantes. A elegância em questão é uma referência matemática. Lacan tinha essa capacidade. Ele esforçava-se e ocupava-se de problemas complexos, matemizando-os, reduzindo-os, até encontrar um eixo comum possível de ser transmitido. Em matemática, quando se consegue fazer isso, diz-se que se está diante de uma demonstração elegante.

Fui informado que o público deste seminário seria formado por jovens colegas, iniciantes no curso de psicanálise, um público de formação diversificada no que diz respeito ao seu trajeto na psicanálise. Então me preocupei em tentar localizar o que é a psicose, qual o seu estatuto, e o que, em torno desta questão, está em jogo no ensino de Lacan, pois se os problemas com os quais hoje nos deparamos de alguma forma se apresentam em uma dimensão sintomática distinta, eles guardam uma certa identidade com aquilo que Freud já experimentava. Nós temos o privilégio, do qual não podemos abrir mão, de ler Freud a partir de Lacan e de ler Lacan a partir de Lacan.

Atualmente, na Associação Mundial de Psicanálise, trabalhamos utilizando como referência o chamado “último ensino de Lacan”.  Isso nos abre campo para uma releitura do que foi o seu primeiro tempo, o então primeiro ensino, e revela para nós que, na verdade, há aí um fio que Lacan vinha seguindo e que este se manteve ao longo de todo seu esforço. É o próprio Lacan quem nos ajuda a pensar assim. Eu sempre me oriento por uma referência que está presente no Seminário 2, que tomo como metodologia para estudar, para pensar Lacan. Lacan está se referindo a Freud, vou ler a citação para vocês:

Para nós, não se trata de sincronizar as diferentes etapas do pensamento de Freud, nem sequer de pô-las em concordância. Trata-se de ver a que dificuldade única e constante respondia o progresso deste pensamento, constituído pelas contradições de suas diferentes etapas. Trata-se – através da sucessão de antinomias que este pensamento continua nos apresentando, dentro de cada uma destas etapas e entre si – de defrontarmo-nos com o que constitui, propriamente, o objeto de nossa experiência. (LACAN, 1985, p.189)

Essa metodologia proposta por Lacan nos mostra de maneira muito clara que, realmente, a psicanálise não é uma ciência. Nós não estamos aqui operando a partir de um saber que se acumula e que, sobrepondo-se um sobre o outro, anularia aquele que o antecede, como se pode acompanhar na evolução do pensamento científico. Retomando, penso que essa metodologia proposta por Lacan para estudar Freud deve também nos servir muito bem para estudar o próprio Lacan. Afinal, que problemas convocam Lacan? Vamos tentar nos ocupar dos problemas a que a formalização teórica, a elaboração, a elucubração do saber lacaniano sobre as psicoses estavam afeitos. O que é que Lacan buscava organizar ao longo do seu ensino, da sua experiência com a psicose? O saber da psicanálise se constrói sempre em torno de um furo, e é isso que a metodologia lacaniana acentua.

Antes de ir ao assunto que nos interessa, gostaria de falar de algo que me aconteceu. Antes de vir para cá, Maria Teresa e eu trocamos alguns e-mails. Ela me perguntou se eu conhecia a cidade, a “terrinha”, e eu disse para ela que já estivera aqui há mais ou menos uns vinte anos – depois eu fui verificar e me dei conta de que já se haviam passado trinta anos – em um encontro de estudantes. Nós ficamos alojados na UFSC, e tive a oportunidade de conhecer algumas praias, tomei sorvete no mercado, passeamos um pouco pela cidade, mas passei muito mais tempo nas reuniões e nas festas estudantis. Quando aqui estive, a cidade ainda era Florianópolis. Naquele tempo, há trinta anos, chamou-me a atenção um certo traço conservador, havia um certo conservadorismo em Florianópolis, particularmente no convívio com as pessoas que eram da cidade. Hoje, quase trinta anos depois, quando eu retorno, eu encontro a Floripa. Florianópolis ainda está aí, mas o que se escuta é Floripa.

As notícias que nos chegam daqui, de Floripa, falam-nos das suas belas praias, do grande número de turistas vindos das mais diversas partes do Brasil e do mundo, do crescimento urbano provocado principalmente pela chegada dos moradores endinheirados, vindos de outros centros e daqueles prestadores de serviços que vêm oferecer os seus serviços aos endinheirados, além do estrangulamento do trânsito. São notícias que nos chegam. Ouvimos falar também dos lugares que estão “bombando”, das raves, dos corpos expostos ao sol em “azaração”, sabemos assim que Floripa contempla uma multiplicidade de formas de satisfação, de modos de gozo. Alguma coisa se operou aí, desde trinta anos atrás, de Florianópolis a Floripa, do conservadorismo à multiplicidade, à diversidade, à pluralização das ofertas de gozo. Floripa é outra e isso está ligado ao que a mídia oferta.

Eu vou pedir licença a vocês fazer uma pequena revisão histórica. Acho que vocês já conhecem muito bem aquilo que vou falar, mas peço um pouco de paciência, pois servirá para organizar minha exposição.

Florianópolis é um nome que homenageia Floriano Peixoto, um dos pais da República brasileira, é a cidade Floriana.

Floriano Peixoto foi conhecido como “Marechal de ferro”, foi vice-presidente da República, o primeiro vice-presidente da República, à revelia do presidente, que era Deodoro da Fonseca. Isso porque na primeira Assembleia Constituinte, eles foram eleitos e as eleições de presidente e vice-presidente eram realizadas de forma independente uma da outra. Houve então um movimento que exigiu que Deodoro renunciasse, menos de dois anos após ter assumido, após a Proclamação da República. Floriano Peixoto, assim, governou o Brasil de 1891 a 1894. Ele era ditatorial, autoritário e enérgico, governou o Brasil desrespeitando – vejam vocês como nossa tradição é mesmo antiga – a recém-promulgada primeira Constituição Brasileira, produzida em um golpe militar que instalou a República. Em que Floriano desrespeitou a Constituição? Pela primeira Constituição, se houvesse uma renúncia do presidente com menos de dois anos, seria necessária uma nova eleição e isso foi o que aconteceu. Deodoro da Fonseca renunciou menos de dois anos após sua posse. Floriano Peixoto, contudo, sustentava que ele era uma exceção, pois a Constituição estabelecia que essa regra se referia aos presidentes eleitos diretamente pelo povo. Tanto ele como Deodoro não teriam sido eleitos pelo povo, e sim pela Assembleia Constituinte, um colégio eleitoral e, portanto, não se enquadravam nessa regra, eram sua exceção.

Assim, governou com mãos de ferro, ditatorialmente, embora não tenha acabado com os partidos. Além dos partidos políticos, particularmente o mineiro e o paulista, Floriano enfrentou a segunda Revolta Armada do Rio de Janeiro e a Revolução Federalista do Rio Grande do Sul. Foi em 1894, ao final de seu governo e, em comemoração à derrota da Revolução Federalista do Rio Grande do Sul, que a então cidade de Nossa Senhora do Desterro passou a se chamar Florianópolis.

 A título de curiosidade, somente para nos localizarmos um pouco no tempo, entre 1891 e 1894, Freud escrevia os seus textos pré-psicanalíticos. “Projeto para uma Psicologia Científica”, o primeiro texto considerado psicanalítico, embora Freud não o tomasse nessa condição, é de 1895.

Florianópolis, portanto, é um nome carregado de sentido – político e histórico. É uma homenagem a um Outro que se apresentou como exceção e que, como exceção, consolidou essa pitoresca República Brasileira. Nossa brasilidade é marcada por essa particular relação com a lei, nosso “jeitinho” que, mesmo em termos republicanos, se repete até nossos dias. Posso supor que o traço de conservadorismo percebido pelo grupo de estudantes mineiros, um tanto arruaceiros, há cerca de trinta anos, talvez reverberasse um pouco dessa história.

E Floripa? O que podemos dizer desse nome? De pronto, de chofre a primeira coisa que se percebe é que em Floripa não há mais polis. Floripa não tem polis. O mundo hoje não é mais constituído pelas polis, as cidades na perspectiva dos gregos, onde os cidadãos se encontravam na ágora. Floripa é uma oferta da mídia que é a nova ágora e o desaparecimento do sufixo polis em Floripa parece que está muito adequado a esse real do mundo em que o tom é o da globalização. Isso se constata ao andarmos pelas ruas da cidade. Há restaurantes chineses, japoneses, italianos, há uma diversidade enorme na própria frequência de Floripa, de Florianópolis, e isso nos mostra um pouco os efeitos da globalização.

A civilização, então, assim chamada mundializada, caracteriza-se, particularmente, pelo declínio do pai, o que tem por efeito um esvaziamento tanto do sentido quanto da dimensão transgressiva do gozo. Floripa é aberta a diversas formas de gozo, creio que há trinta anos não era assim. Em Floripa também não há mais Floriano. A sociedade globalizada não vive mais sob o regime do pai e uma das consequências é o reinado do imperativo de gozo superegoico, atrelado às ofertas de consumo. Floripa é um gadget de consumo. Floripa é uma oferta ao gozo.

A hipermodernidade, delineada pelos efeitos da ciência, aliada ao discurso do capitalismo, deslocou a questão do impossível do gozo da relação sexual – como dizia Lacan: a relação sexual não existe – para a oferta infinita de objetos, que Miller nos aponta como sendo a lógica do não-todo. De Florianópolis a Floripa, houve um abandono da lógica do pai, do pai enquanto exceção, enérgico, autoritário, ditatorial, o pai que é homenageado pelo nome da cidade, homenagem essa que não acontece sem revolta, sem questionamentos, mas que é firmemente estabelecida.

Já Floripa é um nome de outra ordem, primeiro por que Floripa não é o nome da cidade, não é o nome próprio da cidade. De Florianópolis a Floripa, nós passamos da lógica do pai para a lógica do não-todo. Além disso, em Floripa há uma feminização do nome. É um nome meio feminino, Floripa, não é? Parece-me que sim, tem um quê de feminino, não é mesmo? Então, do sentido articulado ao pai, Florianópolis, a cidade Floriana, chegamos então ao nonsense, à falta de sentido de um nome que não remete mais a nenhum outro, ordenado pelo não-todo do gozo feminino, que é Floripa.

Floripa em si mesma também é uma exceção, só que exceção ao sentido. Então, se Florianópolis é uma homenagem àquele que se fez como exceção, hoje nós temos Floripa enquanto um nome que não faz sentido – o que quer dizer Floripa, a que remete Floripa? – nós temos uma exceção, aquilo que escapa ao sentido.  

Florianópolis é contemporânea de Schreber, Floripa aproxima-se mais de Joyce. Floripa exprime, expressa, modos de gozo, jeitos de ser, modos de saber fazer com o gozo, modos distintos que se articulam na cidade. Não posso dizer que Floripa é um nome de gozo porque a cidade em si não goza. Floripa é um gadget, um objeto contemporâneo oferecido para que as pessoas gozem, pelo menos é o que ouvimos falar. Não quero dizer que haja um problema maior em gozar, a questão é a medida. A cidade ainda conserva algo do rústico, algo da Florianópolis, algo dos Açores, mas a invasão dos modos, dos objetos do gozo, é muito destrutiva. Como preservar alguma coisa que permita à cidade manter a sua singularidade e não se reduzir a apenas um objeto a ser devastado pelo gozo? É uma questão que compete politicamente aos cidadãos de Florianópolis.

Este é o problema que norteou Lacan ao longo de seu ensino. Lacan iniciou seu percurso com Freud em uma clínica sustentada em torno do pai como exceção, o Nome-do-    -Pai. A foraclusão do Nome-do-Pai era o elemento estrutural que definia a psicose. Lacan era sensível ao seu tempo e precisou fazer avançar a psicanálise na medida em que ele percebia o que está em jogo nessa passagem da cidade Floriana à Floripa ou, vamos dizer, da mulher de Deus em Schreber à de Joyce com o sinthoma.

Lacan diz que o sinthoma é o nome de Joyce. Joyce não deixou de se chamar Joyce, James Joyce, mas o nome de gozo de Joyce é o sinthoma. É como Joyce gozava, já para Schreber, a mulher de Deus, o Outro se apresentava ali de alguma maneira constituído. Não é difícil perceber que da mesma maneira que, diferentemente de Florianópolis, Floripa não tem polis e não tem Floriano, de Schreber a Joyce, o Outro sumiu da cena.

Nós podemos então concluir que o problema da psicose não mudou tanto assim. Mudaram as soluções que os sujeitos foram encontrando para tratar sua psicose, em função da inexistência do Outro, e as ofertas que o laço social, que a cultura disponibiliza para essas soluções. Assim podemos colocar em questão as variáveis sintomáticas de acordo com o real em jogo em cada época. Tomarei como eixo de minha exposição a afirmação de que, na verdade, há um problema da psicose que está presente desde um primeiro momento do ensino de Lacan. Ao invés de tentar sincronizar primeiro ensino e segundo ensino, orientando-me pela metodologia que Lacan nos propõe, tentarei me ocupar em verificar que problema está em jogo nessa evolução.

Nós estamos acostumados a dizer que Freud inicia, inventa a psicanálise a partir de seu encontro com a neurose, com as histéricas – isso é uma verdade, nós sabemos como as histéricas interrogavam Freud e aqueles que então estavam com ele. Breuer é um exemplo. Sabemos também que Freud percebeu que havia alguma coisa ali da ordem do sexual, e como esta observação freudiana está implícita no conceito de pulsão. Acostumamo-nos a pensar que Lacan chega à psicanálise pela psicose. Contudo, se fizermos uma pequena torção, se pensarmos na perspectiva do saber em jogo, não há como negar que há para Freud um encontro fundamental com a psicose na constituição, na construção e na invenção que ele faz da psicanálise.

O primeiro caso de psicose de Freud, arrisquemo-nos, foi o caso Fliess. Toda a elaboração primordial que Freud faz da psicanálise está intimamente relacionada à experiência transferencial, a suposição de saber em Fliess, que é reconhecidamente – hoje nós podemos dizer isso – um paranoico. Há vários autores que dão uma atenção especial a esse ponto, Octave Mannoni, Erik Porge...  Recomendo a quem tiver interesse Roubo de Ideias, de Erik Porge, um livro bem interessante. É no próprio Lacan que eu me apoio. Vou citá-lo:

O que na época para Freud é a fala que polariza e que organiza toda a sua existência é a conversa com Fliess, ela continua em filigrana durante toda sua existência como sendo a conversa fundamental No final das contas é nesse diálogo que se realiza a autoanálise de Freud, é por intermédio disso que Freud é Freud e que ainda hoje estamos falando nele. O resto todo, todo o resto, o discurso douto, o discurso cotidiano, a fórmula da trimetilamina, o que se sabe, o que não se sabe, a tralha toda está no nível do eu. Isto tanto pode fazer obstáculo quanto assinalar a passagem daquilo que está se constituindo, ou seja, este vasto discurso endereçado a Fliess que vai constituir mais tarde toda a obra de Freud. A conversa de Freud com Fliess, a fala fundamental, que é então inconsciente, é o elemento dinâmico essencial. Por que será que ela é inconsciente naquele momento? Porque ela ultrapassa infinitamente aquilo que os dois como indivíduos podem então apreender conscientemente dela, afinal são apenas dois toquinhos de sábio como os outros trocando ideias meio malucas. (LACAN, 2010, p.158)

Não penso que, até o final de seu ensino, Lacan sustentaria isso da mesma maneira. Nesse momento, no Seminário 2, Lacan é um estruturalista que se apoia na ideia de que haveria um simbólico predominante, uma frase contínua, uma fala fundamental que nos antecede e na qual nós nos inserimos. Da possibilidade ou não dessa inserção é que se define então o que seria neurose ou psicose. A neurose acontece quando se consegue, através do Édipo, enlaçar-se a esse discurso do Outro, contínuo, que nos antecede e, pela foraclusão do Nome-do-Pai, tal enlaçamento não seria possível.

Em uma primeira aproximação, tal noção parece bem distinta daquilo que Lacan vai elaborar no final de seu ensino e que Miller retoma em um dos seus últimos seminários – a dimensão traumática de Freud. Acho interessante essa noção de que há uma dimensão traumática, produzida por Freud no saber, de que Freud é um trauma. Freud como real que fura o saber é uma leitura contemporânea e, repetindo, algo distinta dessa afirmação estruturalista de Lacan.

Estou citando Lacan, pois quero delimitar qual é o problema em jogo na psicose, qual é o problema com que então Freud se deparava e que fez com que ele precisasse amarrar--se aí em uma suposição de saber, muitas vezes alucinado, o saber suposto em Fliess. Freud chega a nomear Fliess “como o Messias que deverá resolver graças a algum progresso técnico o problema exposto”. Quer dizer, ele localizava Fliess como o Messias que iria resolver os problemas com os quais ele estava se deparando. Que problemas eram esses? Freud percebia que existe uma disjunção fundamental entre aquilo que é da ordem do corpo e aquilo que é da ordem da subjetividade.

Vejamos o texto Concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão, que está no volume XI da Standard. Freud escreve, neste texto, que o corpo é escravo de dois senhores. Falando da cegueira histérica, ele mostra como o olhar, uma função, digamos assim, orgânica, é afetada pela incidência da pulsão sexual que subverte toda a função de um órgão. Está aí a radicalidade do conceito de pulsão em Freud, está aí a necessidade de Freud construir o conceito de pulsão sempre em um dualismo, pulsão sexual/pulsão de auto conservação, pulsão sexual/pulsão do eu, pulsão de vida/pulsão de morte. Em última instância, ele está falando de uma duplicidade que é – agora já podemos falar lacanianamente – a do sujeito e do corpo.

O problema com o qual a psicanálise se depara desde os seus primórdios diz respeito a essa disjunção estruturante que é a nossa relação com o corpo. Nós falamos “eu tenho um corpo”, nós não falamos “eu sou um corpo”. Porque não há nada que consiga resolver esse problema cartesiano entre a res cogito e a res extensa, entre o pensamento e o corpo. Quer dizer, é um problema que vem formalizado desde Descartes – penso, logo existo! O pensamento aqui, e o corpo, como é que fica?

Lacan também, a seu modo, vai se haver com esse problema desde o início de seu ensino. Ele diz, em um primeiro momento, que nos enlaçamos com essa fala fundamental através do Édipo. Isso vocês vão encontrar na Questão Preliminar, na que Lacan sustenta que, dependendo do que se passa no Outro nós teremos neurose ou psicose. Lacan jamais estabeleceu a neurose como um padrão. Na Questão Preliminar o que ele trabalha é a oposição neurose /psicose. Ele aponta ser no Édipo onde podem ser respondidas as questões que dizem respeito à vida, à morte, à posição sexual, sou homem, sou mulher, à filiação, o que sou nesse mundo. Então, em um primeiro momento, Lacan nos diz que a neurose encontra a possibilidade de enlaçamento com esse discurso fundamental, simbólico, que é o Édipo para operar com essas questões. Eu tinha uma paciente que dizia, “eu sou mais velha que meu pai”. Porque essa temporalidade não é um dado natural, não há nada que diga que eu sou filho do meu pai, da minha mãe. Tudo isso é uma construção simbólica que o Édipo opera. Há ainda aqueles psicóticos que dizem algo como: “na verdade eu tenho dois mil anos, mas fui posto na barriga da minha mãe de sacanagem que fizeram comigo, porque, na verdade, eu sou o Anticristo ou Matusalém, ou quem quer que seja”.  A experiência da infinitude, sem esse recurso, sem essa extensão, essa amarração que o Édipo pode fazer, produz isso no corpo, ele experimenta essa imortalidade no corpo.

Esse problema já estava colocado, desde o início, em Lacan. Essa disjunção entre o que é da ordem do inconsciente, do sujeito do inconsciente, do discurso, da fala fundamental, e os fenômenos de corpo.

Freud acreditava que Fliess encontraria na biologia a resposta para essa questão. Nós aprendemos com Lacan que o psicótico, por ser muito afeito a se colocar como objeto diante do Outro, carrega o objeto no bolso. Vale lembrar que ele pode disputar com o analista o lugar de agente do discurso, como objeto, e pode, consequentemente, apresentar-se como suporte transferencial, ou seja, um sujeito ao qual se supõe saber. A história é cheia de exemplos de seitas nas quais o líder espiritual pula pela janela e mil pulam atrás. Não faltam exemplos de suicídios coletivos em que essa aposta decidida no saber está colocada. Freud então supõe um saber em Fliess, o Messias que encontraria as respostas aos seus impasses diante do encontro da disjunção entre o sujeito e o corpo. Fliess, por meio de sua delirante teoria, explica essa experiência do gozo no corpo, esse gozo feminino. Para ele a forma dos cornetos nasais está diretamente ligada à forma dos genitais, ou ainda, existem os ciclos de 23 e 28 dias que regem a sexualidade.

A questão assim colocada, tanto para Freud quanto para Fliess, é a de como dar sentido a isso que Lacan vai nos esclarecer como sendo a incidência da língua sobre o corpo produzindo um mais-de-gozar que é o a. Vocês vão encontrar isso no Seminário 17. O objeto a tem um efeito feminizante. Então, Fliess está tentando dizer o que é isso que o corpo experimenta e tentando encontrar uma medida para esse gozo. Freud também, só que Freud está buscando isso no corpo das histéricas, no impasse que as histéricas apresentam. Quando ele diz essa cegueira histérica é uma consequência da sexualização do olhar, ele quer dizer que há um gozo que está incidindo sobre esse corpo, ele delimita a grande questão que se apresenta para a psicanálise e com a qual ela vem lidando desde os primórdios: como ter um corpo? Como operar com um corpo que pela incidência da língua– aí estaríamos ainda mais contemporâneos ao último ensino de Lacan – produz um mais-de-gozar? Como operar com esse mais-de-gozar? Essa é a grande questão com a qual a psicanálise se ocupa, esse problema é o que está em jogo e que na psicose aparecerá de uma maneira muito radical.

Freud acolhe com muita naturalidade as teorias delirantes de Fliess sobre a bissexualidade. Ele percebia que havia algo que ia além do masculino, do fálico, que havia alguma coisa que se experimentava nesse corpo e que está nos Três ensaios sobre a sexualidade, na definição de pulsão. Pulsão é um conceito entre o somático e o psíquico. É uma medida de esforço da vida anímica. A pulsão é a medida do esforço de enlaçar o corpo.

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Seguirei agora tomando o momento inaugural da psicanálise. Freud delimita esse momento ao imaginar que ele mereceria uma placa comemorativa, inaugural, que seria colocada na pousada onde ele havia passado um fim de semana, e que se chamava Belle Vue, bela visão. É ali que Freud sonha o sonho inaugural da psicanálise, o sonho da injeção de Irma, na pousada Belle Vue. Em uma “pousada hospital”, Schreber, antes do seu surto, tem analogamente uma intuição inaugural. A intuição de como seria belo ser uma mulher sendo copulada. Por sinal há um problema grave de tradução nas memórias de Schreber para o português porque está traduzido como “como seria bom”. Schreber não escreve como seria “bom” ser copulado e sim como seria “belo”. Isso muda muito o sentido das coisas, como de Florianópolis para Floripa. No texto em alemão, encontramos o termo Das Schöne.

Freud – originalmente um cientista – inicialmente acreditava que encontraria no corpo os elementos que explicariam sua descoberta. Se vocês lerem Sobre o narcisismo: uma introdução, verão que no momento em que Freud está falando que todo corpo é suscetível de excitação, ele insinua que um dia ainda vai se descobrir que o corpo tem intumescências em outras regiões além do pênis. Fliess encarnava essa verdade para Freud. Vejamos o sonho da injeção de Irma. Gosto de pensar a psicose a partir desse sonho, pois ele nos permite pensá-la sem estarmos diante de uma psicose. Assim, quem sabe, podemos parar de acreditar que a psicose é algo tão diferente da neurose, por exemplo.

Se retomarmos a elaboração de Lacan no Seminário 2 a respeito desse sonho, encontraremos a certa altura a afirmação: “isso que poderia parecer delirante realmente o é”. Ele diz que Freud só não enlouqueceu ali porque, ao relatar o sonho, ele se dirigia ao Outro, ou seja, ele mantinha o laço com o Outro. Vale ressaltar essa questão fundamental, o laço com o Outro, a dimensão do laço social. Em Uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose no esquema I, vocês verão que há uma linha em que Lacan escreve “dirige-se a nós”, em Schreber: abaixo, “ama sua mulher”; acima, “dirige- -se a nós”. Está matemizado, no Esquema I, certa relação ao Outro, ou seja, ao laço social como Outro.

outro

Freud convida Fliess para operar sua paciente Emma Eckstein, porque ela sofria de uma “neurose nasal reflexa”. O caso Miss Lucy, dos Estudos sobre a histeria, também é um caso interessante para se pensar sobre o problema. Freud buscava amarrar essa disjunção pela biologia, dar um sentido ao que ele não desconhecia: a exterioridade do corpo. Então, Fliess opera Emma e, alguns meses depois, ela apresenta uma supuração terrível no nariz. Eles finalmente descobrem que Fliess havia esquecido umas gazes dentro do nariz de Emma. Freud fica muito incomodado com isso e então sonha que a paciente não melhora porque não aceitou a solução proposta por ele.

Benditas as histéricas que continuam não aceitando. Será que elas ainda continuam não aceitando as soluções que o Mestre propõe? Pensemos nas cirurgias estéticas, as práticas de manipulação de corpo. Por que será que a histeria na contemporaneidade não aparece como era? Onde a histérica aponta a falta no Outro? Ela continua, mas não é do mesmo jeito, ou as histéricas foram definitivamente tomadas pela devastação?

 Pois bem, Freud sonha que a sua paciente não melhora porque ela não aceita a solução que ele havia proposto. Logo essa ideia de que há algo que se esclareceria pela via da organicidade mostra-se equivocada. O sonho continua, com a entrada em cena de seus colegas médicos. Ele convoca os seus pares, seus colegas, na medida em que se sente acuado. É como se ele convocasse o Conselho Regional de Medicina para este lhe falar: “Não, realmente você tem razão, a seringa não estava suja, na verdade nem havia pus, não teve nada a ver com você. É ela, a paciente, que atrapalha.”

Então, Freud convoca seus pares, que são o seu eu. Lacan assinala isso. Lacan critica Freud por ter se detido em sua interpretação do sonho no ponto em que apenas se alivia de a culpa por sua paciente não ter melhorado. Lacan afirma que há um mais além a seguir nesse sonho. Freud convoca os bufões, o “trio parada dura”, os três médicos e, no momento em que aparecem no sonho, eles são o eu de Freud. O que é constatado pelo desaparecimento desses três médicos decorrente da visão por Freud da garganta de Irma, quando o eu de Freud desaparece. Lacan vai dizer: surge a fórmula da trimetilamina, surge uma alucinação. A trimetilamina é Floripa, a trimetilamina é um possível nome de gozo para Freud, a trimetilamina é o sinthoma de Freud. Lacan de alguma maneira já estabelece isso nesse seminário, ele nos lembra que a trimetilamina é um dos metabólitos da decomposição do esperma. Freud, na época em que estava lá, junto com Fliess, nessas elucubrações, queria investigar os meninos, seus filhos, que estavam se tornando adolescentes, queria ver o que permanecia em suas camas após as noites de polução. Marta, contudo, não permitiu a Freud realizar tal pesquisa. Mas Fliess conferia essas secreções na cama, para encontrar essa substância, quase como o enxofre dos alquimistas, aquela que transformaria pedra em ouro. Vejam que não está muito longe dos alquimistas e que de certa maneira vai na mesma direção. Fliess buscava nos corpos a substância do sexo. Então, Freud sonhava com isso e Fliess lhe oferecia isso. Em Freud, contudo, isso aparecia em um sonho, na trimetilamina, nessa fórmula totalmente fora do sentido.

Ao comentar esse sonho, Lacan refere-se ao aparecimento da fórmula fazendo referência à locução de Deus a Moisés na sarça ardente: “Sou o que sou”. É uma outra maneira de falarmos da letra. A letra é o que é. É um significante que não remete a outro significante. É o significante fora do sentido, desenlaçado do Outro, é uma alucinação, é o sonho alucinatório, só que Freud está dormindo, mas é uma alucinação. A fórmula aparece escrita para ele, ele vê os átomos de carbono, a fórmula acéfala que, Lacan acentua, é a fala fundamental, isso é o inconsciente, essa é a palavra que é a palavra, é o que é. Como diz Freud, em Avaliação do inconsciente, último capítulo do livro do inconsciente, um buraco às vezes é somente um buraco, não remete a mais nada. É um S1 que circunscreve o gozo de Freud. É alguma coisa que, por mais que seja o resíduo do esperma, uma organicidade, no sonho aparece em sua dimensão de letra, um significante extraído do campo do sentido. Aparece enquanto a exceção, o modo de gozo singular de Freud. Freud transformou o somático em psíquico, o resíduo do esperma em letra. O conceito de pulsão é a expressão do sinthoma de Freud.  É nesse momento que ele escreve que queria que houvesse uma placa: “doutor Sigmund Freud teve um sonho que inaugurou a psicanálise”. Quando rompe com Fliess ele afirma “eu triunfei onde o paranoico sucumbe”. A invenção da psicanálise é o triunfo de Freud.

Agora, pensemos o sonho da injeção de Irma, em um processo ao avesso. Qual é o tratamento para a alucinação que aparece no sonho da injeção de Irma? É o eu de Freud. Afinal, foi preciso o desaparecimento do eu para que a alucinação da fórmula da trimetilamina se apresentasse. Portanto, ao avesso, podemos afirmar que o eu – ao menos o eu do narcisismo – trata a alucinação. Não é por acaso que logo depois de escrever os comentários sobre as memórias do presidente Schreber, Freud produz o texto Sobre o narcisismo: uma introdução. Nos tempos em que o Outro existia, nos tempos em que o saber suposto ao pai sustentava a construção de um laço com a linguagem, um laço com o desejo, Freud construiu uma teoria sobre o que permitia aos neuróticos, como ele, triunfarem ali onde o paranoico sucumbe. Encontraremos algo disso no Estádio do espelho de Lacan. Na medida em que posso me submeter à nomeação que o Outro me imprime por seu desejo e me fazer à imagem do que eu interpreto que é esse desejo, eu triunfo, eu não fico acometido pela alucinação, por essa fala fundamental. Retomemos o que disse Lacan, a fala que permanece e vai ser toda a obra de Freud. Ou seja, a incidência da língua sobre o seu corpo, esse fato fundamental que constitui o humano em sua disjunção estrutural incurável e que, vamos dizer assim, nos faz eternamente padecer da demanda de satisfação da pulsão de morte de reintegrar esse corpo. Afinal de contas, é outra maneira de ler aquilo que é, verdadeiramente, o sentido do conceito de castração, aquilo que Lacan vai dizer da castração que é real, ou que não há relação sexual: estamos condenados a viver separados de nosso corpo, mas pelo menos podemos dar um sentido a isso, mesmo que hoje isso já não seja muitas vezes tão simples.

O eu narcísico é a forma como se constrói um corpo imaginariamente enlaçado ao desejo, marcado pela lei do pai. Um “Eu sou” que, às vezes, dá um trabalho danado. Porque havia um eu, havia um eu narcísico, foi preciso o desejo decidido de Freud para sonhar uma alucinação, para sonhar a trimetilamina. Joyce, contudo, escreve suas alucinações, o que ele apresenta, muitos anos mais tarde, em “Finnegans Wake”, é a escrita com o mesmo estatuto disso que Freud sonhou.

Então, o problema já estava lá colocado, a questão sobre o que acontece quando não se tem o recurso de se produzir um corpo a partir do enlaçamento ao desejo do Outro, quando não se opera com o Édipo. O Édipo une a lei da castração ao desejo do pai.

Há uma pequena experiência muito comentada, muito conhecida, feita com ratinhos. Você instala um estimulador no centro de prazer do rato, ligado a uma barrinha, de modo que, toda vez que o rato aperte a barrinha, ele se estimule prazerosamente. Quando o rato aprender que toda vez que aperta a barrinha, ele sente prazer, ele vai começar a fazer isso compulsivamente até morrer. Miller cita essa experiência, a entrada do rato no registro da linguagem, que é mais ou menos um aperta-não-aperta, uma alternância de presença e ausência – a linguagem binária. Ela retira o rato da natureza, introduzindo-o no registro da pulsão de morte e, como não pode falar, ele morre. Como não tem como se proteger com algum obstáculo dessa demanda insaciável da pulsão, que nós podemos chamar de imperativo superegoico, de supereu materno, ele morre. Qual é então a grande questão que no primeiro ensino de Lacan está colocada? O pai, a metáfora paterna, o Nome-do-Pai na primeira formulação lacaniana é aquilo que consegue, mesmo que com certa precariedade, barrar a compulsão à repetição da pulsão de morte, que tenta restabelecer – entre aspas, porque isso nunca aconteceu, isso é mítico – a unidade do corpo. O que nos convém refletir é como isso se apresenta em nossos tempos, já que o pai não está assim com essa bola toda. Como é que vamos trabalhar ali onde nós vivemos, no domínio da pulsão de morte, no campo do gozo, em Floripa. Quero deixar claro que uso Floripa aqui no intuito de ilustrar meu pensamento, e não que suponha uma perversidade específica à cidade. Não estou falando de Sodoma e Gomorra. Não se trata de uma questão moral ou religiosa.

Coloquemos a questão de um modo que me parece que nos ajudará a esclarecer esse ponto. O que é o pai nesse primeiro momento da psicanálise? O pai é a exceção, o pai primevo, aquele que podia gozar de todas as mulheres. Podemos formular isso de uma outra maneira. Ele podia gozar de todas as mulheres porque nem toda mulher podia gozar dele, esse é o pai primevo. É o pai que barrava a mulher de seu gozo, o pai que de alguma maneira se colocava como a exceção à presença incisiva não toda do gozo feminino. Essa é a função da metáfora paterna, essa é a função do Édipo. Se retomarmos o sonho da injeção de Irma, veremos que não é por acaso que Lacan se ocupa disso em seus primeiros seminários. Ele já está ali preocupado em esvaziar a dimensão messiânica, religiosa do pai, de certa maneira presente em Freud. Em RSI, quando Lacan está operando com o nó borromeano, ele diz que o quarto elemento do nó em Freud não era lacaniano, porque o quarto elemento para Freud era a realidade psíquica e a realidade psíquica era mística, religiosa. Então, não é um mero acaso o fato de Lacan, desde o começo, ocupar-se da trimetilamina, por sua fórmula. Ele busca a cientificidade, a escrita, a letra, a palavra que é a palavra. Se em um primeiro momento ele continua dando a essa dimensão simbólica um valor transcendental, não é mais Deus, mas o simbólico que é transcendente. Trata-se de um passo, embora insuficiente, que representa um avanço para a psicanálise, o passo possível a Lacan naquele momento: a desmistificação do pai. É o simbólico que é transcendente, o simbólico é como que deificado. Miller na virada do milênio assinalava de maneira muito interessante que o grande temor da civilização naquele momento era o bug nos computadores, que os computadores não conseguissem lidar com a chegada de 2001. Quando olhamos para trás parece tão estúpido, não é? Isso foi um problema, muitos se preocuparam, e não aconteceu basicamente nada, quase não se ouviu falar de computadores paralisados. Diferente do que se passou na virada do primeiro milênio, quando os temores eram provocados por Deus e a possibilidade do final dos tempos, nesse segundo milênio o grande temor era que os computadores falhassem. A era da ciência já estava há muito instalada.

Todo esse primeiro movimento de Lacan, chamado de seu primeiro ensino, o do Lacan estruturalista, permite-nos, na verdade, perceber a dimensão traumática da língua e como nós nos inserimos no inconsciente estruturado como linguagem. Já posso falar “a língua” porque nós já chegamos aqui. Então, o pai sai da dimensão transcendental. Em um dos primeiros textos de Lacan, Os complexos familiares, ele já denuncia essa queda da função do pai. Ele assinala o fato de que Freud, de alguma maneira, inventa a psicanálise para salvar o pai, e Lacan já se ocupa em esvaziar esse estatuto religioso que, de alguma maneira, perdurou em Freud, por mais que ele tenha tentado sair disso também. Em Moisés e o monoteísmo a questão da pluralização dos nomes do pai está colocada na medida em que Freud defende que Moisés não era um só. Talvez se Freud tivesse vivido ainda mais poderia ter evoluído nesse ponto.

Para não nos estendermos demais, o que podemos pensar sobre a psicose hoje em dia? Não que não tenhamos mais delirantes. Temos delirantes, temos casos schreberianos, sim. O delírio, como bem apontou Maria Teresa, é algo da ordem da reconstrução, de uma reestruturação dos laços com o Outro, é um novo eu que o psicótico constrói, às vezes muito precariamente. Freud já o percebia e Lacan assinala que a construção delirante é a maneira que o psicótico encontra de restabelecer os laços com o Outro. Ali onde o narcisismo, ou o Édipo, não opera, ali onde se dá a foraclusão do Nome-do-Pai, o delírio pode funcionar como suplência.

O problema, contudo, permanece o mesmo: como tratar essa demanda insaciável da pulsão, do supereu, do supereu materno? Como apaziguar esse corpo em sua relação de exterioridade, corpo esse despedaçado pela experiência da pulsão? Como dar sentido a isso, como organizar essa experiência, como não se devastar com essa questão? O delírio é um novo eu:  eu sou Napoleão, eu sou Osama Bin Laden, eu sou toxicômano. Essa referência à toxicomania já nos aponta o lugar que muito frequentemente ela pode ocupar: uma suplência para a psicose.

É um novo eu, está na Questão Preliminar: “o inconsciente de Schreber desde muito cedo advertiu da falta produzida pela ausência da mãe”. Escutamos muito falar que na psicose a mãe não falta. Isso é uma tolice. Não há como haver uma mãe onipresente. Ela é sempre apreendida na dialética da presença e da ausência. Lacan deixa isso muito claro na Questão preliminar. O que ele ressalta é a importância da significação que o sujeito possa dar à dimensão simbólica da presença e da ausência da mãe na neurose. “O que é isso, por que essa mulher sumiu, o que ela está pensando que eu sou?” “Eu sou o bonitinho da mamãe, eu sou o falo da mamãe. Eu vou ser bonitinho, eu vou comer direitinho, eu vou fazer medicina.” Eu vou me fazer à imagem do que eu interpreto que seja o seu desejo.

O que diz Lacan sobre Schreber? Na impossibilidade de se fazer o falo da mãe, desde cedo o inconsciente lhe adverte dessa impossibilidade e indica a ele o caminho de se fazer a mulher que falta aos homens. A intuição de como seria belo ser uma mulher sendo copulada é um dos momentos iniciais da experiência de Schreber. E todo o seu trabalho delirante vem no intuito de tornar possível conciliar-se com essa solução. Ele só pôde, inclusive, de alguma maneira, consentir com a eviração, com a mudança de sexo, após a sua morte delirantemente experimentada, após a queda de todas as identificações, quando se reduziu ao cadáver leproso conduzindo outro cadáver leproso. É como se ele dissesse, “já morri mesmo, pelo menos eu salvo a humanidade”. Desse modo, recupera alguma coisa da ordem do ideal, da filiação (ele não podia ter filhos), consentindo com a solução de se fazer uma mulher, o que não quer dizer que ele seja A mulher. Lacan – e Freud – assinala que é uma solução assintótica, infinitizada, para o futuro. Um dia Deus vai chegar aqui e vai falar, viu bem, está na hora; um dia, em um futuro, sempre em um mais além... Ele, Schreber, não se fez A mulher.

 Curiosamente Lacan acentua esse ponto na Questão preliminar. Ele ressalta o fato de Schreber se olhar demoradamente no espelho, vendo em seu corpo atributos femininos. Schreber se vestia para o olhar de Deus, que é uma analogia ao estádio do espelho. Ele produz outro eu, imaginariamente constituído, feminino; fazer-se mulher não era apenas a solução de Schreber. Fazer-se mulher, a feminização, era estrutural, uma resposta do real. Schreber precisou encontrar uma solução para suportar isso. Não se trata de uma saída constituir-se mulher, porque ele não era nada disso, o que lhe faltou foi outra escolha. Estruturalmente estava determinado, isso Lacan está dizendo: desde cedo seu inconsciente já adverte, na impossibilidade de ser o falo para a mãe, ser a mulher que falta aos homens, e o belo aí como a última visão antes do horror. Essa é a solução schreberiana que se ordena ao estilo do pai, delirantemente constituindo esse Deus que Schreber busca salvar para garantir que esse Outro permaneça lá, naquilo que Lacan vai chamar de lei transversal, constituir um Outro para se enlaçar a esse Outro. Então, é uma solução que refaz o laço com o Outro.

Não é que em nosso tempo não encontremos esta sorte de solução. Mas nos dias de hoje dois pontos fundamentais devem ser considerados: primeiro, o Outro não existe; segundo, na verdade, há um número enorme de psicóticos que nunca se organizaram sustentados pelo Outro, mas que nunca, também, desencadearam uma crise. Não se trata exatamente de uma novidade, mas o que o ensino de Lacan nos permitiu, em sua evolução, foi perceber que psicose não é sinônimo de loucura. Aprendemos a estudar a psicose a partir dos asilos. Hoje em dia também, tranquilamente, afirmamos que neurose não é sinônimo de normalidade. O que o mundo contemporâneo mostra é que os psicóticos estão se dando muito bem e os neuróticos estão absolutamente loucos.

Parte II

Hoje voltaremos a essa oposição Floripa-Florianópolis. Vamos ampliar a discussão, buscar apreender melhor sua função operadora para nós. Vamos nos ocupar em entender melhor qual a leitura que Lacan faz desse problema que na psicose apresenta suas especificidades, embora não se trate de um problema exclusivo da psicose. Como tratar um corpo afetado pela linguagem é, afinal, uma questão humana. Acredito que em nossa conversa de ontem foi possível esclarecer que, na verdade, o que a neurose sempre nos mostrou é que ela consiste em um tratamento específico do corpo. Entretanto, em nossos tempos, essa forma neurótica de se tratar está em declínio, vem mostrando sua precariedade.

Retomemos o nosso problema a partir da experiência com o ratinho à qual me referi. O ratinho que entra no campo da linguagem, que é atravessado por esse campo. Podemos também recorrer a outra conhecida experiência. A experiência de Pavlov com um cachorro. Lacan também se refere a ela. Pavlov acostumou um cachorro à associação entre um estímulo sonoro e a presença de um alimento. O cachorro desenvolvia uma gastrite, pois após habituar o animal a essa associação, Pavlov retirava a comida restando apenas a presença ou ausência do estímulo sonoro. Para Lacan, o cachorro desenvolvia uma gastrite simplesmente porque ele não poderia se perguntar sobre as intenções do cientista. Isso está no Seminário 11.

Nesse seminário, essa experiência permite pensar sobre o que é da ordem do fenômeno psicossomático. Para o pequeno animal não há como se perguntar, pois ele não tem os recursos, não tem como se articular à linguagem. Até onde sabemos, os cachorros não falam. Eles não falam, mas são sensíveis ao inconsciente, assim como os ratos. Nós vimos que o rato morre porque a incidência da língua sobre o corpo dele produz um mais-de-gozo mortífero, que Freud nos apresenta a partir do conceito de pulsão de morte. Retomemos nossa questão: como tratar isso?

Tomando, então, o exemplo do ratinho e do cachorro do Pavlov. Pela problemática que aí se apresenta, podemos deduzir que a questão em jogo é a disjunção entre o gozo e a palavra, pois o ratinho morre e o cachorro desenvolve uma gastrite devido ao fato de que, apesar de sofrerem um certo efeito do significante, são absolutamente incapazes de, fazendo um uso próprio do significante, operar sobre esse gozo que se apresenta no corpo – e é isso que Lacan vai assinalar no que diz respeito ao fenômeno psicossomático. Então podemos dizer que o problema está articulado à possibilidade ou não de associar significante e gozo.

Sabemos, e isso a neurose nos ensina, que o neurótico o é porque consegue, pela via do pai, fazer esse enlaçamento. Por exemplo, como neurótico eu assinto com uma nomeação que o desejo do Outro me faz, o meu nome. Acredito que cada um de vocês, assim como boa parte das pessoas, principalmente na adolescência, já viveu certo mal- -estar com o nome próprio. Por que eu me chamo assim? Eu, com esse nome complicado, talvez aqui em Florianópolis, ou Floripa, não tivesse sido tão problemático, mas em Belo Horizonte se chamar Henri Kaufmanner não é uma coisa fácil. Na adolescência é muito comum escutarmos essas queixas permeadas por fantasias do tipo “eu não sou filho do meu pai”, “acharam-me na lata de lixo” e por aí vai. A nomeação, o nome que carregamos – o nome próprio – é uma arbitrariedade que vem do Outro e que circunscreve algo do gozo.

Certa feita, fui convidado a discutir um caso. Tratava-se de uma psicose, embora o sujeito não apresentasse nenhum fenômeno muito claro. Havia, porém, uma questão. Ele dizia que aquele nome não era o seu. Isso era algo inquestionável. Havia essa dissociação nítida entre o que ele vivia e o nome dele, o que para mim podia ser considerado como um índice de foraclusão. Mostrava que esse sujeito não havia consentido com essa designação arbitrária do Outro, seu nome. Significante e gozo aí não se articulavam.

O neurótico é aquele que de alguma forma, desde muito cedo, na relação com o desejo do Outro, consente com essa nomeação que recebe. O Nome-do-Pai é exatamente essa nomeação que vem do pai. Ele consente com essa nomeação ou assente. É mais um assentimento do que um consentimento, aqui não é o que nos interessa. Isso permite a esse sujeito neurótico se articular, ligar-se a uma série, construir um corpo em uma relação narcísica com a imagem do que ele interpreta que seria o desejo desse Outro que o nomeia.

Este é o modo neurótico, mas não se trata da única maneira pela qual se pode articular significante e gozo. É nessa direção que Lacan segue ao reformular a própria noção de inconsciente. Ele introduz o conceito de lalangue, essa língua materna que nos afeta. O que vem a ser lalangue? Bem, se por acaso, convidarmos um japonês, por exemplo, e ele se puser a falar aqui, diante de nós, a não ser que alguém aqui saiba japonês – quem souber não vai experimentar este encontro como os demais – inicialmente, nós não saberemos o que ele está falando, mas certamente sofreremos o efeito de sua fala. Nós não saberemos, por exemplo, onde há pausa, onde uma palavra termina e onde a outra começa. Assim nós não conseguiremos partilhar do sentido daquilo que ele irá falar.

A experiência com a língua é uma experiência infinitizada. Isso de certa maneira nos faz retornar ao primeiro Lacan, quando ele se refere à experiência infinita do simbólico. É por isso que, quando se está aprendendo outro idioma, e ainda não se está familiarizado com a cadeia de sentidos desse idioma, a leitura é sempre mais fácil que a conversa. Na escrita é possível localizar as pausas. É mais fácil, também, assistir a um filme, conversar pessoalmente, do que falar com alguém ao telefone. Visualmente a respiração e a entonação também nos facilitam a percepção dos intervalos. E é por essa razão, também, que, quando tiramos os óculos, ficamos mais surdos. Não conseguimos enxergar as escansões, o jogo de sentido.

Ocupemo-nos um pouco do Lacan inicial. Na Questão Preliminar ele se preocupa em cernir as formas como o imaginário faz a escansão do simbólico. Ele cria certa proporção, um campo de sentido, ali onde há a infinitude do simbólico, a fala eterna, infinitizada. Então, em Lacan, o próprio estatuto do inconsciente vai mudando. No Seminário 20, o inconsciente é um saber fazer com lalangue. Anteriormente em seu ensino, o inconsciente é concebido como sendo estruturado como uma linguagem. Sobre isso, Lacan dirá que se trata de uma “linguisteria”, pois a linguagem já é uma produção de saber. Na verdade, o que está em jogo é como você se vira com a sua determinação inconsciente, que é a incidência da língua sobre o corpo. Há um saber, que não obrigatoriamente passa pelo campo do sentido, pela produção de saber, pelo laço com o Outro da linguagem. É isso que de alguma maneira Lacan começa a ter que colocar em evidência. Ele dirá que a linguagem já é uma elucubração de saber sobre lalangue, já é uma produção de saber, separar S1 e S2, a partir da experiência de lalangue. Em lalangue não há S2, não há diferença significante. A trimetilamina, no sonho de Freud, isolada, é a palavra, é o que é, está fora do campo do sentido.

Como encontrar um tratamento para essa divisão, que o conceito freudiano de pulsão carrega em si mesmo? Para essa disjunção existente entre o que é da ordem da relação com a palavra, que é da ordem do saber, com o que é do corpo? No início de seu ensino, Lacan fala da falta a ser. Como articular essa falta a ser com o gozo, com o corpo como lugar de gozo? Se inicialmente pensava-se que o significante poderia mortificar o gozo, mais tarde aprendemos que, na verdade, há uma disjunção estrutural entre significante e gozo. Como articulá-los? Como articular a falta a ser, que é o sujeito na cadeia da linguagem, por exemplo, com o gozo, com o corpo? É esse problema que Lacan contempla na noção de não relação sexual. Não há encontro do sujeito com o corpo e é exatamente isso que sustenta o imperativo de gozo. É por isso que a ideia de gozo vem sempre como algo que poderia ser mais: “foi bom, mas poderia ser melhor”. Há um imperativo de que se deva gozar mais, é o que Lacan aponta quando trabalha a noção de supereu, mostrando que o supereu é na verdade materno. O supereu freudiano, paterno, que é o supereu da culpa, diz respeito à relação do sujeito com seu ideal. Esse supereu paterno, onde o sujeito jamais se vê no nível em que se idealiza, nada mais é do que o supereu materno tratado pelo pai. Então, por amor ao pai, por consentir com a nomeação do Outro, eu construo um ideal, diante do qual eu estou sempre aquém, o que significa que eu não amo meu pai o bastante e por isso eu me culpo. Aí está a vertente freudiana do supereu.

Lacan assinala que, entretanto, estamos diante de outro problema. Em última instância, a castração não é um efeito do Édipo. A castração é real, a relação sexual não existe, há um furo aí, há uma disjunção estrutural. O Édipo – e aí está a torção feita por Lacan – é a maneira pela qual o neurótico lida com isso, enlaçando significante e gozo. Se anteriormente pensávamos que o Nome-do-Pai é o que de alguma maneira barraria essa relação do sujeito com o Outro preexistente da linguagem, e que em sua ausência estaríamos diante de uma psicose, com essa torção produzida por Lacan, passamos a perceber que o Édipo é somente uma das possibilidades de se fazer esse enlaçamento. Isso explica o fato dele dizer, então, que o Édipo é um dos nomes do pai, mas que há outros, há outras maneiras de se fazer esse enlaçamento. O Édipo é uma forma neurótica de dar conta disso, mas não é a única. É possível articular isso de outras maneiras.

Esse gozo, sempre marcado pela insuficiência, exige de Lacan outra formalização, formalização esta que ele faz de maneira mais consistente no seminário A Angústia, ao começar a estabelecer o estatuto do objeto a. O objeto a é justamente aquilo que está entre nós e o paraíso. O objeto a é o que representa esse impossível do gozo, é o nome disso que está entre a nossa falta a ser e o corpo como lugar de gozo, esse impossível de fazer um.

Se Freud, nos anos 1920, produz o Além do princípio do prazer, é porque, de alguma maneira, sua clínica, a psicanálise vai se deparando com impasses, com aquilo que ele vai chamar de reação terapêutica negativa. Seus pacientes, apesar da interpretação, mantinham-se em seus sintomas. Lacan, a seu tempo, depara-se com alguma coisa que é da ordem do gozo, que é da ordem de um acontecimento do corpo que não se articula à linguagem, não se articula ao Outro da linguagem.

Há referências de Lacan que nos ajudam a pensar esse problema. Há um texto que utilizo muito com os residentes de psiquiatria.  Psicanálise e Medicina, de 1964, é um pouco posterior ao trabalho de Lacan no seminário A Angústia. Ali, ele dirige-se aos médicos, delineando o caminho que se apresentava para a medicina. Ele chama atenção para o fato de que o médico estava perdendo o seu lugar tradicional, a sua função tradicional de médico, transformando-se em um vendedor de tecnologia. A única via que ele vislumbrava para a medicina seria ela incorporar algo que a psicanálise traz, que é a atenção à demanda.

Afinal, em última instância, o que se esconde por trás da demanda é o imperativo de gozo do corpo e, quando um paciente procura um médico, a última coisa que ele busca é ser curado. Melhor dizendo, o que ele busca é ser reconhecido em sua posição de gozo. O que nos interessa aqui, mais especificamente, é um exemplo que Lacan dá, do mundo que se apresentava já naquela época. Vejam vocês, 1964, o Brasil ainda estava entrando no capitalismo industrial, com Juscelino Kubitschek, Fusquinha, Simca Chambord, e Lacan já assinalava os efeitos da ciência, há mais de 40 anos. Ele dizia que o problema da medicina era a entrada decidida do discurso científico, a tomada da medicina pela ciência. Não que anteriormente não existisse uma relação da medicina com a ciência, mas na modernidade a ciência havia encampado a medicina.

Ele exemplifica essa reviravolta com as viagens espaciais. Naquela época eram o must, alguns anos depois houve o primeiro homem que foi à lua, 68 ou 69, não me lembro mais. Aliás, existem muitas pessoas que não acreditam na viagem do homem à lua, pensam que tudo não passou de trucagem.

Para se enviar um homem ao espaço é preciso saber como o organismo vai funcionar nas condições adversas e estranhas da estratosfera. É preciso saber, de antemão, como funcionará a respiração, como um homem vai se alimentar, o que fazer com seus excrementos, como ele vai reagir à falta de gravidade. Enfim, quais serão as respostas do organismo a esse mundo.

Uma nave espacial é um mundo cientificamente constituído. É um pequeno sistema no qual um ser humano pode viver. Hoje em dia passam-se meses, um ano, e o astronauta permanece no espaço. Uma nave espacial é um ambiente criado pela tecnologia. Ao se utilizar deste exemplo, Lacan mostra que não somente a ciência encampou a medicina, mas que o nosso mundo passou a ser um mundo constituído pela ciência, mais especificamente pela tecnologia. O problema em foco diz respeito aos impasses da medicina. Ou seja, a medicina vai se sustentar? Certamente essa questão toca à psicanálise.  Como ela vai se fazer presente em um mundo como o que temos hoje, e que já se apresentava para Lacan: um mundo científico, de laboratório, produzido artificialmente pelas tecnologias?

Naquele momento, Lacan constatava que a medicina havia abandonado o que seria sua função tradicional, passando a se preocupar apenas com o funcionamento do organismo, a se interessar apenas pelo funcionamento biológico. Este ocupou a cena que antes era ocupada pelo sofrimento das pessoas. O bom funcionamento dos órgãos passou a ser, no lugar da dor, o objeto de preocupação. Nessa apresentação aos médicos Lacan apontava o declínio do pai, do Outro, como fruto do avanço da ciência.

Na Proposição de 9 de Outubro, alguns anos depois, para a fundação de sua Escola, Lacan ressalta que a psicanálise teria que pensar melhor sobre a experiência do campo de concentração. Não concorda, em absoluto, que esse seja um problema meramente ligado ao racismo. Para ele, o campo de concentração é um dos efeitos do avanço do discurso da ciência. O campo de concentração, penso, poderia ser entendido como uma nave espacial onde aqueles que ali estão encontram-se ao extremo, reduzidos à sua dimensão biológica. Qual é a ideia básica de um campo de concentração? Anular qualquer subjetividade. Arrancam-se as roupas, numera-se e passa-se a controlar todos os movimentos. Os campos de concentração não surgiram para exterminar, mas para dessubjetivar.

Eu, particularmente, penso que a resistência da pulsão de morte é o que levou ao extermínio apresentar-se como a única solução, a “solução final”, na medida em que é da pulsão de morte que se faz a resistência contra o standard. A pulsão de morte é a nossa defesa contra a padronização, na medida em que ela não se deixa escrever, que há um resto do real que sempre escapa e que há um gozo que sempre insiste.

Na Proposição, em 67, Lacan ressalta esse movimento da biopolítica se colocar no lugar da política. Essa tentativa de construir uma sociedade instrumentalizada pela ciência, por certa ciência, uma sociedade como a das abelhas, por exemplo, onde cada um tenha a sua função, que o organismo funcione, mas que não haja subjetividade. Não é por acaso que exatamente em 1968 ele vai lançar o seminário O Avesso da Psicanálise, no qual trabalha a questão dos discursos, ou seja, a questão do laço social. Ele acentua que existe inconsciente porque a relação sexual não existe. O inconsciente é a maneira pela qual tentamos operar com essa disjunção. No lugar da biopolítica, o inconsciente é o laço social. Anos mais tarde é que virá a noção de inconsciente como saber fazer com lalangue.

Lacan encontrava-se, portanto, bem atento aos efeitos do avanço da ciência. Posteriormente ele se ocupará dos efeitos que esse discurso da ciência, aliado ao capitalismo, produzirá sobre a civilização, sobre os sintomas e sobre as saídas que os sujeitos podem inventar para tratar esse mal-estar que é existir na linguagem.

Reconhecem aquele problema que afetava Fliess, que preocupava Freud, a experiência de feminização do corpo produzida pelo efeito da língua? Esse corpo que goza é um corpo feminizado, sejamos nós neuróticos ou psicóticos. Assinalei isso ontem: o efeito da língua sobre o corpo é a feminização. O efeito da incidência da língua sobre o corpo é o objeto a, há algo de feminizante no objeto a.

[O relato de um caso clínico foi omitido aqui devido aos cuidados com o sigilo.]

O caso F. tem uma apresentação tipicamente schreberiana: a deusa que o quer, a experiência de feminização, “eu tenho que ser uma mulher como ela”. Ele não é transexual. Para o transexual, isso não vem como consequência de uma idealização delirante. Ele é de fato uma mulher e não o seria simplesmente porque Donna Summer está lhe chamando.

 A questão desse paciente é outra, o que inclusive deixou sua analista bastante preocupada, pois ele passou a demandar uma cirurgia para a mudança de sexo. Estamos assim diante de um caso schreberiano que apresenta uma construção delirante, mas uma construção schreberiana que já é atravessada pelo mundo científico. Será que se na época de Schreber fosse possível a cirurgia de mudança de sexo, as coisas teriam acontecido da mesma maneira? Isso não era uma questão para Schreber – Lacan acentua isso! Schreber nunca falou em emasculação, ele falava em eviração. A mudança de sexo também não era uma questão para época, a entrada em cena da viabilidade cirúrgica é o que produz essas demandas.

Vejamos outro exemplo, a questão da infertilidade. A entrada do cientista na relação de desejo entre o homem e a mulher, na possibilidade ter filhos ou não, produziu uma multiplicação de mulheres inférteis. Parece mesmo ser um efeito da entrada da ciência, em muitos casos, uma nova forma de histeria. Não é por acaso que ouvimos histórias e mais histórias em que, após a adoção de um filho, a mulher finalmente engravida. Aparecem as mais diversas explicações científicas: a trompa fazia uma curva que não devia, que o ovário estava não sei o que, que o útero tal. Mas foi só adotar uma criança que, um mês depois, a mulher engravidou.

Ontem relembrávamos as histéricas perguntando-nos como, hoje em dia, elas denunciariam a falta no Outro. O DSM não conhece mais as histéricas. Não existem mais histéricas para a psiquiatria porque elas não são mais tão explícitas como foram para Freud, como eram naquela época. Elas se oferecem à ciência, por exemplo, nos casos de infertilidade, o que não quer dizer que qualquer infertilidade seja um sintoma histérico.

Voltando a caso de F., vemos nele uma produção de sentido. Há uma construção delirante, contudo é um caso atravessado pelo discurso da ciência, pelo efeito da ciência. Há um risco desse sujeito demandar uma cirurgia de mudança de sexo. Sabemos que se endereçasse essa demanda aos mestres cirurgiões adequados, ele possivelmente seria atendido. O mundo hoje é repleto de cirurgias. Vejam as cirurgias de redução do estômago, as cirurgias bariátricas. Embora exista toda uma questão, comitês de ética, dependendo daquilo que se demande, faz-se a cirurgia. E, se não se estiver dentro dos critérios exigidos, como o do peso, basta comer o suficiente para se alcançar o critério e realizar a cirurgia. Basta sair da categoria médio-ligeiro para a pesada para se submeter à cirurgia. Assim como os lutadores de boxe sempre fizeram para mudar de categoria, hoje aqueles que querem se submeter à cirurgia bariátrica fazem também, se forçam a ganhar peso.

Felizmente, podemos eventualmente contar com o acaso. Esse é um ponto importante a favor do analista. Veremos como isso aconteceu nesse caso. Um acaso, um pequeno detalhe.

Em uma sessão após uma pequena cirurgia em que removeu uma cicatriz, ele toca novamente na questão da cirurgia de mudança de sexo. A analista intervém, “eu já lhe encaminhei para a cirurgia que seria possível!”. A intervenção da analista produziu uma virada no caso fora de qualquer articulação à cadeia de linguagem. Trata-se de uma intervenção no real do corpo. Sabemos que muitas vezes os psicóticos fazem isso por si próprios, se mutilam. A fala da analista introduziu um menos de gozo, abriu o caminho para que o sujeito consentisse com esse menos. Ela esvaziou, relaxou a relação com o imperativo superegoico, ou seja, ela estabeleceu que não há reencontro com esse corpo, porque lhe falta um pedaço, há uma libra de carne que se perdeu. Produziu-se uma marca real da falta. Está claro que não se trata de algo que se opera na vertente da metáfora, no campo estabelecido pela linguagem, mas de uma construção que instituiu na vida desse sujeito um menos de gozo como algo suportável.

A analista funcionou como um pai e permitiu a esse sujeito fazer um sintoma, permitiu a esse sujeito articular significante e gozo, arrumar o seu nome. Não que a questão do empuxo à mulher tenha se esgotado, mas houve um tratamento possível, uma nomeação de gozo possível. Um outro fim para um caso schreberianamente clássico.

 Lacan já dizia que construir um delírio como o de Schreber demoraria uma eternidade. Schreber só pôde se dar a todo esse trabalho porque estava internado, largado, ninguém estava prestando atenção nele, foram oito anos de clausura. Mesmo assim, quando anos mais tarde foram à sua casa pedir-lhe que assinasse um manifesto em homenagem a seu pai, ele desencadeou uma nova crise e morreu internado.

Joyce nunca apresentou um fenômeno psicótico mais evidente. Sua filha, por sua vez, sim. Escrever uma nova língua, escrever um sintoma, o que isso quer dizer, em que isso nos interessa? Lacan nos fala que Joyce é um desabonado do inconsciente. O que a intervenção de nossa colega[3] permitiu foi um relaxamento da relação do seu paciente F. com o inconsciente. Ele se afastou desse imperativo de satisfação, fazendo-se, por outras vias, um tenor. Isso permitiu uma transformação.

A partir dessa observação, podemos pensar, inclusive, na análise de um neurótico. Quando na análise de um neurótico falamos em identificação com o sintoma, o que está em questão é a possibilidade de que, a partir do trabalho de uma análise, se consiga chegar a uma redução do sintoma, a uma significação pessoal mínima, à letra desse sintoma, ao nome de gozo. Como nos diz o Bernardino Horne, “Varão”, El varon, ou como dizia a Lêda, da Bahia, “Mundana”. Há que se esvaziar o sentido, restando a materialidade, a corporeidade da letra, e produzir-se aí uma nova significação. Os relatos de passe testemunham esse movimento. Com Bernardino, “Varão” deixa de ser um imperativo para ser, a partir da nova significação, uma escolha do sujeito. Lêda faz de “Mundana” uma mulher do mundo.

Isso nos traz de volta a Floripa. Cada um de vocês, certamente, faz um uso particular de Floripa, que não tem que estar necessariamente ligado às ofertas da mídia, que é um instrumento do discurso do capitalismo, do imperativo de gozo, dos objetos a serem necessariamente consumidos. O problema não é de Floripa, o problema é do uso que se pode fazer dela. É isso que Lacan nos mostra. Florianópolis é Florianópolis, continua aí. Floripa também continua e é uma cidade muito bonita. Agora, que existe um imperativo de gozo incidindo sobre as relações dos sujeitos com a cidade, o imperativo do ganho de capital, a equação imobiliária do enriquecimento e que muitas vezes não permite aos sujeitos fazer da cidade um uso próprio, isso é evidente.

A questão é que uso fazer de Floripa. Como se aliviar deste imperativo superegoico de gozo, desligar-se desse empuxo ao gozo devastador. Sabemos o que o gozo sem lei pode fazer com uma cidade. Basta ir a Belo Horizonte, que era uma cidade, até quarenta anos atrás, bonita e acolhedora e que foi totalmente desfigurada pelo crescimento urbano desenfreado, pela especulação imobiliária e pela exploração de minério. Parodiando Drummond: Belo Horizonte não há mais, há uma serra que não existe mais, que foi exportada em forma de minério. O que existe hoje é uma cidade de poucas belezas, mas onde se pode ao menos encontrar pessoas bem interessantes e alguns ótimos botecos.

O que Lacan acentua ao final de seu ensino é a importância do sintoma. Que uso fazer de sua determinação inconsciente, qual a solução que cada sujeito pode encontrar para o gozo, e isso não é de forma alguma tão distinto na neurose e na psicose. Obviamente neurose e psicose partem de posições diferentes. Há questões estruturais, a estrutura não deixou de existir. Ela está reduzida em sua significância, mas está lá.

Nesse caso que trouxe é nítido que é possível, como secretário do alienado, fazer um certo uso, ajudar o sujeito a inventar um certo uso. Lacan estava atento a isso. A psicanálise hoje opera no tempo em que o que ordena não é mais a lógica fálica totalizadora do pai, as soluções hoje são muito mais precárias. Vivemos um tempo de uma certa infinitização no campo da civilização. Quais seriam as bordas da civilização hoje em dia? Por que será que cada grupo étnico tenta fundar um país? Por que será que o racismo ganha proeminência? E as novas formas de violência, quais são as bordas desse mundo? Se o pai permitia a constituição de bordas à própria ideia de nação, em um mundo globalizado o que é uma nação?

Um cardiologista amigo meu, importante em Belo Horizonte, foi recentemente a um congresso nos Estados Unidos. Ele é especialista em Doença de Chagas e foi convidado a ajudá-los no congresso de hematologia. A Doença de Chagas está se expandindo nos Estados Unidos pela transfusão de sangue, pois existe um grande movimento de imigração, de hispânicos que chegam à América portando a doença. Anteriormente esse não era um problema para os americanos e, exatamente por isso, não faziam os testes sorológicos para detectar o trypanossoma. Assim, transfusões de sangue foram sendo realizadas e a Doença de Chagas foi se espalhando. Este é um dos efeitos da globalização. Estamos disseminando a Doença de Chagas, que passa a ser um problema de saúde pública nos Estados Unidos.

Então, como se fazem as bordas em nosso tempo? Onde está a “ordem do mundo”, uma referência universalizante utilizada por Schreber? Ele se preocupava em restabelecer a ordem do mundo. Haveria que se restabelecer o lugar do pai. Boa parte do trabalho de Schreber se faz no intuito de salvar o pai. Ele não podia parar de pensar, pois, se o fizesse, Deus distanciar-se-ia, e restaria a Schreber ser usado e “largado caído”, ou seja, não ser mais que um objeto. O destino de Schreber expressa a condição de objeto que somos no campo da língua, o campo estabelecido dentro da língua. Foi preciso a ele, pela via delirante, construir um sujeito ali, e ele o fez pela invenção de um novo pai, de uma nova ordem do mundo. Para que Deus não se fosse, mantinha-se pensando, até que o mundo ganhasse certa consistência. Só assim ele consentiu, depois de sua morte delirantemente experimentada, em se fazer de mulher para Deus, para um dia, quem sabe, gerar uma nova raça de seres humanos, já que os que ali estavam, estavam desgraçados. Então, a solução schreberiana se dava pela via do pai, pela universal paterna.

Nós não vivemos mais o tempo da universal, nós vivemos o tempo da dispersão, o tempo do não todo, da feminização. Estamos hoje em dia muito mais para Floripa do que para Florianópolis. Isso nos toca muito mais. Para a psicanálise não se trata de avaliar se estamos diante de uma realidade melhor ou pior que a anterior. Ao psicanalista cabe intervir, interpretar o seu tempo. Não nos cabe pensar em, por exemplo, como era bom nos tempos de Floriano Peixoto que governava com mãos de ferro. Não vamos aqui fazer apologia a ditadores. Precisamos é estar atentos às diferenças e saber que vivemos o tempo da dispersão. Vemos as religiões fundamentalistas ganhando espaço, buscando constituir um pai. Vimos, quando da morte do último Papa[4], a intensidade da manifestação dos fiéis no Vaticano. Quando a escolha do novo Papa foi concluída, ouvimos os seus gritos: Habemos Papa! Temos pai.

A psicanálise aposta em outro caminho. O pai é algo do qual podemos prescindir, desde que possamos nos servir dele. Estamos no último ensino de Lacan. O pai é o que humaniza o desejo, o pai é aquele que enfrenta o gozo da mulher, ou seja, o pai é aquele que, com seu desejo, institui um ponto de impossibilidade no imperativo de gozo. Isso é um pai. Um pai, não é “O pai”. É um pai utilitário, para se usar, fazer como pai. Lacan vai esvaziando essa dimensão transcendental, mística, religiosa do pai e apontando sempre para essa dimensão utilitária.

No caso F., a analista, em seu ato, praticamente diz: “não, você já tirou o que podia tirar, fica quieto, menino!” Parece tão simples depois que se passa! Mas quando a libido está ali investida, quando o circuito pulsional está investindo naquele objeto, naquela formação sintomática, a vida toda parece estar em jogo ali. O ponto central da psicanálise hoje no que diz respeito ao tratamento, pelo menos quando somos procurados por sujeitos invadidos pelo gozo – e nesse caso um diagnóstico diferencial muitas vezes se mostra muito difícil em um primeiro momento – é a atenção ao sintoma.

Repito que isso não quer dizer que tenhamos abandonado as variações que dizem respeito a uma clínica que leve em consideração as diferentes estruturas. Sabemos que há manejos distintos em jogo, dependendo da estrutura, mas o fato é que a grande questão que hoje se coloca é como resgatar a dimensão da singularidade do sujeito diante da imperativa e incessante oferta de objetos de gozo que a sociedade contemporânea apresenta. A grande questão da psicanálise hoje é como operar no campo dessa adição contemporânea que não separa neuróticos ou psicóticos. Recebemos em nossos consultórios, ou nos serviços de saúde, pacientes que se apresentam de tal forma tomados por este excesso de gozo, que qualquer diagnóstico estrutural se mostra limitado. Nesses tempos em que o Outro não existe, o universal sai de cena. 

É preciso encontrar, junto a cada sujeito, o que pode exercer a função de pai. Pode ser uma mulher, pode ser um analista, uma produção literária, o que for, mas é preciso que permita ao sujeito um certo afastamento, um certo tratamento do supereu materno, assim como o pai freudiano faz no campo da neurose. Alguma coisa que se coloque como obstáculo ao imperativo de gozo superegoico. Não existe fórmula.

Vocês vejam esse caso, o sujeito desenvolveu algo na pele, por acaso. Ele tira isso e... pronto! Acabou, tirou o que podia tirar. Uma castração possível e experimentada na transferência. E isso acontece sem que seja tomado na perspectiva que se tinha na chamada primeira clínica, em que o encontro com o pai, elemento desencadeador da psicose, seria tratado pela via de um novo sentido, a chamada metáfora delirante. O que temos é simplesmente um: você já tirou o que podia, é pragmático.

A analista certamente não calculou isso. Em psicanálise, muitas vezes, as coisas acontecem assim. Quando acreditamos que podemos antecipar uma intervenção, quando pensamos que calculamos bem, é quando nos surpreendemos. O ato analítico acontece onde não sabemos, a psicanálise opera do não saber. Ela, contudo, sustenta sua prática em uma ética, uma ética de abrir caminhos, suportar as invenções do sujeito, de barrar os atos devastadores. Isso permite que o sujeito invente o seu caminho. E o psicótico, à revelia dos analistas, sempre fez isso. O impasse do psicótico é não conseguir inserir sua invenção, sua singularidade, no laço social. Pensar o inconsciente como um saber-fazer com lalangue é investigar como cada um opera, como cada um faz, qual é o saber-fazer de cada um. Escutamos muito em francês savoir y faire com o seu sintoma. Para funcionar como testemunha desse saber-fazer, de maneira que ele se inscreva no laço social, exige-se do analista intervenções no próprio laço social. É por isso que o psicanalista lacaniano, da Escola Brasileira de Psicanálise, da Associação Mundial de Psicanálise, preocupa-se com sua intervenção na cidade. Não nos reduzimos a nossos consultórios. Nosso tempo é um tempo em que não há universal. É preciso muitas vezes intervir, estar presente com a psicanálise em todos os espaços. Se nossa aposta implica em nos ocuparmos com o sofrimento das pessoas, é importante abrir espaço para as singularidades.

Não somos amantes dessa liberdade do “todos iguais” que nos é oferecida. O que nos interessa é preservar a diferença e o modo de gozo que permite a cada um ir fazendo a sua vida. Por isso viajamos, por isso insistimos para que as pessoas dos Centros de Saúde estejam inseridas. Não queremos dominar o mundo, nós queremos expandir a psicanálise para que o mundo não se deixe dominar. É isso que Lacan propõe. É isso que Jacques Allain Miller em um texto que eu recomendo a leitura, Intuições Milanesas, resgata. Em uma fala de Lacan durante o seminário A lógica da fantasia, ele recolhe a afirmação: o inconsciente é a política. A política do sintoma, não é? Que cada um seja responsável por seu gozo, circunscreva isso e se coloque no mundo a partir disso. Que nestes tempos em que o Outro não existe, cada um invente o uso que possa fazer de um pai, ou de um nome e não se contente obrigatoriamente com a demanda superegoica do Outro. Por que tipo de uso, em que sentido, ou como é que se devem usar determinados nomes, cada um invente para si mesmo o seu nome. E que vocês realmente possam fazer de Floripa, Floripa para cada um. É isso.


NOTAS 

[1] Texto resumido e adaptado pelo autor, a partir de transcrição de sua conferência proferida em 09 e 10 de maio de 2008, em Florianópolis, SC, no quadro do evento “O que as psicoses ensinam para a lógica das curas”, promovido pelo Núcleo de Pesquisa Sobre a Psicose da EBP-SC

[2] EBP – Seção Minas

[3] Omitimos aqui o nome da analista que conduziu o caso para preservar a identidade do mesmo.

[4] Trata-se do Papa João Paulo II, falecido em 2005, e sucedido por Bento XVI, que abdicou em 2013.

REFERÊNCIA 

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

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