A CONTEMPORANEIDADE DE MACABÉA

menina

Marcia Stival Onyszkiewicz
AP, membro da EBP/AMP
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Na década de 80, período em que o Brasil clamava pela democracia, tramava-se com o fio orientador da literatura, o longa metragem “A hora da estrela”. Produção do cinema brasileiro que contempla uma busca de apreensão do mundo pela via das palavras, considerando as surpresas que podem surgir veiculadas pelos significantes. Uma película que marca a precariedade simbólica de uma jovem, impossibilitando que a apropriação do que lhe é mais singular possa se inscrever. Esta complexidade que também retrata um corpo tocado pelas palavras, emerge com a simplicidade de Macabéa, quem ganha vida com a interpretação de Marcélia Cartaxo. Um contraponto tão sensivelmente captado da obra de Clarice Lispector, por Susana Amaral, quem se viu impulsionada a criar uma “metáfora do Brasil”[i].

Com estes norteadores, proponho uma visada da psicanálise que vai ao cinema e as seguintes questões: o que a personagem Macabéa instiga a pensar sobre a palavra e seus limites? Como ler a incidência de alguns posicionamentos de Macabéa, tendo em vista a proposta de Susana Amaral, de trazer um retrato do país?  

Vinda do interior para a metrópole, esta nordestina de dezenove anos encontrava-se sozinha no mundo. Aceitava as palavras que lhe eram dirigidas, pedindo desculpas diante de qualquer manifestação de incômodo que lhe chegava. Um movimento que a levava, por exemplo, a assinar um contrato sem sequer lê-lo e a agir como se nada houvesse ocorrido, frente às destituições.

Retratando uma precariedade simbólica, apontou no que se ancorava: “sou datilógrafa, virgem e gosto de Coca-Cola”. Ao banhar-se nas informações trazidas pela Rádio Relógio, captava um repertório cultural do qual se servia, quando o silêncio pairava entre ela e Olímpico. Se havia satisfação ao escutar, escrever, reproduzir e questionar o que tinha ouvido na Rádio Relógio, com seus comentários e questionamentos não conseguia se enlaçar amorosamente. Frente a tais reproduções, era inevitável a surpresa de quem a escutava. O que estas palavras rompiam ao retratarem pouca familiaridade com expressões do cotidiano e por demonstrarem o quanto ela desconhecia o que havia falado?

Aposta-se que deste modo Macabéa evidenciava sua alienação pela reprodução sem parâmetros do que escutava, bem como pela apatia diante das manifestações de superioridade e visada de poder, que o namorado apresentava. Entretanto, haviam interrogações retratando que Macabéa expressava um querer saber, os quais “encostava (Olímpico) na parede”, fazendo titubear a posição de mestria que ele tentava sustentar.

As palavras de Olímpico marcavam destituições, mas foram além. No auge de sua irritação, ele destacou para a moça que “gente fala de gente”. Neste momento a jovem expôs que não estava acostumada a falar de si e não sabia explicar porque motivo isto ocorria. Achava sim que era alguma coisa, apesar de não saber o que tinha dentro do seu nome. O que sabia é que tinha existido uma promessa. Se “vingasse, receberia o nome de Macabéa”.

Há que considerar as restrições do repertório da jovem, que favoreciam um posicionamento passivo na vida. Diante dos insultos, gradativamente, o corpo de Macabéa começou a mostrar sinais de que era afetado pelas colocações que lhe eram dirigidas. Com o olhar explicitava algo que escapava deste modo resignado, colocado pelas palavras. Até que chegou num limite e conseguiu dizer a Olímpico que era hora dele ir embora. Um ato tão diferente dos demais, seguido de silêncio e que remete ao mencionado por Miller: “ existe pelo menos um que não é como todos”[ii]. Cena simples, marcada com precisão. Uma resposta  que dava basta aos insultos.

Foi sim insuportável escutar que era um cabelo na sopa de Olímpico, quem não tinha vontade de comer. Macabéa encontrava-se devastada e para “não se doer”, buscava anestesiar-se consumindo aspirina. Este movimento reverberava o medo que sentia das palavras, reprimindo-as e sustentando a crença no discurso da ciência. Como não havia espaço para tocar pelo simbólico, no real, para se inscrever em outra posição na vida, estava fadada a acreditar nos discursos que não concebiam a angústia como “um afeto”[iii], isso “que não engana”[iv]. Na sequência, a mortificação chegou às vias de fato. Inebriada pelas palavras de uma vidente, seguiu num encantamento nunca visto e morreu atropelada.  Sem efeitos especiais e sem grandes produções, a hora da estrela chegou.          

Ficam questões mediante o enigmático final do filme: o que Susana Amaral buscou romper com a morte de Macabéa? E uma nova vida se inscreveria para quê? Trinta e cinco anos após a criação do filme, num tempo em que a democracia mostra-se abalada, o que a figura de Macabéa pode nos ensinar?

Enquanto as perguntas ecoam e cada um se dá o tempo de ver, compreender e concluir, recorro à escrita de Clarice Lispector, em A hora da estrela, para finalizar:   “enquanto eu tiver perguntas e não houver respostas, continuarei a escrever”[v]

[i] AMARAL, Susana. Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=jnaUz-yGfTA

[ii] MILLER, Jacques-Alain. État de droit et exceptionMental 37, p. 146.

[iii] LACAN, Jacques. O Seminário livro 10 – A angústia (1962-1963). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p.28.

[iv] Idem, p.88.

[v] LISPECTOR, Clarice. A Hora da Estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p.11.

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