RESTOS INGLÓRIOS
Em torno de algumas emergências do real nos sonhos

mulherdeitada

Diego Cervelin[i]
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  1. I. Depois de perder seu emprego, Glória chega ao consultório dizendo-se deprimida, tomada por uma sensação de inutilidade e desinteresse por atividades que, até então, eram fontes de prazer. No serviço, Glória cuidava do encaminhamento de reclamações. Pautava suas tarefas e sua vida familiar segundo critérios de performance e de produtividade, com sentidos palpáveis, organizados e encadeados entre si. Depois da demissão, esses sentidos se desmaterializaram e um vazio no limiar do mortífero se presentificou. Mesmo sem entrar em detalhes, disse ter pesadelos – com mortos – e se queixou de que, nessas horas, acordava ainda mais cansada, sem conseguir dormir de novo. Entendendo que, no sono, deve-se descansar, ela afirmou não querer mais sonhar e decidiu aumentar, por si mesma, as doses da medicação. Queria “dormir igual uma pedra”.

            Essa vinheta, além de conter alguns elementos do questionamento sobre os instantes de despertar, também nos coloca diante da relação entre os arranjos da economia libidinal e uma possibilidade de consentimento com aquilo que é do inconsciente. Na contramão da aposta sem restos e que reitera um nada querer saber, trata-se da assunção da divisão subjetiva e, quem sabe, da abertura de alguma retificação diante do sem sentido e do fora do sentido.

  1. II. Na medida em que nossa prática analítica esteja orientada por aquilo que não cessa de não se escrever, os sonhos não surgem apenas como via régia de acesso ao inconsciente transferencial. De acordo com Ram Mandil (2019), os sonhos possibilitam um contato com algo do inconsciente real ao menos em duas situações. Uma delas remete ao umbigo do sonho, que, aliás, aparece logo no começo da Traumdeutung, no sonho da injeção de Irma, fazendo confluir desejo – sexual, na leitura de Lacan (2010, p. 216) – e “revelação do real naquilo que tem de menos penetrável, do real sem nenhuma mediação possível” (LACAN, 2010, p. 223).

Como assinala Ram Mandil (2019), umbigo do sonho não quer dizer um nada de interpretação, mas, antes, uma sucessão sem fim de interpretações que redundam “‘no desconhecido [Unerkannt]’”. Unerkannt, segundo Lacan (apud MANDIL, 2019), diria respeito àquilo “que ‘não é reconhecido’ e que pode ser aproximado do recalque originário”. Nesse ponto, real e realidade psíquica se apresentam em sua efetiva disjunção, de tal maneira que, por um lado, há furo no qual se agita uma evasão de sentido, e, por outro, há marca do limite da própria representação. Ou seja, na presentificação do umbigo do sonho, há um efeito de furo que, pela evasão de sentido, também engendra um efeito de real... que se inscreve, como opacidade, até mesmo no relato.

Uma segunda situação de contato com algo do inconsciente real estaria, por outro lado, “não [...] no despertar em si, mas naquilo que, no sonho, provoca o despertar” (MANDIL, 2019). Não se trata, com isso, de apostar na existência de um despertar absoluto enquanto liberação do simbólico. Como bem pontua Rosa Elena Manzetti (2019), um sonho, por si mesmo, já é uma interpretação, um trabalho para cifrar e dar algum tratamento simbólico àquilo que não é simbolizável – i.e., as moções pulsionais –, acorda-se, então, para que se possa continuar sonhando na realidade psíquica, com as intrusões do real mais ou menos mediadas pelo enquadramento da fantasia. Assim, se, por parte do eu, há um desejo de dormir, por outro lado, há os investimentos inconscientes que, no caminho de busca por descarga, cumprem um papel de ameaça. No sétimo capítulo da Interpretação dos sonhos, Freud considera duas saídas para um processo de excitação inconsciente:

ou ele permanece abandonado a si mesmo, e então finalmente irrompe em algum ponto e obtém desafogo para a excitação na motilidade, ou sofre a influência do pré-consciente, e sua excitação é por este atada, em vez de descarregada. Este último processo ocorre no processo onírico. O investimento que do Pcs vai ao encontro do sonho tornado percepção, porque foi dirigido para lá pela excitação da consciência, ata a excitação inconsciente do sonho e a neutraliza como perturbação. O sonhador desperta por um momento [...] Podemos imaginar agora que realmente é mais apropriado e econômico tolerar o desejo inconsciente, liberar-lhe o caminho da regressão para que ele forme o sonho, e então atar e lidar com esse sonho por meio de um pequeno dispêndio de trabalho pré-consciente, do que manter o inconsciente sob controle por toda a duração do sono (FREUD, 2019, p. 631).

Trata-se, desse modo, da formação de compromisso entre Ics e Pcs, no qual um descarrega as excitações inconscientes, servindo-lhe de válvula, ao passo em que se garante alguma permanência do sono (cf. FREUD, 2019, p. 632). Freud não deixa de reafirmar sua tese de que os sonhos servem como salvaguarda do sono e para realizar desejos inconscientes. Contudo, ele nota que, se essa realização agita os arranjos pré-conscientes, há uma ruptura do compromisso e, por fim, um despertar.

Esse mecanismo surge no sonho “Pai, não vês que estou queimando?”, lido por Freud como desejo de um pai de ter seu filho vivo e comentado por Lacan, no Seminário 11, na esteira do mais além do princípio do prazer. Insuportável, essa frase cumpriria uma dupla função: por um lado, procura recompor “uma realidade ‘constituída e representada’ [...] uma defesa”; e, por outro, revela uma presença do real, quando se “esbarra na falta de representação” (MANDIL, 2019; LACAN, 1998, p. 61). Ela deixa patente aquele caráter sempre relativo da proteção do Outro na presentificação do gozo. No sonho traumático, no sonho de angústia, nessa instância de repetição do encontro faltoso com aquilo que, do real, resta inassimilável, um trauma retorna com uma exigência de que seja integrado ao simbólico. Mas aquilo que acorda é uma outra realidade, aquela do real pulsional (cf. LACAN, 1998, p. 61) e despertar significa, por fim, defender-se diante do real inassimilável, do que não cessa de não se escrever.

III. Não é exatamente isso que parecia acontecer no caso de Glória. Seus pesadelos marcavam um “estive aqui” que se confundia com sua realidade fraturada e mortificada. Distante do que se passa nos sonhos traumáticos e nos sonhos de angústia, os significantes se mostravam em um envelopamento bastante precário do traumático, numa condição que, mesmo no instante de despertar, fazia do sujeito presa fácil da pulsão de morte. Esse despertar, no caso, não estaria mais do lado da primeira possibilidade aventada por Freud para as excitações inconscientes, i.e., aquelas que, abandonadas a si mesmas, passam ao largo da influência pré-consciente?

Não sem dificuldades, Glória segue vindo ao consultório e, agora, mais implicada, consegue se questionar um pouco sobre aquilo que, nela, parece estar contra ela.

REFERÊNCIAS

FREUD, S. Obras completas. Vol. 04. A interpretação dos sonhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
LACAN, J. O Seminário. Livro 11 – os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
____. O seminário. Livro 2 – o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. 2 ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
MANDIL, R. Sonho e inconsciente real. Rebus – Boletim do XII Congresso da AMP. O sonho – sua interpretação e seu uso no tratamento lacaniano, núm. 03. Acesso em: 04 nov. 2020. Disponível em: <https://is.gd/t534vl>.
MANZETTI, R. E. Un sogno che fa eccezione. Il sogno traumatico: “Padre, non vedi che brucio?”. Papers+Um. Freud a-la-Lacan, pp. 21-15. Acesso em: 04 nov. 2020. Disponível em: <https://is.gd/ggUeIo>. 

[i] Analista praticante, participa das atividades da EBP – Seção Sul - e do ICPOL – SC. Doutor em Literatura.

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