A MEMÓRIA INDIZÍVEL

 

luiz francisco a memória indizivel imagem Ariana Page RusselImagem: Ariana Page Russel

Luis Francisco Espíndola Camargo
AP, Membro da EBP/AMP e Professor do Departamento de Psicologia da UFES
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Nos fundamentos da psicanálise encontramos o problema sobre a memória. O primeiro passo de Freud para explicar os mecanismos das neuroses consistiu na descoberta das memórias patogênicas ausentes da consciência como a causa dos sintomas, consideradas um corpo estranho no aparelho psíquico. As ausências (absences) de memórias eram causadas por uma defesa fundamental, um estado de divisão de consciência, no qual existiam dois grupos separados de ideias, as conscientes e as inconscientes (cf. FREUD, 2016/1895, p. 237): “através do meu trabalho psíquico tinha de vencer uma força psíquica que se opunha, no paciente, a que as ideias patogênicas se tornassem conscientes” (FREUD, 2016/1895, p. 268). Para alcançar as memórias patogênicas, Freud desenvolveu o método de associação livre, bem como a interpretação como remoção de obstáculos surgidos ao longo da experiência da análise. Por isso, no início da experiência de Freud encontramos apenas um objetivo: anular sintomas decorrentes das memórias patogênicas do inconsciente. Assim como o sintoma, os sonhos eram construídos por essas memórias, tanto recentes como remotas:

Os pacientes que obriguei a me comunicarem as ideias e pensamentos que lhes ocorriam a propósito de um determinado tema me narraram seus sonhos e assim me ensinaram que estes podem ser inseridos no encadeamento psíquico a ser seguido retrospectivamente na memória a partir de uma ideia patológica. (FREUD, 2012/1900, p. 16)

A noção da memória como patógeno é decorrente de uma redução conceitual da microbiologia e da infectologia. É importante lembrar que no final do século XIX a histeria era considerada uma epidemia, onde a patogenicidade desta infecção era expressa por sua capacidade de provocar alterações e danos no organismo. Do mesmo modo, a memória enquanto patogênica é relacionada a capacidade de provocar alterações e danos no aparelho de memória ou, em termos lacanianos, nas redes inconscientes ou grupos psíquicos das memórias associadas. A noção de trauma original pode ser correlata a uma memória patogênica de base. Seguindo a tradição de Janet, Freud confirmou, pelo estudo das histerias, que não se tratava apenas de uma memória patogênica, mas de um grupo de memórias ligadas a um trauma, podendo estarem unidas ou não em torno de complexos patogênicos: “trata-se de complexos de ideias, de conexões, de lembranças de acontecimentos externos e sequências de pensamentos próprios.” (FREUD, 2016/1895, p. 251). Tais complexos foram denominados de complexos mnêmicos psíquicos” (Ibid., p. 143). Essa é teoria de base para o complexo de Édipo e de castração. Em parte, podemos afirmar que essa teoria psicanalítica do final do século XIX motivou o surgimento das neurociências um século depois, se nos basearmos no testemunho de Eric Kandel em seu livro Em busca da memória, onde descreve o impacto e a influência da psicanálise nas suas pesquisas, cujos resultados o levaram a ganhar o prêmio Nobel de Medicina em 2000 por seus estudos sobre a memória.

Dois grandes complexos de memórias estão relacionados ao núcleo das neuroses, o complexo de Édipo e o de castração. Tratava-se, para Freud, de o núcleo da patogenia e, nesse sentido, jamais a teoria da experiência da psicanálise pode ser descrita como uma apologia ao Édipo e ao falocentrismo. Muito pelo contrário, trata-se de liberar esses complexos de memória causadores das neuroses. O complexo de castração está no centro do esquema e das sentenças lógicas da teoria lacaniana sobre a sexuação (cf. LACAN, 1985, p. 105).

No quadro abaixo, Lacan apresenta quatro fórmulas do cálculo de predicados de primeira ordem:

predicados de primeira ordem

Apresento uma proposta de interpretação das quatro fórmulas:

(1) ¬Φx: Existe um x que não responde a função da castração. Em termos de gozo, existe um elemento onde o gozo e seus aparelhos não são castrados, isto é, são completos. Não se trata somente do Pai da Horda primitiva, mas também de Deus e de A mulher.

(2) ∀xΦx: Todo x responde à função da castração. Em termos de gozo, para todo x o gozo é castrado, isto é, a satisfação não é plena, ela é parcial e limitada.

 As fórmulas (1) e (2) estão localizadas no lado denominado masculino e as duas sentenças são contraditórias, já que fazer parte de um mesmo sistema apresenta afirmações de sentido oposto.

(3) ¬∃x¬Φx Não existe um x que não responda à função da castração. Essa sentença lógica é equivalente à sentença (2). A dupla negação corresponde a uma afirmação: todo x responde à função da castração. Essas duas sentenças descrevem que os elementos desses conjuntos estão no domínio da castração, apesar de existir, no lado esquerdo do quadro, um elemento incluso no domínio que não escreve a função, o elemento da exceção, expresso pela sentença ¬Φx. Esse é um paradoxo da posição masculina.

(4) ¬xΦx  Não-todo x responde à função da castração. Trata-se de uma subversão semântica da lógica Aristotélica do livro A interpretação, que fere o princípio do terceiro excluído, em que um elemento não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Lacan cria um terceiro termo, um elemento que é e não é ao substituir na interpretação o nem todo x por não todo x. Essa subversão de leitura sobre a negação do quantificador universal visa justamente demonstrar a inconsistência ontológica que habita o inconsciente. Tal elemento “é” e “não é”. Trata-se de um gozo que responde e não responde à função da castração, um gozo bipartido (cf. MILLER, 2019).

As sentenças (3) e (4) descrevem o que Lacan nomeou de posição feminina. Por meio da escrita do cálculo de predicados de primeira ordem, Lacan demonstra, assim, as contradições existentes de forma clara em torno do debate sobre a feminilidade e, apesar da inconsistência lógica, não se trata de sentenças triviais. A mudança semântica do operador universal tem um objetivo preciso: escrever o indizível. Trata-se de um método para formalizar o caráter do regime de gozo na posição feminina: “a formalização da lógica matemática, tão bem-feita para só se basear na escrita, não poderá ela nos servir no processo analítico, no que ali se designa isso que invisivelmente retém os corpos?” (LACAN, 1985, p. 125). Lacan responde a sua própria pergunta: “eu não creio ter chegado em vão à escrita do a, do $, do significante, do A e do ϕ. Sua escrita mesma constitui um suporte que vai além da fala, sem sair dos efeitos mesmos da linguagem (LACAN, 1985, p. 126). Essa formalização lógica é um esforço de axiomatização do paradoxo da feminilidade e coloca um novo problema para os estudos sobre a memória nas neurociências.

Apesar de Kandel (2002) reconhecer que a experiência da psicanálise modifica as sinapses entre os neurônios, a formalização lógica de uma experiência de gozo não inscritível, impermeável ao traço mnêmico, implica na necessidade de formalização de uma topologia do furo sobre as redes de memórias. Nesse sentido, a tese de Freud em A psicoterapia da histeria desmorona, bem como a busca da memória patogênica de Kandel. Há memórias de acontecimentos que não existem, pois há experiências de gozo irredutíveis ao significante (aos traços mnêmicos). Isso inaugura uma clínica onde não há mais o retorno do recalcado, mas do acontecimento de corpo não inscritível.

Freud tentou explicar as memórias para os acontecimentos de corpo não simbolizados, quando tentou descrevê-las como herança arcaica, memórias ancestrais filogenéticas oriundas da repetição do assassinato do pai primitivo, recapituladas na ontogênese. Podemos afirmar que o uso da teoria da recapitulação foi uma tentativa de Freud em explicar o indizível, fundamentando-o em bases biológicas. Lacan substitui a biologia freudiana pela teoria dos conjuntos e pela lógica proposicional, escrevendo essa impossibilidade de representar a memória por meio de uma subversão interpretativa do operador universal. No entanto, essa formalização, que antecipa pressupostos da lógica indutiva e paraconsistente (cf. DA COSTA, 1993), não resolve o problema dos restos nos finais de análise. Ao formalizar logicamente o gozo inassimilável pelo significante, o traço mnêmico, Lacan demonstra que o impacto da linguagem sobre o corpo não modifica somente este último, mas também o próprio aparelho de linguagem. Podemos observar isso nos testemunhos de finais de análise, quando na tentativa de dizer o indizível de um acontecimento de corpo, o falasser tem um novo trabalho, o de modificar a sua relação com a linguagem e com o dizer.

Muitos se perguntam sobre o feminino nos testemunhos dos finais de análise. Ele está lá para lermos, no bem dizer, no significante novo, um significante de um gozo indizível.


Referências:

ARISTÓTELES. Da interpretação. In: ARISTÓTELES. Órganon: Categorias, Da interpretação, Analíticos anteriores, Analíticos posteriores, Tópicos, Refutações sofísticas. São Paulo: Edipro, 2010.

DA COSTA, Newton. Sistemas formais inconsistentes. Curitiba: Ed. da UFPR, 1993.

FREUD, Sigmund. A psicoterapia da histeria. In: FREUD, Sigmund. Estudos sobre a histeria (1893-1895), em coautoria com Joseph Breuer. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

FREUD, Sigmund. O método da interpretação dos sonhos. Porto Alegre: LP&M, 2013 (Tradução Renato Zwick).

KANDEL, Eric. Em busca da memória: o nascimento de uma nova ciência da mente. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

KANDEL, Eric. La biologie et le futur de la psychanalyse: un nouveau cadre conceptuel de travail pour une psychiatrie revisitée. Évolution Psychiatre, 67. New York: Elsevier, 2002, p. 40-82.

LACAN, Jacques. O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

MILLER, Jacques-Alain. La jouissance féminine n'est-elle pas la jouissance comme telle? Quinta lição do curso "L'orientation lacanienne: L'Un tout seul": lição de 2 mar. 2011. Quarto, nº 122, set. 2019, p. 10-15.


Resumo: Este breve ensaio tem por objetivo relacionar a teoria freudiana da memória com a teoria da inscrição significante e do gozo em Lacan. Lacan nos demonstra por meio da lógica do não-todo que existem acontecimentos de corpo impossíveis de inscrever no aparelho psíquico, colocando um problema para a busca da memória nas neurociências. Se existem acontecimentos não inscritíveis, a rede de memória é composta por lacunas de representação. Logo, o trabalho na experiência da psicanálise não consiste somente no processo de rememoração, mas também na construção e na invenção da memória.

Palavras-chave: Memória; Lógica; Feminilidade; Neurociências e Psicanálise.

Abstract: This brief paper aims to link the Freudian theory of memory to the theory of signified inscription and of jouissance in Lacan. Lacan demonstrates to us through the logic of the non-whole that there are body events impossible to inscribe in the psychic system, presenting a new problem for the memory's search in the neurosciences. If there exists non inscribed events, the memory network is composed of representation gaps. Therefore, the work in the experience of psychoanalysis does not consist only in the process of reminiscence, but also in the construction and in the invention of memory.

Keywords: Memory; Logic; Femininity; Neurosciences and Psychoanalysis.

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