FEMININO
Teresa Pavone
Membro da EBP\AMP
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“Há um incêndio de angústia e de sons
Sobre os intentos.E no corpo da tarde se fez uma ferida. A mulher emergiu
descompassada no de dentro da outra.” (HILST, 2004, p. 54)
Em Lacan, o feminino remete à noção de irrepresentável. Desde Freud o enigma da feminilidade ocupa lugar nodal na teoria e na prática da psicanálise. O feminino se apresenta desde sempre como uma impossibilidade, uma insuficiência de fazer-se representar no Inconsciente. Como, então, buscarmos uma localização do irrepresentável? Qual seria esse cerne do feminino e qual a importância de tangenciarmos esse conceito no tratamento analítico?
Em tempos remotos, no Campo Freudiano já se desenvolvia a ideia mesmo de uma clínica da posição feminina. Assim, na IX jornada do Campo Freudiano “El Outro sexo e a clínica da posição feminina” Miller proferiu a conferência “O impossível de suportar na vida cotidiana e na experiência analítica”. O título já antecipava o caráter de impossível que o feminino carrega. Miller esclarece que no axioma de Lacan “A mulher não existe”. O essencial é que isso não significa que o lugar da mulher não existe, senão, que esse lugar é vazio. Segue a questão dos semblantes que viriam para velar esse vazio apontado pelo feminino. Quer dizer, o vazio não impede que as máscaras venham a encobri-lo. Miller localiza aí a conexão entre as mulheres e os semblantes com a função de serem as máscaras do nada (MILLER, 1992, s/p).
Qual a atualidade desses temas das mulheres, dos semblantes, do feminino e da clínica para nós, psicanalistas? No encontro de Freud com as histéricas, ao prezar seus sintomas, seus relatos, queixas e sofrimentos marcados no corpo, vislumbrou enigmas a serem interpretados. Uma verdade marcava partes do corpo de suas pacientes, verdadeiros brasões que poderiam redundar em significações que rememoravam a infância e o trauma da sexualidade infantil, na fala apontavam algo do trauma diante do sexo. Um gozo restava, a significação falhava e a palavra não dava conta da estranheza da contradição intrínseca da sexualidade feminina, sempre em conflito e no intervalo entre uma sexualidade exacerbada e uma rejeição radical do sexual, assim emergia o enigma. Freud [1932-1933] o relacionava ao desejo, desejo sempre insatisfeito, ligado à fantasia infantil, e localizou o Édipo como momento de elaboração da castração na mulher, que abrirá as portas à feminilidade.
Em “A feminilidade” [1932-1933], sobre a impossibilidade de se descrever o que é a mulher, ele situou como “uma tarefa irrealizável” alcançar o “continente negro”. E, da relação do feminino com a poesia, ao final desse texto, ele escreve: “Se você quiser aprender um pouco mais sobre a feminilidade, interroguem a sua própria experiência ou então perguntem para os poetas.” (FREUD, 1996).
O falocentrismo freudiano nos permite pensar que tanto a mulher quanto o homem são desejantes e castrados, sempre referenciados ao masculino, ao falo, inclusive quando na sedução, a mulher se utiliza das máscaras fálicas. Freud deixa também de sua experiência a ideia de que algo escapa, um ponto negro que fica de fora dessa lógica, isto é: o feminino.
Há algo absolutamente radical na sexualidade fora da lei fálica. Algo que atordoa e nos coloca, no decorrer de uma análise, a dar muitas voltas nos ditos, para localizar algo desmensurado, um “gozo suplementar”, tal como nomeia Lacan, ao estabelecer as fórmulas da sexuação. É em torno da diferenciação do gozo sexual que o ensino lacaniano vem estabelecer que a mulher é não-toda referida à função fálica. Lacan indica que não se trata de propor que todo homem é fálico e que toda mulher não é. “Não-todo” é estar referenciado na função fálica, mas, é também ultrapassá-la, adicionando um “plus de gozo (LACAN, 1985).
Em relação ao semblante, a mulher irá se situar como “objeto”, podendo se fazer de semblante de objeto causa de desejo. E, pelo fato de ela não temer a castração e por sua proximidade íntima com o vazio, ela tem o dom de convocar o amor e poder ir muito longe nisto. A crença demasiada no semblante, ao fazer-se de objeto de desejo e ocupar o lugar no fantasma masculino, pode levá-la à devastação.
A Mulher não existe, consiste em colocar-se uma barra sobre o A – Ⱥ mulher. Quer dizer, não existe um universal que inscreva a mulher em um conjunto. É admitir o irrepresentável como próprio do feminino, a partir da questão da sexuação. A mulher só pode ser tomada uma a uma. Não havendo uma exceção que comporta o conjunto das mulheres e não existindo o universal do feminino, esse surgirá como um buraco no Outro. Fato de estrutura, que acontece, não por se tratar de algo recalcado que foi censurado, mas, justamente, por ser um gozo que escapa à palavra como narrativa de uma história.
Ao articular o feminino ao impossível, Lacan situou na letra o rastro do signo daquilo que ficou apagado da experiência de gozo, um traço invocante do acontecimento de corpo, um risco que delineia uma tênue ligação e, ao mesmo tempo, uma disjunção entre o saber e o gozo e que vem marcar o caráter de escritura presente no inconsciente. O gozo feminino evoca a letra que não se endereça à leitura, pois traz a marca de uma inscrição singular que não se submeteu à significação e permanece neste lugar do qual a angústia será o sinal de sua proximidade com o real. O irrepresentável nos remete a uma vertente real, no qual habita um gozo absolutamente insabível, só passível de ser experimentado.
O Semblante vem justamente para dar conta do insuportável desse vazio de significação, da desproporção entre os sexos, do buraco do Simbólico, do sem sentido da existência e de cada singularidade; de forma a produzir um “parecer”. Assim, nos diz Miller: “O semblante consiste em fazer crer que há algo ali, onde não há nada. Não haver relação sexual, implica que ao nível do real só há semblantes, não há relação sexual.” (MILLER, 2008).
A localização do irrepresentável no cerne do feminino é o motivo pelo qual, por exemplo, a Arte nos antecipa em sua expressão, mais especificamente na poesia, esses limites do indizível, tecidos pelo uso que faz da linguagem, subvertendo-a, desconstruindo-a, e subtraindo uma forma de articular as palavras a um real sem lei.
Não é sem razão que o destacado cronista José Castelo escreveu sobre Clarice Lispector, referindo-se a ela como “a senhora do vazio”:
Clarice Lispector tinha uma obsessão: o vazio. Seu projeto secreto era a destruição da literatura - ela queria chegar às narrativas tão transparentes, tão agudas, que enfim os segredos da palavra se revelassem e a escrita se tornasse apenas luz. Para isso habitou um mundo em ruínas, o deserto que além das palavras, pelo qual pagou um alto preço (CASTELO, 1999, p. 11)
As palavras desnudadas na queda dos semblantes colocam em relevo o vazio e apontam um traço, um risco-rabisco, um feixe de luz, uma letra vazia de significação que traduz o intraduzível do gozo convocando o falasser a uma criação singular; sua “poiesis” frente ao impossível de dizer, frente àquilo que é feito de signo e não de significantes, a expressão de um universo singular experimentado no corpo.
Isso indica a direção de uma análise na clínica condizente com o último ensino de Lacan, que nos permite estar à altura da época atual, tomando o gozo feminino como o gozo como tal, que está posto para todos os seres falantes e que exige uma resposta singular, a extração da letra de gozo; que faz litoral entre saber e gozo.
Referências:
CASTELO, J. “Clarice Lispector, A senhora do Vazio”. In: Inventário das Sombras. Rio de Janeiro: Editora Record, 1999, p. 11.
FREUD, S. “A Feminilidade”, vol. 22. In: Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud.
HILST, H. “Do Desejo”. In: Poemas reunidos. Rio de Janeiro: Editora Biblioteca Azul, Globo Livros, 2004, p. 54.
LACAN, J. “Letra de uma carta de almor”. In: O Seminário, Livro 20: Mais, Ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
MILLER, J. A. “Clínica de la posición feminina” (1992). Conferência de Clausura: “El Outro sexo y la clínica de la posición feminina”. IX Jornadas del Campo freudiano em España: Lo imposible de soportar en la vida cotidiana y en la experiencia analítica. Barcelona, 14 y 15 de marzo de 1992. Transcripcíon de José Manoel Ávarez. Inédita.
MILLER, J. A. “De la naturaleza de los semblantes” (1991-1992). Los cursos psicoanalíticos de Jacques Alain Miller. Buenos Aires: Paidós, 2008.