LACAN INSONE[1]

 

tarsila lua

Gustavo Dessal
AME, membro da AMP e da ELP

Gostaria de começar esta segunda parte com uma reflexão pessoal, que estendo a todos os conceitos da psicanálise. Se quisermos seguir a orientação lacaniana, tenhamos em mente que Lacan nos aconselhou a não pretender imitá-lo. Ele não sentia uma simpatia especial por aqueles que repetiam sua doutrina de maneira obsequente, e sempre esperava que em seu auditório surgisse alguma dissidência, algum debate, uma voz que questionasse algo. Isso lhe resultava particularmente estimulante. Quando ele disse em A Terceira que seus sonhos “não estão inspirados pelo desejo de dormir; é sobretudo o desejo de despertar que me agita. Mas, enfim, é particular” (LACAN, [1975] 2011, p. 25), é importante destacar como essa frase culmina: trata-se de sua posição particular. O que tento dizer com isto? Que o despertar não é uma fórmula magistral da qual os psicanalistas devemos nos fazer porta-vozes, como se fosse uma mensagem evangélica. Não somos tributários de uma fé, e se estamos de verdade convencidos de que o conceito de Escola nos oferece a oportunidade de nos distinguirmos de uma Igreja, façamos um bom uso dele e não tomemos as coisas pelo viés de sua religiosidade. Não somos necessariamente pessoas que tenhamos nos desprendido de forma definitiva do sonho. Nada nos garante que o que estamos fazendo aqui, entre todos, não seja no final das contas, uma maneira de continuar sonhando juntos. Portanto, falaremos do despertar com a devida prudência a qual se obriga a um mínimo exigível para um psicanalista: que tenha elaborado algo de sua relação com o narcisismo. Afinal, essa é uma reflexão que encontramos em Lacan desde seus inícios, e que no seminário VIII, A transferência, nos aproxima deste tema. Citando Píndaro, Lacan ( [1960-1961] 1992, p. 359) escreve: "Sonho de uma sombra, o homem". Embora a função da identificação narcísica seja absolutamente essencial na constituição subjetiva, é verdade que Lacan demonstra sua dimensão de desconhecimento. O sujeito não pode se ver a si mesmo, mas se olha no eu. A visão especular tem uma função de sombra, enquanto serve para obscurecer a divisão do sujeito. Dito sujeito não é localizável no espelho, mas no campo simbólico, no Outro onde se encontra esse ponto de I maiúsculo, o traço unário. Ainda nesse seminário, Lacan concebe o sonho como “errância do significante” ([1960-1961] 1992, p. 363) e portanto considera que o sonho é um primeiro acesso à idéia de que há algo mais real que a sombra: “o real do desejo, do qual essa sombra me separa” (LACAN, [1960-1961] 1992, p. 363). O "real do desejo" não é uma expressão que se adivinhe de imediato. É preciso ler essas páginas do seminário sobre a transferência com muita atenção para entender que o desejo não tem uma relação direta com seu objeto, mas bem tudo o contrário. É real precisamente por isso, porque a significância introduz toda classe de objeções à relação entre o desejo e o objeto. É em definitivo algo que participa da mesma lógica que alguns anos mais tarde Lacan aplica quando nos diz que o gozo fálico é o que faz obstáculo entre o sujeito e o corpo do outro. "O homem com o analista desperta", argumenta Lacan ([1960-1961] 1992, p. 363). Se desperta porque o analista é quem pode, no discurso do sujeito, separar a demanda do real do desejo. Nesse seminário, Lacan ainda se mantém na concepção freudiana de que o sonho é a via régia ao inconsciente. Gostaria de lhes mostrar uma coisa: que não é tão simples ir contra Freud. O mundo dos sonhos em que Freud mergulha é algo bastante complicado, e confundi-lo com miragem imaginária é esquecer que a Interpretação dos Sonhos começa com uma epígrafe que é escrita para nos alertar desde o início que o mundo onírico não fica no céu, mas no inferno. Também não estou sugerindo que a experiência analítica, sua verdade e seu real, seja uma viagem aos infernos. O que tento transmitir-lhes são duas coisas. A primeira, é que o ser falante não pode sobreviver sem algum tipo de neurose. O despertar absoluto - e Lacan é perfeitamente explícito em sua resposta a Catherine Millot (LACAN, 1981, p. 3) - é tão impossível quanto a representação da própria morte. A segunda, é que o sonho não é ar ou fumaça. O fato de acordarmos para continuar sonhando não deve nos confundir. Com efeito, essa é uma das dimensões do sonho, só que o sonho não possui uma só. É como Lacan nos explica, o efeito que se produz quando o simbólico se liga no corpo humano: inevitavelmente nos instala no coração da ficção, único sustento da verdade. É o que nos separa do discurso científico e impede qualquer possível retorno a um estágio anterior. Mas o sonho tem um umbigo, e esse umbigo é para nos lembrar que há uma origem, que não viemos de qualquer lugar, que proviemos de um desejo insondável que nos assoma ao real da língua, ao que se fechou para sempre sob a laje da repressão primária. Em sua bela e improvisada resposta a Marcel Ritter, Lacan ([1975], 2019) começa distinguindo o orifício pulsional do umbigo do sonho, para finalmente reuni-los: o umbigo é um buraco que se tem fechado. Existe uma analogia entre o real pulsional e o real que não cessa de não se escrever, esse real que funda toda a estrutura do parlêtre. Em suma, o Unerkannte, o não-reconhecido, é o lugar onde a pulsão e a hiância da não relação sexual se encontram. Por que devemos ter isso presente? Para não acreditar que apenas o pesadelo é a via régia ao real do sujeito. Todo sonho pode sê-lo, à condição de que dito sonho encontre sua realização na transferência. Porque em todo sonho, uma vez que passamos à "consideração da representabilidade", esse mecanismo de configuração imaginário da qual Freud nos fala no famoso capítulo VII de seu Traumdeutung, existe a possibilidade de nos aproximar do ponto onde o desejo sexual aparece como metonímia da impossibilidade da relação sexual. Ou como expressa Lacan nessa resposta: “Existe uma relação com o sexo pelo fato de o sexo estar em todo lugar, exceto onde deveria estar” (LACAN, 2019, p. 41)[2].

O desejo de dormir é uma função que Lacan enfatizou insistentemente. Ele fica surpreso que Freud não tenha reduzido o dormir a uma mera necessidade fisiológica. Trata-se de um desejo. Do desejo que, em última instância, se realiza no sonho uma vez que os tenhamos analisado como a realização do desejo infantil. Todos sabemos, porque lembramos de nós mesmos, que despertar de um sonho é na verdade prolongá-lo de outra maneira e que a vida diurna é uma maneira de continuar dormindo. Mas estaríamos errados se tomássemos isso como um julgamento moral, no sentido de que o sonhar diurno fosse o estado de um sujeito que não tivesse alcançado vai saber que tipo de iluminação, ou se mostra relutante perante a verdade. Se sonhamos acordados, é pela simples razão que devemos nos virar com o exílio da relação sexual. Sonhamos para esquecer que isso não cessa de não se escrever. Se o tivéssemos diante de nossos olhos, a vida se tornaria extremamente difícil para nós. Seria a plena consciência da impossibilidade da relação sexual, a qual está totalmente descartada. A própria linguagem é algo que faz obstáculo a essa plena consciência, tal como Lacan (1981) o explica a Catherine Millot. Mas talvez seja interessante nos deter mais um pouco no fato de que o desejo de dormir deva considerar-se um desejo, em todos os sentidos que este conceito tem para nós. Se o dormir não pertence ao registro da necessidade, deduzimos que não é a exigência biológica do repouso a causa desse desejo. Na lição de 16 de junho de 1965, Lacan é explícito. O desejo de dormir é “o verdadeiro desejo do Outro. Desejo de que durmamos” (LACAN, [1964-1965] Inédito). O desejo que durmamos é o que nos mantém no plano da realidade. O princípio da realidade, esse ideal tão exaltado pelos analistas pós-freudianos, sustenta-se no desejo de que todo mundo durma. Porque não podemos dormir baseando-nos no princípio do prazer, que é impossível de satisfazer. Ou seja, o desejo de dormir é, como qualquer outro desejo, em essência um desejo insatisfeito. Portanto, nunca estamos completamente dormidos, nem durante a noite nem durante o dia. Certamente, podemos repetir que o despertar é uma maneira de continuar a vida onírica, porque talvez não exista outra. No entanto, imaginar que vivemos submersos no sono/sonho é desconsiderar que há algo que chamamos o sintoma, e que o sintoma é precisamente o que interfere no princípio da realidade. Em outras palavras, o sintoma é o que faz obstáculo ao desejo de dormir, o que impede que seja completamente realizável. Tão certo é que não acordamos completamente, como também o dormir não é um estado absoluto. Sabemos que existe uma clínica da insônia que nos permite afirmar que o desejo de dormir não é facilmente realizável. Mas seria melhor refinar um pouco mais esta questão, e nos perguntar se a insônia tem algum tipo de relação com o despertar. Não é incomum que a insônia seja uma introdução da psicose, algo bastante recorrente nas crises maníacas, mas também nas formas ansiosas da melancolia. No entanto, sua rejeição ao significante mestre não converte a experiência da psicose no despertar que nos interessa, o despertar ao qual a experiência analítica poderia nos dar algum tipo de acesso fugaz. Despertar não é, portanto, não dormir, nem no sentido fisiológico nem no sentido daquilo que se oporia ao sonho ao qual nos entregamos para que a vida possa suportar-se. Se por acaso a noção de despertar faça algum sentido singular para nós, deve se tratar de algo que vai a nosso encontro, não de maneira aleatória, mas como resultado de um franqueamento. É oportuno não fazer disso uma epifania, nem a visão da salsa-ardente, nem o lampejo de um ponto real no campo do visível. Embora o despertar que se pode esperar de uma análise possa ser acompanhado pelos mais variados fenômenos que podemos verificar nas três diz-mansões do real, do simbólico e do imaginário, em minha opinião a vivência fenomênica é completamente secundária ao que está em jogo. A única que verdadeiramente importa é a angústia, angústia que “na experiência é necessário canalizá-la e, se ouso dizer, dosá-la, para não ser por ela submerso” (LACAN, [1964] 1996, p. 43). No entanto, curiosamente, não é a angústia o que Lacan aponta como aquilo que no sonho causa o despertar. Antes de comentar o sonho exposto por Freud sobre o "filho ardendo", Lacan nos oferece um sonhado por ele mesmo. Permitam-me citar o parágrafo completo:

Outro dia, não fui de modo algum despertado, de um curto sono em que procurava repouso, por alguma coisa que batia à minha porta desde antes que eu me despertasse?  É que, com essas batidas apressadas, eu já formava um sonho, um sonho que me manifestava outra coisa que não essas batidas. E quando me desperto, essas batidas- essa percepção- se delas tomo consciência, é na medida em que, em torno delas, reconstituo toda a minha representação. Sei que estou ali, a que horas dormi, e o que buscava com aquele sono. Quando o barulho da batida acontece, não ainda para minha percepção, mas para minha consciência, é que minha consciência se reconstitui em torno dessa representação de que sei que estou sob a batida do despertar, que estou knocked (LACAN, [1964] 1996, p. 58)  

Detenhamo-nos na seqüência. Os golpes atingem o nível da percepção antes que o da consciência. Uma vez que chegam à percepção, e antes que a representação seja reconstruída e com ela a consciência, um sonho é produzido. O sonho, por assim dizer, se interpõe entre a percepção das batidas e a reconstrução da representação que provoca o despertar da consciência. Por que o sonho não pode se prolongar além? O que acontece para que, a partir de um determinado momento, o sonho não possa continuar fechando o caminho que vai da percepção à consciência? Será que talvez a intensidade das batidas tenha excedido um certo limiar e o sonho não possa mais introduzi-las em sua trama? Por que as batidas no início são amortecidas pela formação do sonho, atenuando por alguns instantes seu impacto no sistema de percepção até que sua eficácia se esgota? Em resumo: o que é que bate ao sujeito para que ele não possa continuar sonhando e o desejo de dormir seja interrompido? Esta pergunta nos deveria conduzir ao plano em que uma análise pode se prolongar até destituir a representação na qual o sujeito tem sido fixado. A primeira resposta é que não se trata de um fenômeno acumulativo. O essencial não é que as batidas ocorram sem parar até que o sonho finalmente se rende na sua proteção do sistema perceptivo. Para que o despertar ocorra, para que a representação tenha que ser recuperada com urgência, é preciso algo a mais. Não em vão Lacan remata a sua frase dizendo "Estou knocked". Não é simplesmente o barulho, mas o barulho, por algum motivo que não está claro para nós, atinge o ser do sonhador, o Kern unserer Wessen , o núcleo do nosso ser, como Freud escreve em sua Traumdeutung.

Se o sonhador acusou a batida, é porque a batida ressoou nas bordas do buraco em torno do qual o sonho tece sua trama. Lacan passa a desenvolver isso em sua análise do sonho do filho ardendo. Por que não se pode responder a esta aproximação tão extrema do sonho à realidade que o provoca sem que fosse inevitável o despertar? A razão é porque o que desperta não é um estímulo que vem do mundo exterior. É outra realidade que aciona o mecanismo do despertar. A realidade externa é apenas um instrumento que por acaso entra em sintonia com essa outra realidade que mostra a insuficiência do significante paterno para atenuar o fogo de uma voz que se faz ouvir. Aquela voz na qual o supereu se anuncia, é a pulsão. O sonho sempre a envolve, mas em certas ocasiões não pode retardar sua aparição. O despertar, que permite recuperar a representação em que está alojado o sentimento de continuidade histórica, tem uma função de defesa. O sonho protege o desejo de dormir e o despertar protege do encontro com o real pulsional.

Cinco anos depois, Lacan retomará a análise desse mesmo sonho (LACAN, [1968-19969] 2008).  O que o filho diz mostra a falha do pai, falha irremediável, irreparável, já que o pai é um ser desejante, e como tal não pode deixar de admitir seu fracasso. Ninguém pode dizer o que é a morte de uma criança, “exceto o pai enquanto pai, quer dizer, nenhum ser consciente" (LACAN, [1964] 1996, p. 60). O despertar protege o pai, mas não apenas a esse pai do qual Freud nos fala a partir deste sonho. O despertar protege ao pai como tal. É por essa razão que Lacan argumenta que continuamos sonhando, porque permanecemos sob o regime do princípio do prazer, do qual a realidade é tributária e, portanto, submetida a uma precariedade extrema. O despertar que procuramos alcançar em uma análise não pode ser nem um pesadelo nem uma afirmação do princípio do prazer.

Se o sujeito vem nos ver, geralmente é porque um sintoma não permite que ele continue dormindo. O que ele espera de nós é que o ajudemos a restabelecer seu desejo de dormir. Se o desejo de dormir é o autêntico desejo do sonho, sua versão diurna é o não querer saber. Se não há desejo de saber, então a demanda inicial por análise nada mais é do que uma demanda para retornar a um estado anterior, como Lacan indicou sobre o papel da psicoterapia. “Um sonho desperta justamente no momento em que poderia deixar escapar a verdade, de sorte que só acordamos para continuar sonhando - sonhando no real, ou, para ser mais exato, na realidade” (LACAN, [1969-1970] 1992, p. 59). O que seria um despertar que não se oponha à verdade, mas pelo contrário, que a faça valer?

Lacan se jacta de ter sido o primeiro e único - o que é absolutamente certo – a ter percebido a importância que tem a noção do desejo de dormir na obra de Freud. Talvez ainda mais que o próprio Freud, Lacan tem sabido reconhecer nisso uma sorte de axioma, de princípio fundamental do ser falante: seu desejo de dormir. Volta a isto em quase todos os seus seminários. Assim, em sua lição de 14 de junho de 1972 (LACAN, [1971-1972]  2012, p. 209), ele se pergunta em que consiste dormir, e responde:

Consiste no que se trata de suspender o que está ali na minha tétrade, o semblante, a verdade, o gozo e o mais-de-gozar. É para isso que serve o sono, basta qualquer um observar um animal dormindo para se dar conta disso – o que se trata de suspender é a ambigüidade que há na relação do corpo com ele mesmo, é o gozar.

Se há uma possibilidade de o corpo ter acesso ao gozar de si mesmo – e isso está em toda parte, evidentemente - , é quando ele bate em alguma coisa, quando se machuca. É isso o gozo. O homem tem aí umas portinhas de entrada que os outros não têm, pode fazer delas uma meta. Em todo caso, quando ele dorme, isso acaba.

 Quando dormimos a questão é justamente fazer com que esse corpo se enrole, forme uma bola. Dormir é não ser perturbado. O gozo, no entanto, é perturbador.

 Por isso quando dorme todo o resto se desvanece. Só que Freud diz: o significante, enquanto isso, continua importunando. Essa é a essência do desejo de dormir: interromper a relação do corpo com o gozo. Que o corpo descanse um pouco do gozo. A insônia é o exemplo do que acontece quando essa desconexão não pode se produzir: o corpo não para de girar, porque as reviravoltas do gozo perturbam o imaginário. Um analisante, que sofre de uma grave hipocondria, expressa isso claramente para mim: “Não posso me separar do corpo. O corpo ocupa toda a minha vida. Estou exausto e ainda assim não consigo dormir, não consigo tirar meu corpo da cabeça ou a cabeça do corpo. De qualquer forma, é impossível dormir quando se sente o corpo o tempo todo. Necessito descansar. Necessito descansar do meu corpo, do sentimento constante de que estou colado ao meu corpo”.

Prestemos atenção ao que Lacan ([1973-1974] Inédito) nos diz em seu seminário XXI: "No imaginário há algo que precisa que o sujeito durma". "O imaginário é o predomínio dado a uma necessidade do corpo, a de dormir". Por acaso Lacan mudou de idéia? Considera que o desejo de dormir é, finalmente, uma necessidade? Não exatamente. É claro que há uma necessidade, mas o que importa para nós é que, se Freud a converte em um desejo, “não é que o corpo do ser falante tenha mais necessidade de dormir do que os outros animais. A função de dormir, de hipnose, apenas toma esse predomínio do qual falei por identificá-lo ao imaginário mesmo” (LACAN, [1973-1974] Inédito). Então, se os sonhos protegem o dormir é porque fazem parte do tecido do imaginário. Aqui, já não importa o fato de que os sonhos sejam formações do inconsciente, e portanto estruturados como uma linguagem. A conclusão de Lacan é que o resultado final está a serviço da conservação do imaginário. Portanto, se a análise puder, em algum momento, produzir um efeito de despertar que não consista em prolongar o sonho, então haverá que procurá-lo naquilo que está além do imaginário como consistência. Porque todos sabem que isso não é garantido, e que alguém, após muitos anos de análise, pode perfeitamente enunciar como conclusão: "Tenho dormido bem", como Rip Van Winkle ou Epimênides de Cnosos. É o que acontece quando temos nos orientado pelo sentido e somente por ele. O sentido é o resultado da copulação da linguagem com o nosso próprio corpo, diz Lacan ([1975-1976] 2007) em sua aula em 16 de março de 1976. Essa é a base, o suporte do inconsciente. E como sabemos, o inconsciente (daí Freud o encontrou a partir dos sonhos) é feito de pensamentos. Pensamentos que tecem histórias, histórias que se enlaçam umas com outras. Não se pode fazer uma análise sem o roteiro da novela familiar. Até a encontraremos na psicose. As histórias não são privilégio da neurose. Ao ser falante, devido ao fato de que a linguagem copula com seu corpo, lhe resulta praticamente impossível prescindir do sentido. É por isto que a verdade tem uma estrutura de ficção, embora essas ficções possam ser delirantes. Afinal, não é o delírio a tentativa de recompor o sentido ali onde um significante ou um acontecimento do corpo tem desfeito ou afrouxado o que enodava ou suportava a RSI? É impossível escapar do sentido, mas, no entanto, é possível em uma análise alcançar certos fragmentos de real. É aqui onde a lógica da cura nos devolve à metáfora do umbigo do sonho. Um fragmento de real é algo que não pode se enlaçar com nada, e portanto é excluído da narratividade histórica. O estigma, a marca, a prova do real, é a sua impossibilidade de fazer contato. É curioso que nessa lição de seu seminário sobre Joyce, Lacan se refira ao real como um "fogo frio". "O fogo que queima é uma máscara, se assim posso dizer, do real" (LACAN, [1975-1976] 2007, p. 117), o que muda muito a perspectiva da análise do sonho "Pai, não vês que estou ardendo?". Mas poderia servir para refletir sobre o incurável que resulta ao final de uma análise. Do sintoma mórbido, algo sedimenta, algo que cessa de alimentar o sentido, porque não se deixa ser pego por ele, mas ao mesmo tempo não queima. Existem alguns casos em que isso é alcançado, e quando isso acontece, o que denominamos de incurável possui uma utilidade, faz possível uma nova orientação. Obviamente, o sujeito que disso resulta não está fora do sentido, mas dispõe de um instrumento suplementar, por assim dizer, em sua caixa de ferramentas. Isso o torna um pouco menos débil.

Devemos ter decifrado o inconsciente, o inconsciente de cada um, é claro. Devemos ter percorrido até o inconsciente a céu aberto, quando se trata da análise da psicose, que, como vocês sabem, é perfeitamente possível em muitos casos e não há razão para não chamar isso de uma análise. Mas a conclusão final de Lacan ([1976-1977] Inédito) é que ao final da análise, não nos identificamos com o inconsciente. Eu dou minha interpretação pessoal disso. Evidentemente, não é que o inconsciente desapareça. Mas dois efeitos podem ser esperados. Por um lado, que o gozo da decifração tenha atingido um limite. Já não nos dedicamos a ler os signos do inconsciente. Por outro lado, que o inconsciente tenha deixado de se exercer no sentido de compulsão à repetição, que deixe de puxar todos os fios do sujeito. Onde termina a análise então? Lacan tinha sido particularmente atraído pelo conceito freudiano de identificação ao traço unário, ao Einziger Zug do qual Freud falou em sua Psicologia das Massas. Lacan interessou-se por isso - e precisamente se lembra disso em sua lição de 16 de novembro de 1976, quando aborda o plano do final - porque o traço unário é o suporte de uma identificação que não tem nada a ver com uma pessoa amada, e isso a distancia do imaginário. Ao evocar seu próprio interesse no traço unário no momento de seu seminário sobre a identificação, Lacan sugere que pode haver uma maneira de concluir pela via da identificação ao sintoma. E ele o expressa de uma maneira muito simples: a identificação ao sintoma consiste em tê-lo transformado em aquilo que se conhece melhor do que qualquer outra coisa. “O que significa conhecer? Conhecer seu sintoma quer dizer saber fazer algo com ele, saber desembrulhá-lo, manipulá-lo” (LACAN, [1976-1977] Inédito). Talvez esse seja o despertar que podemos esperar da experiência de uma análise. É claro que continuaremos sonhando, e dormindo, e cometendo lapsos, e tudo aquilo que dá provas de que a linguagem continua nos atravessando, e que o sentido persiste e que o ser falante nunca se desprende de seus pensamentos. Mas existe a possibilidade de que algo não possa voltar a dormir. Vocês já sabem o que Lacan acabou dizendo sobre os pensamentos: é muito difícil não obrar com eles, e ao mesmo tempo trabalhar com o pensamento é algo que beira a debilidade mental. Ele diz isso com todas as letras em 11 de abril de 1978. É por isso que o sintoma pode nos afastar pelo menos um pouco dessa debilidade. “Seria necessário que exista um ato que não seja débil mental. Esse ato tento produzi-lo com o meu ensino. Mas é apesar de tudo um murmúrio. Confinamos aqui com a magia” (LACAN [1977-1978] Inédito).

A magia. Em efeito, a análise é uma mágica. Por que não? Não é algo extraordinário que no final de seu ensinamento e de sua vida, após incontáveis esforços para elucidar o que é a psicanálise, Lacan admita que se trate de uma mágica, uma mágica que é sustentada pelo fato de que não há relação sexual? Talvez à luz do que vimos, e veremos mais e mais sobre a maneira como o discurso técnico-científico se apodera do campo da subjetividade, não está mais de acordo com o espírito de subversão que a psicanálise seja nomeada por nós mesmos como uma mágica? Se não o fizermos, é no fundo por razões de conveniência social, isto é, de política. No seu escrito A ciência e a verdade Lacan fez o trabalho de comparar a psicanálise com três coisas: a ciência, a religião e magia. Ele poderia ter incluído a filosofia, mas não o fez.  Preferiu a magia, por uma razão que insistiu sempre nele: se questionar por aquilo que é operativo em um discurso. Obviamente, não é minha intenção tomar essa ironia de Lacan ao pé da letra. Mas se prestássemos um pouco de atenção, então não estaria demais lembrar que Lacan levou muito a sério a questão da magia, ao abordá-la como uma verdade que remete à eficácia simbólica, isto é, à ação do significante do encantamento sobre o significante na natureza (LACAN, [1966] 1998), para o qual a presença do xamã  é indispensável, pois somente a partir desse suporte corporal é que o sujeito se dispõe à ação mágica. Certamente que, diferente da psicanálise, tanto o saber da magia quanto seu ato ficam velados e dissimulados. A eficácia analítica, pelo contrário, é um saber suposto ao qual teremos de exigir-lhe sua exposição. A magia psicanalítica, para finalizar com a provocação de Lacan, deveria nos conduzir a um saber que já não poderia voltar a ocultar-se, um saber que resguarde o sujeito de seu desejo de não despertar.

Notas

[1] Conferência pronunciada na IV Jornada da EBP-Seção Santa Catarina – Tempo de sonhar, instantes de despertar – realizada em 18/19 de outubro de 2019 - Tradução de Mariana Zellis e revisão geral de Paula Lermen.

2 A tradução é nossa.

Referências

Lacan, J. A Terceira (1975). Opção Lacaniana, n. 62. São Paulo: Edições Eolia, 2011.

 ______. O Seminário, livro VIII: A transferência (1960-1961). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

 ______. Réponse de Lacan à une question de Catherine Millot. Improvisation: desid de 3 mort, rêve et réveil, L’Ane, 3, 1981.

 ______. Lómbilic du rêve est un trou (26 de janeiro de 1975).  La cause du désir,  n. 102. Paris: Navarin, 2019. páginas 35-43

 ______. O Seminário, livro XIII: Problemas cruciais para a psicanálise (1964-1965.) (Inédito).

 ______. O Seminário, livro XI: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise (1964). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.

______. O Seminário, livro XVI: De um Outro ao outro (1968-1969). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

  ______. O Seminário, livro XVII: O avesso da psicanálise (1969-1970). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

  ______. O Seminário, livro XIX:  ...ou pior (1971-1972). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2012.

  ______. O Seminário, livro XXI: Os não-tolos erram (1973-1974). [Aula de 19-3-1974] (Inédito).

  ______. O Seminário, livro XXIII: O sinthoma (1975-1975). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.

______. O Seminário, livro XXIV: L´insu que sai de l’Une-bévue s’aile à mourre (1976-1977). [Aula de 15-11-1976] (Inédito).

______. O Seminário, livro XXV: Momento de concluir (1977-1978). (Inédito).

______. A ciência e a verdade. In: _____. Escritos (1966). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

 

 

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