DA NARAÇÃO DO SONHO AO TROPEÇO

 Eneida Medeiros imagem Cecília Mangini
Imagem de Cecília Mangini

Eneida Medeiros Santos
Psicanalista membro da EBP/AMP
Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

A narração é um dos modos mais estáveis do uso da linguagem, diz Ricardo Piglia. A própria linguagem se constitui como tal a partir da narração quando usa as palavras para nomear alguma coisa que já não está mais aí para reconstruir uma realidade ausente (PIGLIA, 2015, p. 26). A narração implica uma testemunha, uma presença viva servindo para transmitir e pensar a história contada; ela se liga ao bom relato. Posso relatar um dia de minha vida, uma viagem, um sonho, mas como pode ser que uma história particular interesse não só a quem conta, como também a quem escuta? Um bom narrador, diz Piglia, não somente é aquele que tem o sentimento da experiência, mas também aquele que consegue transmitir ao outro a emoção nela contida. A potência da narração, do bom relato, depende da implicação do interlocutor e da relação específica do narrador com sua forma de relatar, fazendo dessas, as principais características da tradição oral da narração.

O que é, então, um bom relato? Piglia conta uma anedota ocorrida na Argentina, na época da ditadura militar. Alguém havia afirmado ter visto passar um longo trem, numa estação de trem do subúrbio, indo do norte ao sul, bem devagar, carregado de caixões. A história aludia aos cadáveres desaparecidos na ditadura que não puderam ser sepultados. Não se sabe se o relato, disseminado como peste entre as pessoas, é uma história verdadeira ou uma invenção; ou se este relato serviu, ele mesmo, para interpretar e decifrar a dura realidade, essa sim, bem real, dos assassinatos em tempos de ditadura. A narração é a construção do narrador como um sujeito pensando a si mesmo a partir daquilo que narra, sem nenhum compromisso com a verdade e sem decidir sobre a sua significação.

Por um lado, a narração é a história testemunhada por alguém, por outro, mais histórias são possíveis de serem contadas a partir dela. Na anedota, a narrativa antecipava os milhares de jovens soldados que morreriam nas Malvinas dois anos depois. Depois de contada, circulou uma história que ressaltava justamente a direção que o trem tomava em direção ao sul da cidade de Buenos Aires. Assim, quem conta, apregoa Piglia, dá forma ao que narra, deixa sua impressão naquilo que narra, “como a mão do oleiro na argila do vaso”, nas palavras de W. Benjamin (BENJAMIN, 2018, p. 149). Nunca conta também de forma direta, apontando ao sentido, mas sempre de maneira deslocada.

Há alguma proximidade entre um relato de passe, dispositivo inventado por Lacan para transmitir um final de análise, e o gênero literário da narração, seja naquilo que ele porta de um bem dizer, seja porque se revela como um relato ausente de uma experiência ou de uma história, visando também a fuga do sentido. Aquele que se entrega a essa experiência é também um viajante que, para Piglia, é um verdadeiro narrador, pois sabe o que viu em outro lugar e por isso pode contar. Um bom exemplo de narração para Piglia é o relato de um sonho.

Sob esse aspecto, a “narração” de um sonho em análise mostra uma tensão sempre oscilante entre o que pode e o que não pode ser dito. Os significantes que daí brotam, as falas disruptivas, as homofonias e ressonâncias são elementos sensíveis à localização do espaço onde a fala alcança o impossível de dizer, mostrando o vazio de referência, o que está no cerne da língua como tal (LAURENT, 2016, p. 228). O relato do passe destaca aquilo que da língua não pode ser designado, buraco onde se aloja um significante que condensa um gozo no corpo e tem um valor de letra. Aí reside nosso ponto de interesse! Escrita e fala se enodam no relato de uma análise. Miller propõe isolar a função de uma escrita que não é a fala. Ele propõe isolar uma escrita primária, escrita pura, rastro de um gozo inesquecível e radical na história de um sujeito deixado pela marca da letra (MILLER, 2011, sem paginação).

No relato de um sonho hitchicoquiano vemos o ponto preciso da ressonância da letra como uma marca de gozo no corpo. Subitamente, enquanto o sonhador realiza uma atividade cotidiana, cai um pássaro, cinza e fofo sobre ele. Ele estende os braços e sustenta o corpo morto do pássaro, acordando pelo efeito da angústia que, por sua vez, desaparece também subitamente assim que desperta. Quando o sonho é relatado, o analisante diz que houve um barulho (vuuuuuup!), como um sopro veloz, como uma rajada de vento que o assaltou, pegando-o desprevenido. É o mesmo barulho "seco” do corpo de um suicida chocando-se sobre o asfalto, acidente que sua mãe presenciou em outra ocasião. "Um corpo que cai”, diz ele.

Aqui, para além dos desdobramentos do sentido, é preciso ouvir o que do relato topa com o indizível e assim atinge o ponto do impossível. O “Vuuuuup” ressoa no relato revelando a conjunção do objeto voz com o texto sonhado. Então, o analista pode fazer a leitura de algo que se escreveu para esse sujeito. Um escrito que não tem relação com nenhum significado, mas resguarda um caráter vivo da linguagem porque carrega o objeto voz com o valor de letra. A interpretação analítica favorece a leitura da mudança da palavra falada em escritura, testemunhando, de um lado, uma escrita dando apoio ao registro da fala, e, de outro lado, uma palavra se nutrindo do efeito da voz. O “Vuuup” é o que vai se fazer ouvir na sua sonoridade. A escrita do som, portadora do efeito da voz, enlaça a fala e o escrito, o significante e a letra. A letra é essa marca sonora de gozo, esse sulco escrito deixado pelo objeto, perdido para sempre.

No Seminário XVIII, Lacan se pergunta sobre a função da escrita. Diz que ela é alguma coisa da ordem do “fazer-com”, i-wei em chinês, que promove uma ruptura singular. Esta ruptura, ponto de fratura, mostra que a relação sexual falhou no campo da verdade. O passe é o relato de um percurso que bem diz dos pontos de fraturas ou do ponto fundamental de fratura ocorrido para um sujeito, por meio do qual sua verdade mentirosa fracassou ao ser dita. Neste seminário, Lacan considera de forma especial a caligrafia e a pintura chinesas como exemplos do singular do gesto em suas práticas. E aí podemos pensar, a partir de Lacan, como, no escrito, o singular da letra esmaga o universal da linguagem.

Indicar a dimensão de uma equivocação, abordando o relato a partir da perspectiva do gozo escrito no corpo, da lalíngua, aí está algo interessante num relato psicanalítico. Quando um significante se solta do relato, fazendo-se presente no limite do sentido, no limite da verdade e no limite mesmo do relato, estamos diante do fracasso, do tropeço do relato, e somente aí podemos falar de um “bom relato”. Só assim o relato de um passe é um bom relato, não porque é uma história bem narrada, “redondinha”, com um enredo bem articulado, mas porque ela faz escutar um fracasso no próprio relato, um tropeço da língua falada que, tropeçando, mostra o litoral entre a "letra que se escreve na palavra dita e a escritura que existe no dizer.” (BASSOLS, 2017, p. 202).

Referências:

BASSOLS, Miquel. Lituratierra incognita. In: Lo femenino, entre centro y ausencia. Olivos: Grama Ediciones, 2017. p. 202.

BENJAMIN, Walter. O contador de histórias: reflexões sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Linguagem, tradução, literatura: Filosofia, teoria e crítica. Trad. de João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2018. p. 149.

LAURENT, Éric. Falar a língua do corpo é fazer rezonar (réson). In: O avesso da biopolítica. Uma escrita para o gozo. Trad. de Sérgio Laia. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016. p. 228.

MILLER, J. A. O Ser e o Um. Trad. de Vera Avellar Ribeiro. Inédito.

PIGLIA, Ricardo. Tiempo de lectura. In: La forma inicial: conversaciones en Princeton. Buenos Aires: Eterna Cadencia Editora, 2015. p. 26.


Resumo: Partindo da concepção de Ricardo Piglia sobre a narração, este texto aborda a questão das aproximações e das diferenças entre quem narra e aquilo que é narrado, os pontos de contato e os pontos de fuga. Há no sonho um ponto sem referência alguma possível, próprio da língua, e que será transmitido no relato de passe, enodando, de certa maneira, a escrita e a fala. Para isso, trago um relato de sonho de um paciente em análise para ver o que ressoa, se equivoca e tropeça, quando um significante se solta do relato, saindo do sentido primeiro e adquirindo uma outra ressonância a partir do tropeço, possibilitando, assim, uma escrita do dizer.

Palavras-chave: Sonho; Relato; Tropeço; Escrita.

ESCOLA BRASILEIRA DE PSICANALISE - ESCOLA DO CAMPO FREUDIANO
SEÇÃO SANTA CATARINA

Rua Professor Ayrton Roberto de Oliveira, 32, Sl. 502 (Térreo)
Bairro: Itacorubi - Florianópolis  Santa Catarina

Telefone: (48) 3222-2962 

Receba Notícias

The sleep of reason produces monsters - Francisco de Goya - 1799