ÉFEITO DE ATO
Reed Pen Collage (1922) - Hannah Höch
Leonardo Scofield
AP, Membro da EBP/AMP
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SUBMISSÃO OU A ONTOLOGIA DO PODER
Ao contrário do que se pode pensar, o termo submissão não é empregado nesta Jornada com sentido pejorativo. Submete-se ao Outro, lugar da linguagem, para que se possa constituir enquanto sujeito. Temos nossos corpos atravessados pelo que se diz e acabamos por acreditar nesse código e manipulá-lo de alguma maneira.
Eis o mal necessário, mal-entendido que nos faz construir identificações que orientam nossas vidas. Submetemo-nos ao Outro na crença de que algum significante possa definir nosso ser, nos salvar daquilo que pulsa em nossos corpos e pensamentos sem cessar e apesar de nós mesmos.
Corremos o risco de atribuir ao Significante Mestre (S1) o poder ontológico que cegaria o sujeito em sua responsabilidade. Dizer “eu sou...”, seja lá o que for, é crer na identidade em si e negligenciar o real inapreensível pelo simbólico. Este significante, porém, carece dos efeitos de significação e submete-se ao S2 para que se faça laço, para que se faça uso de certa identificação social. O S1 é quem tem o poder. Ele fixa tanto a não identidade do sujeito consigo mesmo quanto suas identificações sociais. A debilidade embasada na fé ontológica negligencia a falta-a-ser que manteria a função de causar o sujeito em sua responsabilidade de sustentar o singular daquilo que o faz ex-sistir por seu sintoma.
No contexto político, por exemplo, tem sido cada vez mais difícil para a população brasileira contar com os recursos simbólicos face ao mal-estar e a diferença radical. Boa parte dos cidadãos têm suportado cada vez menos a diferença que encontram através de suas relações. É o que tem demonstrado a realidade clínica e social do meu cotidiano pelas apaixonadas manifestações violentas e reivindicações salvacionistas.
Submeter-se ao Outro da linguagem implica em se haver com o furo em torno do qual ela gira, com o impossível da identidade em si. O que constitui o sujeito na dialética entre alienação e separação, isolando o que lhe causa desejo e o inscreve com sua diferença nas relações. Isto é distinto de viver tal submissão pela vertente ontológica do poder, esta que se propaga em nossos dias, travestida pelo discurso técno-científico-religioso ou pelo enunciado do bem. É assim que as entidades pretendem assumir cargos públicos de poder, não por acaso, em tempos de descredibilidade da versão tradicional do Nome-do-Pai.
Lacan já nos advertia disto prevendo o racismo como um grave problema com o qual a psicanálise teria de se haver. “A bondade não poderia curar o mal que ela mesma engendra... A mais aberrante educação não teve outro motivo que o bem do sujeito”, disse Freud. (FREUD, 1915).
TEMPO DE POCAFÉ
Não é pela oposição ateísta ou revolucionária que a psicanálise trata este problema, pois a crença tem valor fundamental na constituição subjetiva e na manutenção dos laços sociais. Propor a desidentificação pela bandeira do “be yourself”, por exemplo, seria recair, pelo avesso, na ontologia do poder, assim como qualquer discurso revolucionário tende a dizer o mesmo pelo seu oposto. Não podemos negligenciar as consequências nefastas dos efeitos imaginários da identificação. É preciso operar pelo simbólico para que o sujeito retifique sua relação com o real, presente em seu sintoma, e com o que dele se constitui, de forma transindividual, manifesto como subjetividade de uma época.
Princípios clínicos, já alertados por Freud, são fundamentais para que possamos operar politicamente. Abdicar do furor curandis, por exemplo, é condição para que se possa despertar alguém dos imbróglios de uma ilusão. Respeitar a debilidade alheia é então o mínimo a se estabelecer nos espaços sociais. Mas não basta. O termo freudiano indifferenz[1], mal traduzido como neutralidade, passando pela versão inglesa, orienta não uma imparcialidade inibitória do ato, mas seu contrário, uma posição que, para fazer diferença, não opera a partir de um saber a priori, e, sim, da enunciação do “desejo do analista”. Este, por sua vez, “só pode operar caso venha ali na posição do x” (LACAN, [1976], 1998, p. ), posição que Miller (MILLER, 2017) equivale à indiferença freudiana.
Temos aí uma indicação preciosa. Em tempos onde a significação fálica está pluralizada, desconsistente para o tratamento da massa que apela para a ilusão, elegendo a promessa de significação absoluta, há de se considerar a diferença entre significação fálica e a função fálica. O falo, como um operador em sua função, é um significante do gozo “destinado a designar, parcialmente os efeitos de gozo sobre o corpo. Trata-se de um significante assemântico, que não significa nada e apenas como encarnação do nada pode operar favoravelmente” (SANTIAGO 2017, p.329), com o encontro do real, da diferença absoluta. Isto implica em dizer que não se produz a queda de uma identificação, nem se convence um amigo ou familiar a não votar em alguém pela via da argumentação, que, por sua vez, se submeteria à significação fragilizada em nossos tempos. Tempos pelos quais almejo serem de pocafé. De encontros onde as relações sejam favoráveis ao um por um. Onde a diferença possa aparecer produzindo um acordar do corpo próprio e que este seja a marca que instaure pouca fé no Outro, o que implica fazer um uso do semblante que não recaia na restituição ontológica tampouco no cinismo da descrença absoluta.
AFETO SEM FÉ É ATO
Temos da mesma maneira ontológica, em seu oposto, os “novos sintomas” que se apresentam por sujeitos completamente descrentes no Outro, sem supor saber algum no inconsciente, com seus corpos em sofrimento. Isto exige do analista lacaniano, que tem por responsabilidade “alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época” (LACAN, [1976], 1998, p. ), o desafio ético de se posicionar clínica e politicamente. Como possibilitar um despertar a um sujeito de uma ilusão, cujo mal-entendido da linguagem, que se arranja em sintomas, nada lhes convoca a saber?
O avanço proposto por Lacan ao ler o sujeito do inconsciente, através do termo falasser, é condição operatória de uma psicanálise subversiva. Pois, o falasser é dividido entre o S1 e o gozo que se manifesta em seu corpo. Esta dimensão conceitual é fruto da experiência analítica fundada por Lacan, que tem em seu horizonte a política do passe, que orienta hoje as sete Escolas da AMP. Compreendo esta política interna como um norte para a atuação da psicanálise no campo das políticas macrossociais. Não farei aqui o percurso que a proposta do passe fez ao longo destes anos. Vou me ater apenas ao que dela pode-se extrair como orientação: o fim da análise era tido como a “travessia da fantasia”, o que comporta prescindir das identificações simbólicas e imaginárias, e seu “retorno”, que seria operar de outra forma com o gozo. A “identificação com o sintoma” foi outro axioma dessa passagem ao ato, de analisante a analista. Esta, por sua vez, considera os restos sintomáticos indissolúveis. Não se trata aqui de se identificar ao inidentificável, mas sim de produzir um saber fazer com o real do corpo que se goza. A produção do analista pelo política do passe é também a produção do discurso analítico que é “anti-identitário, anticomunitarista”[2] e não salvacionista. Orientar-se por este discurso não restringe a operatividade do mesmo ao campo do individuo e sim da subjetividade enquanto “transindividual” que se estende a uma esfera pública de uma época e tem efeitos de mobilização e afeto os corpos daqueles que sofrem.
Com Joyce, Lacan cunha um termo ainda mais preciso para dizer desse fim de análise: o sinthoma, que inclui, em seu modo de fazer com a lalíngua, um arranjo com o gozo opaco do corpo, prescindindo dos efeitos de significação. O sinthoma, como efeito retorno do falasser, que prescinde das identificações da fantasia, implica em dizer que algo do corpo se impõe nesta passagem ao ato. Ato que podemos caracterizar como herético, ou melhor, ter em si o efeito ético do que precede o tempo de compreender, sem foraclui-lo, e que se precipita em uma escolha forçada do falasser que assume a heresia de seu sinthoma como orientador de uma posição no mundo. O sinthoma orienta a amarração dos três registros para além da função sintomal do pai, em uma nova versão, que mantém enodados RSI, constituindo outra modalidade de viver a pulsão e o laço social, para além do Outro, sabendo fazer com o Um-sozinho, tomando o Outro como o corpo próprio.
Orientar-se pela heresia do Sinthoma consiste, para mim, em saber que o poder é do S1 e que submetê-lo às significações não exclui o ponto inidentificável do gozo. É ter no horizonte pouca fé no Outro e apostar que aquilo que afeta meu corpo, do qual ele é feito, ainda que eu não o saiba, pode operar, em ato, afetando outros corpos. Assim alguns sujeitos podem, literal e metaforicamente, retificar seus votos, tendo como efeito a eleição, no lugar do Outro salvacionista, daquele que faça furo como o que, de fato, dá consistência ao laço social.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
FREUD, S., “Observações sobre o amor transferencial”, Vol XII, Obras Completas, Imago. Edição eletrônica de Freud. (1915)
LACAN, J., “A direção do tratamento e os princípios de seu poder”, In: Escritos, Rio de Janeiro, Zahar, 1998
LACAN, J., “Proposição de 9 de Outubro de 1967”, In, Escritos, Rio de Janeiro, Zahar. 1998
MILLER, J-A., “Aula 24 de junho 2017, le ponint de capiton”, disponível em: http://www.eol.org.ar/template.asp?Sec=publicaciones&SubSec=on_line&File=on_line/jam/Otros-textos/17-06-24_Curso-de-psicoanalisis.html
SANTIAGO, J., A droga do Toxicómano uma parceria cínica na era da ciência, Belo Horizonte, Relicario, 2017, p. 329
RESUMO:
Este artigo aborda a importância da submissão à linguagem no processo constitutivo do sujeito e o risco de que a alienação ao significante mestre atribua a este um poder ontológico negligenciando o real inapreensível pelo simbólico. A operação analítica, que pode promover uma separação deste sujeito das identificações de caráter identitários, conta com uma importante distinção conceitual entre significação fálica e função fálica. Além disso, as considerações da AMP sobre o fim de análise e o passe nos orientam política e clinicamente, demonstrando como o desejo analítico em ato pode operar enquanto fruto da heresia do sinthoma, em uma subversão do falasser.
PALAVRAS CHAVE: submissão, subversão, identificação, identidade, significação fálica, função fálica, Sinthoma, heresia.
[1] FREUD, S., “Observações sobre o amor transferencial”, Vol XII, Obras Completas, Imago. Edição eletrônica de Freud. (1915)
[2] Harari, A., Santiago, J., “O que a ‘Proposição’ antecipa e ensina sobre as propostas de uma política lacaniana para os nossos tempos e o futuro – Entrevista “. In: Correio Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, nº81, dez. 2017, EBP SP, p 61