UM LITORAL PARA O REAL:
DA LITERATURA PARA A LITURATERRA
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Zelma A. Galesi[1]
Membro da EBP/ AMP
A partir da proposição lacaniana criada pelo neologismo “Lituraterra” (LACAN, 2001, p. 11), queremos situar numa das fronteiras estabelecidas pelo discurso analítico, a questão do Feminino em sua interface com o campo da literatura e da escrita.
Permitir construir uma borda com outro campo, mas mantendo a singularidade do próprio campo, foi a tarefa a qual Freud se dedicou e que Lacan formalizou. Mas não podemos esquecer que se ambos escreveram trabalhos inspirados em questões literárias, isso ocorreu sustentado por uma prática clínica que abrangia o campo do inconsciente. Ao incluir o escritor James Joyce em seu texto dos Outros Escritos, Lacan afirma que ele produzia a letra como lixo (“a letter” - “a litter”), onde a Literatura pode se transformar em Lituraterra.
O escrito, dessa maneira, apresenta-se sob duas vertentes na psicanálise, ou situada na condição de resto ou como tentativa de inscrição de um gozo indizível e opaco. Portanto, encontramos uma dificuldade no que diz respeito à inscrição, pois o escritor sente a necessidade de transmitir uma experiência que é, por princípio, intransmissível, já que o corpo do falasser está envolvido, ou seja, é uma experiência de gozo. Segundo J.A. Miller “isso serve para falar, mas isso não fala” (MILLER, 2012, p. 127), por isso usa-se “a história numa tentativa de dar sentido ao real” (MILLER, 2013, p. 39).
Vamos tomar uma obra autobiográfica, lançada em janeiro de 2020, da escritora francesa Vanessa Springora, de 48 anos, que chocou a sociedade francesa e foi capaz de “tocar as consciências e os corações” (ALBERTI, 2020, p. 5) e cujo nome é Le Consentement (SPRINGORA, 2020).
Se o #MeToo (KANTOR et al, 2019) permitiu ao mundo tomar consciência da dimensão do fenômeno de assédio, do abuso sofrido pelas mulheres, “sem que ninguém fosse punido e, mais ainda, elas tinham que sorrir diante das apalpadelas, olhares maliciosos e investidas indesejadas” (KANTOR et al, 2019, p. 9), a obra de Springora abre um novo capítulo na liberação da palavra, aquele da escritura, dando conta da complexidade da posição feminina, da dimensão do desejo e da sexualidade feminina, enquanto distinta da sexualidade masculina (LEGUIL, 2020).
Ela testemunha, através da potência da escrita, os abismos do amor, que a arrastou a um mal encontro e produziu, a partir dos 14 anos, um sentimento de que havia desaparecido. Em seu livro, Vanessa confessa que desde os seus 8 anos era uma menina desejosa de amar e ser amada (SPRINGORA, 2020, p. 9).
Ao enfrentar-se com o que nomeia de ambiguidade do consentimento, Springora tece um litoral para o real, produzindo a letra para um acontecimento de 30 anos atrás. Ela descreve a relação com o escritor Gabriel Matzneff nos anos 80, que revelou-se uma história de horror, entre um homem de 50 anos e uma menina de 14 anos. Segundo Vanessa: “Como admitir que se foi abusada, quando não se pode negar ter dado o consentimento?” (SPRINGORA, 2020, p. 175).
Muito mais do que um livro-denúncia, Vanessa diz que essas palavras estavam por serem ditas em nome das crianças e meninas, submetidas à negligência dos adultos. Springora conta como foi seduzida por G.M., e que sua mãe não só estava ciente dessa ligação como o convidava para a sua casa e incentivava a relação. G.M., conhecido como pedófilo, fazia turismo sexual nas Filipinas para ter relações sexuais com crianças de 11 e 12 anos. Matzneff escreveu preto no branco em seus livros o que fez com essas crianças, com a complacência da lei e dos que acobertaram os abusos (SPRINGORA, 2020).
Não há relação sexual para o falasser, por isso, quando o sexo atinge, há trauma, há furo e por consequência o impossível a dizer (MILLER, 2019, p. 135). Dessa maneira, com o corpo, Vanessa evocou no vazio esse real impossível de suportar, assentado sobre o traço que o traumático engendrou. Ela está mais além dos limites do Outro da lei, mais além do Outro da política, numa “zona misteriosa”, a do gozo feminino (LAURENT, 1977, s/p).
Mas, com essa obra, pode formular uma questão ao situar-se nesse lugar em que existe uma fronteira entre “ceder” e “consentir”, fazendo dele um litoral. Qual é a diferença entre “ceder” e “consentir”? Quando se cede, se consente a isso que vai acontecer?
Miller assinala que “no consentimento o sujeito está sempre implicado. Já que, no encontro com o sexual, dois termos heterógenos se unem: a fixação e o recalcamento, produzindo o status do trauma, que na fantasia matematiza-se como a articulação entre o pequeno (a) e o $.” (MILLER, 2020, p. 29).
A narrativa de Vanessa circunscreve o tempo desde os seus 13 anos, em que admite ser na época "ainda virgem", mas com "um desejo de conhecer a sexualidade.”. Certo dia, acompanhou a mãe, que promovia as obras publicadas numa editora, a um jantar em que o escritor estava presente. G.M. entrou em contato com ela várias vezes, esperando por ela quando saía do Colégio, quase todos os dias. O escritor aluga um quarto de hotel próximo ao colégio, e ela negligencia os estudos. "Aos catorze anos, você não deveria ser esperada por um homem de cinquenta anos, não deveria passar a morar em um hotel com ele, nem acabar em sua cama, com seu pênis em sua boca, na hora do lanche”. Ele compartilha com V. sua vida parisiense no mundo literário: jantares, teatro, cinema, visitas, entrevistas com a imprensa. “Mas, de fato, nossa principal atividade foi o sexo.”, explica. Algum tempo depois, a Brigada dos Menores foi alertada por cartas anônimas e Vanessa foi internada no hospital para crianças doentes e abusadas, num estado depressivo profundo (SPRINGORA, 2020, p. 164).
Em seu livro, Vanessa nos transmite de que maneira o consentimento pode se conjugar com o traumatismo, pois consentindo ela foi conduzida pelo outro a ceder. “Qualquer coisa em mim se rebelava, eu tinha vontade de gritar: há alguém aí?”. Com efeito, durante algum tempo, não havia ninguém que pudesse acolher o seu desamparo, ninguém para ver que ela estava se “volatizando”, “desaparecendo” (LEGUIL, 2020).
Consentir ao desejo do Outro não é isento de angústia e, para o sujeito feminino, é sempre um ponto de passagem. O primeiro encontro, aquele em que uma jovem perde a virgindade, deixa estigmas indeléveis em seu corpo (LEGUIL, 2020). Vanessa diz que em virtude do desejo que sentia, nunca se identificou com uma vítima. “Mas uma adolescente vulnerável, procurará sempre o amor, antes da satisfação sexual” (SPRINGORA, 2020, p. 165).
O efeito traumático não vem apenas de ter sido iniciada muito cedo em práticas sexuais que não eram da sua idade, com um homem de cinquenta anos. Mas, sim, porque acreditava estar consentindo ser um objeto de desejo e amor, mas tornou-se um puro objeto de gozo para um outro. É neste ponto de vulnerabilidade que atua o veneno do mau encontro. Pois, o que Vanessa consentiu, em virtude do desejo, foi apenas a um forçamento. Portanto, houve um engano, que produziu efeitos de devastação.
Segundo Miller, “tratar o trauma como trouma (trou-matisme) é aparelhar o traumatismo sexual, não a partir da diacronia, mas sim da sincronia significante. Quando Lacan formula que não há relação sexual, ele nos dá a fórmula sincrônica do traumatismo.” (MILLER, 2020, p. 31). “Não há relação sexual”, é a versão última do traumatismo sexual em Lacan, é o axioma dos traumatismos (MILLER, 2020, p. 31).
Referências:
ALBERTI, Christine. Ornicar? In: Consentir: Liminaire, nº 54. Paris: Navarin éditeur, 2020. p. 5.
KANTOR, Jodi; TOWHEY, Megan. Ela disse (She Said). São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
LACAN, Jacques. Autres écrits. Paris: Seuil, 2001. p. 11.
LAURENT, Éric. “zonas misteriosas”. Intervenção em Londres, abril de 1977. Anotações pessoais.
LEGUIL, Clotilde. “Ambiguïté du Consentement, puissance de l’écrit”. In: Lacan Quotidien, n. 863, 8 janvier 2020. Disponível em: <www.lacanquotidien.fr>.
LEGUIL, Clotilde. “Ceder não é consentir”, 14/07/2020-J50. In: Boussole clinique. Disponível em: <https://www.attentatsexuel.com/ceder-n’est -pas-consentir/>.
MILLER, J.A. Causa y consentimiento. Buenos Aires: Paidós, 2019. p. 135.
MILLER, J.A. Mental: “Parler avec son corps”, nº 27/28. Paris: EFP, 2012. p. 127.
MILLER, J.A. Ornicar? In: Consentir: “Le sexe et son interprétation”, nº 54. Paris: Navarin, 2020. p. 29.
MILLER, J.A. Piezas sueltas. Buenos Aires: Paidós, 2013. p. 39.
SPRINGORA, Vanessa. Le Consentement. Paris: Grasset, 2020.
[1] Zelma Abdala Galesi- Psicóloga, Psicanalista, mestrado e doutorado em UIL, Membro da EBP/ AMP. Formação em Psicanálise na ECF, Paris.