INTERPRETAÇÃO E TRANSFERÊNCIA: O PROBLEMA DA FICÇÃO

buraco negro

Gustavo Ramos da Silva[1]
Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

Se tomarmos o que chamamos de ensino de Jacques Lacan, podemos localizar dois momentos cruciais no que se refere ao conceito de interpretação e de transferência. No Seminário 8, A Transferência, após as lições sobre O Banquete de Platão, Lacan vai se dirigir ao estudo do que denominou "A transferência no presente", que é o título do capítulo XII do mesmo seminário. É aí onde Lacan nos dará as balizas da transferência no primeiro ensino, pois esta é resultado do desdobramento de duas cadeias significantes - em termos do grafo do desejo, construído dois anos antes, seria a cadeia do enunciado, do primeiro andar, e a cadeia da enunciação, do segundo andar - e seria ali, nesse ínterim entre as duas cadeias, que o sujeito se constituiria. Haveria um significante, dito S2, que, por retroação, daria o sentido ao S1, e nessa passagem há um Outro bem constituído, por isso se denominar de a significação do grande Outro, s(A), dando jus ao momento fundante do inconsciente: a interpretação.

O sentido retorna ao ponto primeiro dando a verdade ao sujeito, a sua ficção, pois a partir desse instante o que o Outro demanda, o sujeito buscará ser, com um pequeno detalhe: além de ser vazio, esse traço não é tudo; o que faz o circuito do desejo existir está além desse traço, está na marca do que não veio do campo do Outro. É Lacan, no seminário citado anteriormente, quem fará a correlação entre transferência e ficção ao nos afirmar:

Igualmente, chegamos aqui ao ponto onde a transferência aparece como, falando propriamente, uma fonte de ficção. Na transferência, o sujeito fabrica, constrói alguma coisa. E a partir daí, não é possível, parece-me, não integrar imediatamente à função da transferência o termo ficção. Em primeiro lugar, qual é a natureza dessa ficção? Por outro lado, qual o seu objeto? E, tratando-se de ficção, o que é que se finge? E, já que se trata de fingir, para quem? Se não se responde de imediato para a pessoa a quem se dirige, é porque não se pode acrescentar sabendo disso. É porque estamos, daqui por diante, muito distanciados, pelo fenômeno, de toda hipótese daquilo que se pode chamar maciçamente pelo nome de simulação. (LACAN, [1960-1961] 2010, p. 220-221)

Ao diferenciar ficção e simulação, estamos nos distanciando do que se poderia pensar, em um primeiro momento, do sonho como um jogo para saber o sentido universal do conteúdo sonhado; mas, há também um ponto de relevância que foi o contato de Lacan com Roger Caillois culminando, anos depois, no texto de Gérard Wajeman, Théorie de la simulation, o qual parte da seguinte constatação: como não se sabe quem simula, o médico precisa fazer ciência sem confiança, sem prova alguma de que aquela manifestação seja "real", o que daria ao médico a certeza do que fazer e do como agir diante disso. A pergunta pelo "quem simula" foi retomada por Lacan no Seminário 13, de 1965-1966, quando situa o discurso da ciência e o da religião opostos ao que seria um discurso da psicanálise porque os dois primeiros preenchem o seu centro com uma figura do universal.

Na conferência Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência, Éric Laurent inicia trazendo à tona um certo mal-estar com a clínica da foraclusão generalizada, pois isso, segundo Jacques-Alain Miller, pagar-se-ia com um preço evidente: o quase desaparecimento do uso do termo transferência no último ensino de Lacan. Nos Seminários 23 e 24 há, porém, uma única passagem, no L'insu, onde podemos localizar a transferência. Nele, Lacan fala da transferência positiva como sendo relacionada ao sujeito suposto saber. Sob esse prisma, há uma diferença apontada por Laurent e que nos é de especial importância quando se pensa o desaparecimento da transferência no último ensino, pois como conceberemos a transferência sem o Outro? A suposição não é mais tão interessante neste momento, nem a barra no Outro, haja vista que o analista não está mais na posição de sujeito suposto saber, mas sim na daquele que segue - suit - o paciente, provocando a homofonia no francês, apontada por Laurent, entre o eu sou - je suis - e o ele segue - il suit. Neste texto, Laurent retoma a definição lacaniana do Seminário 8 quando diz, sobre o efeito do SsS: "É com esse nível da hipótese que Lacan quer romper [no último ensino]. O efeito da hipótese, da ficção, é transferir para o analista o lugar da causa da produção do saber em análise." (p. 55) É a famosa pergunta, dirigida ao analista, sobre o que isso quer dizer no sonho, uma demanda de interpretação hermenêutica - aquela que visaria o sentido - e não de interpretação analítica - a qual, pelo contrário, depende da transferência e é apofântica, por meio de um ato não diz a verdade/a mentira sobre algo, mas diz de verdade algo de um sujeito particular, como nos aponta Miquel Bassols. A primeira opção nos levaria à simulação, e a segunda nos remonta ao faire-vrai, o fazer de verdade do Seminário 24, afinal de contas é ele o que permitiria ao sujeito restabelecer uma certa homeostase apesar dos tropeços, tradução do l'une-bévue, que também pode ser do inconsciente, Unbewust. O analista, ao manejar o sonho em uma experiência de análise, não estaria mais na função de secretariar - primeiro ensino -, mas na de fazer de verdade tal tropeço. Desse modo, podemos apostar em uma modificação da transferência, no sentido de provocar uma passagem do repouso e do sono para o despertar. Se o repouso adviria de uma ficção organizada edipianamente, permitindo uma estabilização da metáfora delirante graças a essa ficção, o despertar se manifestaria como o que funcionaria no reverso do uso comum da ficção, como um despertar, a fixão, essa nova abordagem da interpretação, fazendo despertar o delírio, porém tendo o analista na posição daquele que segue e não mais daquele que sabe. Isso faz com que passemos da cadeia significante - S1 e S2 - dando-nos, aí sim, o sentido do sonho, para o furo, impossível de tamponar e possibilitando a criação.

Referências

BASSOLS, Miquel. Tempo de interpretar. Vídeo para a XIV Jornada da Escola Brasileira de Psicanálise Seção Bahia.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 8: a transferência (1960-1961). 2. ed. Trad. de Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.

_______. Le Séminaire, livre 13: l'objet de la psychanalyse (1965-1966). Inédito.

_______. O Seminário, livro 23: o sinthoma (1975-1976). Trad. de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

_______. Le Séminaire, livre 24: l'insu que sait de l'une bévue s'aile à mourre (1976-1977). Inédito.

LAURENT, Éric. Disrupção do gozo nas loucuras sob transferência. Trad. de Sérgio Laia. In: Opção Lacaniana - Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo: Edições Eolia, n. 79, jul. 2018.

WAJEMAN, Gérard. Théorie de la simulation. In: Analytica: cahiers de recherche du CF. Paris: Navarin-Seuil, v. 22.


 Psicanalista. Responsável pelo Laboratório Encontro de Saberes do CIEN-SC. Membro da equipe de coordenação do Núcleo Pandorga, ligado à NRCereda, e do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise e Literatura, do ICPOL-SC. Doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANALISE - ESCOLA DO CAMPO FREUDIANO
SEÇÃO SANTA CATARINA

Rua Professor Ayrton Roberto de Oliveira, 32, Sl. 502 (Térreo)
Bairro: Itacorubi - Florianópolis  Santa Catarina

Telefone: (48) 3222-2962 

Receba Notícias

The sleep of reason produces monsters - Francisco de Goya - 1799