NAVEGAR É PRECISO?

 

Louise Lhullier imagem Sigalit LandauImagem: Sigalit Landau

Louise Lhullier
AP, membro da EBP/AMP
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O que é o real? Em O ser e o Um, Miller retoma essa pergunta que insiste, desde a conferência que Lacan proferiu em 1953 – O simbólico, o imaginário e o real – até o final de seu ensino. Nesse percurso, a referência necessária aos outros dois registros do ser é uma constante: o real se define em sua relação com o simbólico e o imaginário.  

No entanto, essa relação não se apresenta da mesma maneira ao longo desse ensino. Principalmente a partir do seminário XXII, valendo-se da topologia dos nós, Lacan buscou saídas para os impasses com os quais se defrontava na tentativa de transmitir algo dessa articulação, através de manipulações e circularidades, do jogo com elementos que permitem múltiplos arranjos. Isso se pode ler nas transcrições de seus últimos seminários ainda não publicados, assim como no seminário XXIII, estabelecido por Jacques-Alain Miller. Dessa forma, podemos acompanhar Lacan nesse discurso  onde os sentidos não se cristalizam, mas, ao contrário, se dissolvem e se rearranjam, em novas configurações. Por outro lado, algo que não muda, mas, ao contrário, se reafirma em seu último ensino, é que o real só pode ser concebido na relação com os outros dois registros. Embora seja impossível construir uma topologia do real, Lacan buscou aí uma “geometria do sentido”, uma estrutura que, tomada ao inverso, mostrasse o que ex-siste ao campo do representável.

Como diz Miller em O lugar e o laço, o que se impõe a partir do nó borromeu é “contornar – uma circularidade posta em relevo por cada uma das rodinhas de barbante que compõem essa figura” (p. 158). Miller toma o fato de “nos encontrarmos ante certo número de manipulações e de contornos suscetíveis de serem ordenados e dirigidos de múltiplas maneiras” como uma convocação a “construir este último ensino de Lacan” (p. 158).

Há uma impossibilidade de estrutura no indizível, nessa “parte [do gozo] fora do significante, no sentido em que o significante, a linguagem, é a castração” (MILLER, 2010-11, lição V).  Esse ponto nodal do ensino de Lacan, que se mantém até o final, orientou minha questão para esta Jornada, assim como a noção de que os três registros são “dizmensões [ditmensions], [...] diferentes maneiras de alojar o dito” (Id., lição IV).

Tal perspectiva leva a pensar na tripartição entre os registros como litorais, na maleabilidade e na deformação contínua que lhes são características, assim como, de outra parte, são propriedades das figuras topológicas.

Tomo o dito como o que desenha e redesenha os litorais do indizível, isso que não se encaixa nos semblantes, não se deixa capturar pela representação e não se enlaça à cadeia significante. Isso que não se alcança dizer porque não se mede por qualquer grandeza, não se estabelece, não se define, não se classifica, está fora de qualquer ordem e não faz sentido algum, e que... não cessa de não se dizer. Assim como o intraduzível causa o movimento incessante da [in]tradução, o fracasso do dizer é motriz de fala.

O livro de Marie-Hélène Brousse Mulheres e discursos explora os giros do dito causados pelo indizível do feminino. Dele tomei algo dos capítulos Corpos e Sangue como inspiração para este texto. Considero, com ela, “três tipos de efeitos de sentido, produzidos a partir das dimensões do imaginário, do simbólico e do real” (BROUSSE, 2019, p. 28), referentes aos corpos de mulheres.

Esses efeitos podem ser ditos como de fascínio, produzidos pela idealização. Efeitos alojados na dizmensão do imaginário, relacionados à imagem do feminino como bela forma oferecida ao olhar. Uma perspectiva estética. Segundo Miller, “[...] há um estatuto imaginário do gozo que é [...] exaltante, um estatuto do gozo que é estético e que permitiria mobilizar, aqui também, tudo o que é obra de arte” (2010-11, lição IV). Em Rosa, de Pixinguinha, encontramos um bom exemplo:  

Tu és divina e graciosa
Estátua majestosa
Por Deus esculturada...
(...)
Tu és a forma ideal
Estátua magistral.

A fascinação pela forma ideal de Rosa opera para obturar o furo da castração (-f). O corpo-estátua, objeto imaginário, aponta o gozo aí envolvido, relacionado à castração, ao Nome-do-Pai.

Na dizmensão simbólica, Brousse destaca os “efeitos de sentido sexual” produzidos pelo discurso que nomeia e recorta funções atribuídas aos corpos de mulheres. São funções relacionadas, sobretudo, à fecundidade e ao cuidado, à ordem familiar e à sua manutenção. Aqui, os corpos das mulheres têm lugar em um discurso que vincula o feminino tanto à reprodução quanto a uma ética do cuidado, que se estende do âmbito da família para as profissões ditas “femininas”. Em jogo a figura da mãe, a maternagem suposta no exercício de funções atribuídas às mulheres na estrutura familiar e social. Tem seu lugar aqui o mito do amor materno. Em tempos de declínio do simbólico, quando esse mito já não convence tanto assim, ao mesmo tempo que o Nome-do-Pai vacila, emergem rituais como Plantar a lua, autointitulado movimento, que consiste em coletar o sangue menstrual, diluí-lo em água e utilizar essa mistura como fertilizante. Um ritual de fecundidade e cuidado, portanto.

Um rápido tour virtual conduz a sites, blogs e posts onde se repetem as ideias de tradições ancestrais, celebração do sangue menstrual como símbolo de fertilidade, poder fertilizante desse fluido, cuidar (das plantas e da mãe-Terra), “empoderamento feminino”. Portanto, seguimos pela lógica própria da ordem simbólica, do binarismo, das funções tradicionalmente atribuídas às mulheres. Ou seja, há algo do gozo aí implicado que não é estranho ao falo.

No primeiro movimento do seu ensino, que tem como eixo a ordem simbólica sustentada pelo Nome-do-Pai, Lacan situava o próprio do gozo da mulher tomando como referência o gozo masculino, edipiano, “aquele que deve ser recusado a fim de ser alcançado [...] que deve primeiro ser proibido para ser, depois, permitido” (MILLER, 2010-11, lição V). É difícil sair do binarismo, do feminino como avesso do masculino, da mulher como aquela que não tem, embora possa sê-lo, ou seja, do falo como referência. É difícil porque trata-se de sair do senso comum e toda a estrutura discursiva que o sustenta, nos mais diversos campos onde o falasser se manifesta.

Miller assinala que “há um nó muito apertado entre a linguagem, a Lei e o falo. A Lei do Nome-do-Pai, no fundo, não passa da Lei da linguagem” (Id., lição V).  Essa Lei rege o território dos semblantes, ali onde simbólico e imaginário se encontram na tessitura do envoltório que circunscreve algo do real. Esse é o território dos ideais de feminilidade, das marcas da cultura que recortam os corpos, das imagens que constituem sua representação e da busca pela definição de universais que tragam respostas conclusivas sobre a mulher e o feminino.

Mais além dos semblantes, está o gozo dito feminino que a psicanálise reconhece por seus efeitos, pois, enquanto real-causa ex-siste como ausência, pois escapa às redes da representação, da dialetização, da articulação significante.

Lacan situou o gozo, inicialmente, do lado do imaginário. Só depois, passando por sua localização na estrutura da linguagem, ele chegou, “pelo viés do gozo feminino”, ao seu núcleo real e ao gozo “como tal”, que, segundo Miller, quer dizer alguma coisa inteiramente precisa: o gozo como tal é não-edipiano, é o gozo concebido como subtraído de, fora da maquinaria do Édipo. É o gozo reduzido ao acontecimento de corpo. (Id., lição V).

É como “acontecimento de corpo por excelência” que Brousse propõe “tomar o sangue que escorre do corpo feminino [...] Um sintoma, então, que resiste tanto ao simbólico quanto ao imaginário, e isso, ainda que de maneiras diferentes, para os ditos homens e as ditas mulheres.” (2019, p. 151).

A psicanálise tenta alcançar, por vias como essas, os litorais do indizível, o real como aquilo que exclui todo o sentido, mas que acontece no corpo que se tem, no corpo do falasser. Nesse movimento em que consente com o não-saber, ela vive e pode operar como causa para cada um[a] de nós que aí aposte suas fichas, aí onde fracasso e sucesso não estão submetidos ao princípio da não-contradição. Vislumbramos aí os litorais, os mares talvez nunca dantes navegados, as terras incógnitas. Nossa bússola aponta para o que nomeamos sem nunca alcançar dizê-lo – sem poder dizer o que é, sem ter uma ideia do que é, sem poder definir sua essência (MILLER, 2010-11, lição XIII). Pode-se apenas dizer que existe, que há: “É que se pode perfeitamente descrever alguma coisa que não existe. [...] O sentido está no nível da descrição e, em termos lógicos, dizemos da função. O real está no nível do existe.” (Id., lição V). Isso aponta para o inexorável não-todo do dizer, ali onde a busca é uma certeza, mas o encontro, se acontece, é contingente. Ali, lá, onde o navegar não é preciso.  

O título de meu texto é uma pergunta: Navegar é preciso? O título do poema de Fernando Pessoa é uma afirmação. Assim como ele, tomei essa frase dos antigos navegadores a meu modo. Assim foi possível respondê-la. Não é preciso navegar em busca de terras incógnitas, tanto no sentido de que não, isso não é necessário, como de que não há bussola, nem mapa, nem GPS que aponte o caminho, que é sempre singular. Lacan fez essa escolha, em seu último ensino, a de uma busca constante, para além do campo do saber.

O tempo, a maleabilidade e a deformação das estruturas, ou seja, o tempo e a topologia, colocam em questão o achado e o despertar, e podem ser a chave para a [in]tradução das palavras de Lacan em seu último ensino, tais como eu não acho, eu procuro, máxima invertida em relação àquela que enunciou, emprestada de Picasso, na altura do seminário 11: eu não procuro, eu acho. A procura não estanca, e o despertar, se existir, será sempre fugaz.


Referências 

BROUSSE, Marie-Hélène. Mulheres e discursos. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2019.

MILLER, Jacques-Alain. O ser e o Um: Orientação lacaniana III, 2010 – 2011. Tradução: Vera Avellar Ribeiro. Revisão: Carlos Augusto Nicéas. Versão final e subtítulos: Marcus André Vieira (até lição 4) [inédito].

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