RENDER-SE AO FEMININO

 

Leonardo Scofield imagem Sigalit LandauImagem: Sigalit Landau

Leonardo Scofield
AP, Membro da EBP/AMP
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Convocado pela questão sobre a autorização e sua relação com o feminino, naquilo que ele porta de indizível, deparei-me com todo o esforço do tecido civilizatório que desautoriza, que tenta, em vão, calar o que não cessa de se escrever, seja pelo imperativo classificatório estendendo ao infinito as combinatórias, seja pela tentativa segregacionista do uniforme. Este ideal não está presente apenas na religião e na parceria entre a ciência e o mercado que desgovernam nossa sociedade contemporânea. Este imperativo não isenta a psicanálise do risco de ser engolida pela época e não se esforçar para dizer o indizível, dando lugar ao feminino. Por isto, parabenizo e agradeço a oportunidade de nos dedicarmos a esta questão para a Jornada da Seção Sul, o Encontro Brasileiro do Campo Freudiano 2021 e o Congresso da AMP em 2022.

A história da psicanálise e sua inserção no mundo é prova de que algo do feminino persiste em se inscrever na civilização que se estrutura de forma antagônica ao feminino, sendo este o elemento que a linguagem não pode incluir. Temos aí uma constante que pode parecer paradoxal e de difícil transmissão, pois a linguagem, através da qual se supõe fazer laço, é estruturada por um binário que o feminino não admite. Porém, o fato de que a estrutura significante não possa incluir o feminino não o coloca do lado de fora, o que exigiu de Lacan conceber o litoral (LACAN, 2003, p. 21-22), onde o feminino possa cessar de não se escrever, entre o saber e o gozo, nem dentro, nem fora.

No Brasil, foi preciso admitir a incompletude da Obra de Freud para que fosse publicado seu texto “sobre a concepção das afasias” (FREUD, 2013, p. 172), que não consta na edição Standart chamada “Obras completas...”, por não se tratar de psicanálise e sim de uma discussão neurológica. Curioso que a obra que trata de um silêncio inexplicável que acomete sobretudo as mulheres tenha sido excluída do que se pretende completo. Enfim, a publicação desta obra pode ser lida como uma interpretação: “a-fazia falar”.

a-fazia falar

Esta é a expressão que me ocorre como um risco e uma orientação. O risco porta sobre o imperativo superegoico. Não o famoso herdeiro do Édipo em sua consciência moral, mas o chamado “supereu feminino”, que assola todo ser falante e vocifera o imperativo de satisfação absoluta da pulsão que não encontra outros meios, senão os sintomas. Esta versão do supereu, mais explícita nas mulheres e em suas derivadas relações de devastação no encontro com Outro sexo, apresenta em seus corpos a manifestação do silêncio pulsional que se constitui pelas brechas deixadas pelos equívocos da língua.

As afasias de outrora, emblema do desencontro entre corpo e linguagem, encontram suas atualizações contemporâneas subjugadas ao avesso do “cale-se!” pelo imperativo do “Fale!, Goze!, Seja!” Este é o risco. Não basta dar a palavra se este gesto crê e força a inserção do Outro gozo, do heterogêneo, encobrindo-o pelo tecido espesso da linguagem. Ou seja, a tentativa de fazer falar por este viés segrega tanto quanto, vela o feminino com “a melhor das intenções”.

O que fazem, então, os psicanalistas senão fazer falar seus analisantes? Advertidos do risco de encarnar aquele que sabe ou aquele através do qual se saberá sobre seu gozo, os analistas se esforçam neste aspecto para realizarem o que Lacan chamou de “a arte de produzir uma necessidade de discurso” (LACAN, 2012). Ele define, assim, a lógica que orienta a operação analítica a partir do discurso e apesar dele. Trata-se, primeiramente, de não supor no Outro um saber sobre o gozo, ou seja, operar a partir do S(A). Esta fórmula pode ser lida como fruto da extração do objeto a do campo do Outro, por isto o A, o limite da linguagem. Este mesmo objeto que é o produto do discurso, o resto daquilo que não se diz, por impossibilidade de ser dito e não por interdição, que assume também a função de causa do discurso. Melhor dizendo, o analista opera ao colher da fala do analisante os restos do indizível, as letras de seu gozo não transmitidas por seu discurso e, ao encarnar este objeto em seu ato, o analista opera como causa de desejo. Assim, leio a orientação contida em “a-fazia falar”, incluindo o indizível como resto e causa. Uma subversão do supereu feminino.

Eis um ponto de analogia que possa assemelhar o feminino e o psicanalista, sempre na contingência que os faz ek-sistir. Bassols refere-se como ponto em comum entre o feminino e a posição do analista “a dificuldade de localização do feminino que necessita recorrer a uma lógica e a uma topologia distintas da lógica binária do significante” (BASSOL, 2017, p. 3). Porém, “não se trata da feminização dos psicanalistas”, adverte Laurent. “Não se trata do lugar feminino do psicanalista, mas, sim, do psicanalista como aquele que sabe responder ao supereu feminino, como aquele que pode reenviar o supereu feminino à verdadeira lógica da posição feminina a saber: denunciar os semblantes que visam a toda consistência do Outro.” (LAURENT, 2012, p. 124-125).

Da rede à renda

Não é, entretanto, por intenção, que se opera deste lugar, não basta querer ser analista, nem mulher. Para tornar-se, é preciso percorrer um caminho que já tenha encontrado os limites do simbólico. Pois, ao contrário do feminino, o simbólico tem limites e é importante deparar-se com esta experiência na formação analítica. O analista pode ser o fruto da experiência com o que é impossível de simbolizar, com o caráter pulsional do sintoma naquilo que ele tem de mais real. Aqui temos novamente um ponto de analogia em que o indizível do feminino precisa se escrever de alguma forma que não seja pela rede simbólica.

Porém, parece-me importante distinguir os limites do simbólico e a falta de limites do feminino. A este, não atribuo o absoluto apenas por não se encontrar o limite fronteiriço palpável entre o dentro e o fora, o que é ou não é. Faço apelo aos teasers de nossa Jornada para demonstrar que na imensidão do oceano que pode parecer infinito, a água é viva, surge um corpo que nada, surge o nada que faz marca na areia do litoral, onde se pode ler as letras nos rastros que o Outro deixou. As redes simbólicas que negativizam parcialmente a pulsão são furadas por demais para apreender a volatilidade do feminino.

A este não haveria apreensão possível, o que não nos autoriza a consentir com o indizível sem nada fazer com ele. Resta assim, render-se a ele, ou a ela, ou a isto que contingencialmente aparece. Por vezes,  irrompe desnudo, sem véu, causando um horror do qual nos defendemos como possível. Recobrimos esse gozo do corpo pelo espesso véu da fantasia que nutre a morosidade do sintoma e o delírio. Por vezes, é possível render-se ao feminino, tecer uma renda trans-parente que cubra a parcialidade que lhe couber, vestindo-o de causa, fazendo dos fios do discurso apenas a borda através da qual se faz do nada, do vazio, um furo pelo qual algo do gozo feminino possa se escrever.

Referências

BASSOL, M. “O feminino, entre centro e ausência”. In: Opção Lacaniana online,  ano 8, Número 23, julho 2017. Disponível em:

<http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_23/O_feminino_entre_centro_e_ausencia.pdf>.

FREUD, Sigmund. Obras incompletas de Sigmund Freud. Sobre a concepção das afasias: um estudo crítico. Tradução de Emiliano de Brito Rossi. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2013. 172 p.

LACAN, Jacques. “Lituraterra”, In: Outros escritos. Trad. de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 21-22.     

LACAN, Jacques. O seminário; livro 19 – … ou pior (1971-1972). Rio de Janeiro: Zahar, 2012.      

LAURENT, E. A psicanálise e a escolha das mulheres. Belo Horizonte: Scriptum, 2012. p. 124-125.                                      

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