A ESCOLA, O INSTITUTO E A NOVA GEOGRAFIA

1ª Jornada da EBP - Seção Sul

Valéria Rivoire ÁGUA VIVA Sérgio CastroImagem: Valéria Rivoire - Água Viva

Sérgio de Castro
Membro da EBP/AMP


Inicialmente, gostaria de agradecer ao convite que me foi feito por Cinthia Busato, diretora da Seção Sul da Escola Brasileira de Psicanálise, para estar hoje aqui com vocês, na 1ª Jornada da Seção Sul da EBP. É verdadeiramente uma honra.

Minha intervenção, intitulada Escola, Instituto e a Nova Geografia, se iniciará com antecedentes do que virá a ser o Instituto do Campo Freudiano, assim como da própria Escola de Lacan.  Partiremos de um texto fundador, que nos servirá de referência hoje, que é o Ato de Fundação, de 1964, em sua primeira versão, acrescido, quase sete anos depois, de uma Nota Anexa, que trará elementos também importantes para nós. Se no texto de 1964 Lacan a nomeará Escola Francesa de Psicanálise, logo a seguir ela será a Escola Freudiana de Paris, como se refere a ela Lacan na Nota Anexa.

Ali, em 1964, Lacan apresentará três Seções que deverão compor a Escola então fundada. A Seção de Psicanálise Pura, que será a da psicanálise didática e supervisão, localizando nessa Seção o que hoje chamamos de psicanálise em intensão.

Na segunda Seção da Escola encontramos o que o próprio Lacan chamará de terapêutica. Estamos aqui, claramente, nos domínios da psicanálise em extensão, ou aplicada, como dirá ali Lacan. A terapêutica referida será ali uma terapêutica médica. Nós a ampliamos. Convém observar, também, que não será solicitado aos participantes de tal Seção que estejam em ou tenham feito análise. Esse dado é importante para nós e devemos deixá-lo sublinhado.

A terceira Seção, dita Seção de recenseamento do Campo Freudiano, “fará a atualização dos princípios dos quais a práxis analítica deve receber, na ciência, seu estatuto”. Para prosseguir então dizendo: “por mais singular que afinal seja, [uma experiência de análise] nunca seria o de uma experiência inefável”. (p. 238, Ato de Fundação, Outros Escritos).

Podemos situar nessa terceira Seção a indicação de Lacan de que algo de um saber exposto deverá se fazer presente ali. O recurso ao científico (articulado, então, por Lacan ao estruturalismo - e, portanto, ao matema - e não às ciências exatas ou biológicas), tanto quanto a recusa ao inefável na experiência convocará, parece-nos uma demonstração de algo que, bem adiante em seu ensino indicaremos, como próprio ao real.  Talvez possamos depreender daqui um fundamento do que virá a ser apresentado, alguns anos após, na Proposição de 9 de outubro de 1967, como o procedimento de demonstração de um final de análise no passe. Mas, também, articulado ao rigor matêmico/conceitual que estaria a cargo da segunda Seção da Escola, e muitos anos adiante, a um Departamento de Psicanálise já propriamente universitário ou suas formações paralelas que serão os Institutos do Campo Freudiano.

Mas se no Ato de Fundação, nas devidas Seções que comporiam a Escola Freudiana de Paris, como tento indicar aqui, o esboço de duas lógicas distintas já se insinuava (aquela própria de uma transmissão científica e aquela que tentaria cernir e dizer um inefável, que portanto não seria acolhido como tal), a aposta de Lacan naquele momento era de que a Escola poderia abriga-las lado a lado.

Sabemos também que o Ato de Fundação será o desdobramento e o ápice do movimento de crítica à Associação Internacional de Psicanálise iniciado muitos anos antes, quando Lacan, ainda na década de 1940, discordando dos procedimentos de formação dado aos analistas na Sociedade Psicanalítica de Paris cria, em 1953, juntamente com um grupo de analistas egressos dali, a Sociedade Francesa de Psicanálise. Nos dez anos seguintes esperará o reconhecimento e a admissão daquele novo grupo na IPA. Como sabemos, a condição que acabou por se impor para que tal reconhecimento acontecesse seria o silenciamento de Lacan e a proibição de que exercesse ali funções de ensino e de análise didática.  O passo seguinte será, então, já não mais se endereçando à IPA, seu Ato de Fundação. Para nós, de certa forma, é aí que a nossa história começa.

Se na IPA o ensino e a transmissão estavam divididos entre os Institutos de Formação (que ensinavam o que é a psicanálise) e a Sociedade (onde se colocava a questão da análise didática) e que pretendia ensinar, pela via da identificação ao analista didata, o que é o psicanalista, Lacan, naquele momento, abole tal distinção. Sua Escola, como indiquei na rápida apresentação das Seções que a comporiam, não só não dizia o que é um analista – pergunta que será gradativamente radicalizada e complexificada, resultando, na Proposição de 9 de outubro de 1967 na apresentação do dispositivo do passe, - como manterá nas Seções dois e três de tal Ato, uma perspectiva aberta e investigativa sobre o ensino da psicanálise.

Já na Nota Anexa, de 1971, em seu Preâmbulo, dirá Lacan que, (cito) “o ensino, a Escola não depende dele, nem tampouco o dispensa, já que ele[ensino] se desenrola fora dela” (LACAN, 2003, p. 242). Talvez tenhamos aqui mais um germe do que virá, anos depois, com Jacques-Alain Miller, a ser situado no Instituto. Tanto quanto no item 7 de tal Nota Anexa, dirá Lacan: “O ensino da psicanálise só pode transmitir-se de um sujeito para outro pelas vias de uma transferência de trabalho. Os “seminários”, prossegue Lacan, inclusive nosso curso da École d’Études Supérieures, (uma instituição universitária onde Lacan proferia seu Seminário) não fundarão nada, se não remeterem a essa transferência”. Aqui Lacan parece já apontar para um destino da transferência ao final de uma análise, mas presente, no entanto, desde que se instala o Sujeito-Suposto-Saber. Ou seja, produz-se aqui mais um tensionamento entre um ensino de feição universitária e a experiência propriamente analítica, no plano do um a um. 

Duas lógicas parecem, portanto, já se anunciarem: uma lógica do todo, sustentável num discurso universalizante e uma do não-todo, articulável sempre, e de maneira aberta, no caso a caso das experiências transferenciais de cada um em sua análise.

Parece-me, portanto, podermos depreender, nessas distinções que apenas se insinuam no Ato de Fundação um tensionamento que se fará presente ao longo de todo o ensino de Lacan. Nos termos que nos interessam hoje, podemos tentar situá-lo a tal tensionamento, entre o Instituto e a Escola. O que permitiria, inclusive, nos perguntarmos se, e é algo que proponho aqui, a primeira Seção daquele Ato não manterá seus termos como os fundamentos de uma lógica de Escola, como a entendemos hoje, e se a segunda e a terceira Seções não sustentarão o que virá a ser anos depois o Instituto do Campo Freudiano.

Convém também lembrar que no segundo semestre de 1968 Lacan funda o Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII, onde o ensino e a transmissão parecem tocar um outro patamar com relação à Escola. Naquele momento, pós-maio de 1968, como sabemos, a psicanálise caminha rapidamente para deixar de ser uma prática restrita e mais ou menos elitista (ainda que, institucionalmente, com Lacan, sempre aberta) para se massificar, como dirá o próprio Lacan no Seminário 17. A criação de um departamento universitário de psicanálise parece responder também a tal movimento e tendência.

Em 1975 tal departamento é renovado, criando-se a seguir um Doutorado e a Seção Clínica. Miller afirmará que se restabelece, então, um binarismo institucional que se mantém até hoje. Porque, se as ruas ferviam, a Escola, dirá Miller, murchava (MILLER, 2005). Tal binarismo institucional, recusado no Ato de Fundação por Lacan, ainda que em termos distintos do que ele era na IPA, será retomado, porém mantendo em aberto a pergunta sobre o que é um analista e o que é a psicanálise. Para exemplificar e trazer a questão para mais perto, cronológica e geograficamente de nós, tomemos um comentário de Jacques-Alain Miller no mesmo curso e lição citados, a propósito da fundação da Escuela de Orientación Lacaniana na Argentina, em janeiro de 1992, e do Instituto que surge a seguir, quando então Miller elucida algo do que se passava na Escola Freudiana de Paris e a fazia murchar.

Dirá Miller ali que há um semblante que, por si só, traz perigos para a psicanálise. Trata-se do semblante do saber que, enquanto sustentáculo do Sujeito Suposto Saber encontrará, no cerne da Escola, um lugar privilegiado. Por certo temos aqui uma formulação paradoxal, uma vez que, enquanto sustentáculo e articulador da própria transferência, ele estará sempre articulado à prática analítica. O próprio inconsciente transferencial, dirá Miller ali, poderá ser pensado como um semblante de saber. O risco consistirá nisso: com a psicanálise, diferentemente das ciências que se inauguram com a descoberta galileana de que a natureza está escrita em caracteres matemáticos, seu saber exigirá uma invenção. Diferentemente das ciências da natureza, onde se tratará de descobrir o saber inscrito no real, em nosso campo, o freudiano, tratar-se-á de, a cada caso, e para cada analisante de, fundamentalmente, inventar saberes. Tais saberes, produzidos a partir do semblante, ou seja, dessa articulação do simbólico e do imaginário, em princípio não tocarão o real.

A antinomia que gradativamente se articula ao longo do ensino de Lacan será exatamente essa: de um lado o semblante, e de outro, refratário a ele, o real. Ou se quisermos retomar o termo usado por Lacan no Ato de Fundação, o inefável. Com a condição, justamente, de não nos resignarmos a isso: tratar-se sempre, para nós, a partir de um certo ponto, de dizer o indizível. Ora, tais saberes, pontuais, justamente no árduo exercício de dizê-los, caberá à Escola acolher. E dizê-los, dizer o indizível que consistirá nisso: inscrever, a partir de uma invenção de cada um, algo no real. Portanto, diferentemente da ciência, onde se descobre no real um saber inscrito ali, para nós se tratará de, inventando-o, inscrevê-lo no real. Essa a direção de um tratamento, isso o que se visa demonstrar num testemunho de passe. Aqui, essas duas lógicas esboçadas muito precocemente por Lacan se aproximarão: tratar-se-á de promover a passagem de um saber matêmico/ universal sustentado pelo Instituto a um estrito singular que só terá validade ali, naquele caso.

Da Escola ao Instituto e retorno, talvez possamos dizê-lo assim. E, a esse saber de retorno à Escola, só teremos acesso a ele a partir de sua suposição, o que terá dado início a uma análise, implicando assim a transferência.

Saberes pontuais, fragmentários, mas que caberá à Escola, num dado momento, especialmente em seu dispositivo do passe, demonstrar que algo deles, desses saberes produzidos no campo do semblante ao longo de uma análise, cessará contingencialmente de não se escrever. Um real que, por sua vez, não sendo o da ciência, será aquele da satisfação pulsional que, como saber inventado, deverá passar por algum tipo de desinflação, que finalmente chamaremos de sinthoma.

O papel de aguilhão da Escola a ser sustentado pelo Instituto é solicitado e se esclarece aqui: a posição, imprescindível ao discurso analítico de suposição de saber, precisa ser cotejada ou interpelada pelo saber exposto. O saber suposto, que se sustentará nos semblantes do inconsciente, abrigará em seu cerne um furo. Esquecer-se disso será passar à posição da enfatuação, onde justamente seu caráter de suposição se desfaria, o que levaria a Escola a murchar. É aqui que o discurso analítico corre o risco de se autodestruir. A fragilidade desse saber suposto, portanto, abre-se a uma ampla gama de consequências, algumas delas nefastas à psicanálise. Sabemos também que uma articulação significante mínima, enquanto produtora de sentido, pode-se abrir à estrutura do delírio. O risco da enfatuação ou do delírio se colocariam então como desdobramentos possíveis da suposição de um saber.

Em seu texto “Situação da psicanálise e formação do psicanalista”, em 1956, Lacan não deixará de situar a posição do psicanalista didata da IPA como próxima da do enfatuado, com o agravante de que ali se sabia o que é um analista. Talvez aqui, exemplarmente, enfatuação e delírio!

Então, e retomando, em 3 de janeiro de 1992 funda-se a EOL que, segundo Miller, “será completada, a fundação, com um Instituto onde se combaterão os efeitos nefastos do saber suposto” (MILLER, 2005). É neste momento que Miller anuncia, no Teatro Nacional Cervantes, em Buenos Aires que: “no prazo mais breve me dedicarei a promover a Associação Mundial de Psicanálise, que competirá com a Associação Internacional de Psicanálise em todas as partes do mundo” (MILLER, 2005).

Será então quando, em seu curso de 1992, Miller falará que o binarismo Instituto/Escola é “algo fundado na estrutura e dirá: “concluí que ali onde nossos colegas não se beneficiam com um departamento [universitário] de psicanálise fazia falta criar-lhes um. Por isso, com alguns colegas me dediquei a criar em outra parte o que nos divertimos nomeando Instituto - o Instituto do Campo Freudiano - que ocupou a função desse departamento em diversos países da Europa e agora na América do Sul.” (MILLER, 2005)

Constatamos aqui que a afirmação do caráter estrutural de uma lógica de Escola contraposta a uma de Instituto estará presente e será referida a e na criação da Associação Mundial de Psicanálise. Talvez tenhamos chegado, nesse momento, ao tensionamento máximo – e salutar, como creio ter podido indicar - entre lógicas distintas e, ambas, presentes e necessárias à formação do analista na orientação que é a nossa.

Pois bem, a nova geografia... se tomarmos o ano de 1968, quando Lacan cria o Departamento de Psicanálise da Universidade de Paris VIII, como um antecedente decisivo, como creio que o foi, historicamente, da futura criação do Instituto do Campo Freudiano, em 1987, por Jacques Alain Miller, constataremos que as questões geográfica e política já visavam o crescimento e a importância mundiais da psicanálise de Orientação Lacaniana.

No entanto, não devemos perder de vista que no momento inaugural em que o Ato de Fundação é proposto, tais lógicas coexistiam, sem se equivalerem, dentro da própria Escola Freudiana de Paris. Tanto quanto, com a criação da Associação Mundial de Psicanálise, agora em escala mundial, elas prosseguiram lado a lado, ainda que não mais sob o mesmo teto. Portanto, um elemento geográfico, nessa escala que passa a ser mundial, foi um dos termos considerados ali.

Aqui, hoje, nessa primeira Jornada da EBP-Seção Sul vivemos também um momento de fundação, senão de uma Escola, de uma importante Seção dela. Tratar-se-á, como se tem feito, de inserir nessa nova Seção o fecundo trabalho de uma Delegação que estatutariamente não se inseria na EBP de forma que a importância de seu trabalho tivesse a acolhida merecida e de uma Seção já em funcionamento e que se dissolve para compor a Seção Sul da Escola Brasileira de Psicanálise.

A partir desse momento inaugural, colocam-se de imediato questões relativas aos Institutos. São indicadores, como vimos, de que as coisas por aqui caminham bem.

Cito Jacques Alain Miller em seu texto “Teoria de Turim", para encerrar: “Uma Escola em formação – e, porque não, numa outra escala, uma Seção em formação- é uma unidade dinâmica; todas as ações contribuem para o progresso do processo coletivo que conduz à sua criação; o próprio Congresso – mas porque não, nessa outra escala, uma própria Jornada- é um momento desse processo”.

E prossegue ali Miller: “A fundação efetiva de uma Escola lacaniana [...] não é um assunto burocrático destinado a se regulamentar por um pequeno número de pessoas reunidas em separado, um conciliábulo de chefes. Entra em um processo de formação cujo conceito mesmo comporta que se desenvolva a “céu aberto”, porque deve ser subjetivado por uma comunidade que não pode se constituir a não ser no próprio movimento dessa subjetivação.” (MILLER, p. 1).

Sabemos que uma questão geográfica esteve presente também na proposta elaborada pelo Conselho da EBP para a nova geografia: tratava-se ali de demarcar um campo próprio à Escola que, além de uma localização física, trouxesse com ele uma lógica que não tinha por que estar presente numa Delegação. E uma questão temporal, uma vez que houve no momento de constituição das delegações a suposição, questionável hoje, de que haveria algo como um progresso - esse termo tão distinto de uma lógica propriamente lacaniana - que conduziria aquela Delegação, como que naturalmente, a constituir-se como uma Seção.

A criação da Seção Sul da EBP apresenta, em ato, um passo além dos impasses que se constituíram então. E convoca, imediatamente, a um debate com o Instituto e sua lógica. Debate que deve prosseguir aberto e franco - tendo no horizonte, quem sabe, visto que o momento atual é bem distinto daquele de 1968, quando tal polaridade é estabelecida com um de seus termos situado num Departamento Universitário - uma retomada que faça ressoar algo do Ato de Fundação, quando o tensionamento entre essas duas lógicas de formação se davam no interior da própria Escola Freudiana de Paris.

Os espaços e as geografias hoje, radicalmente não euclidianos, como o demonstra essa própria atividade on-line, convidam-nos a aproximar mais - sem tentar sobrepor suas lógicas distintas - tal interlocução Escola/ Instituto, mantendo no horizonte, quem sabe, a possibilidade de retomar a questão, como parece ter sugerido nosso colega Rômulo Ferreira da Silva recentemente, abrigando tais lógicas distintas e suplementares num dado momento e novamente, sob o teto da Escola.


Referências:

LACAN, Jacques. Ato de Fundação. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 242.

MILLER, Jacques-Alain. De la naturaleza de los semblantes. Buenos Aires: Paidós, 2005. Lição de 8/1/1992.

___. “Teoria de Turim: sobre o sujeito da Escola”, in: Opção lacaniana online nova série, ano 7, n. 21, novembro de 2016. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_21/teoria_de_turim.pdf>. Acesso em: 23 mar. 2022.

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