O QUE ECOA?

 

conchasImagem da obra: "Ouvir nas Conchas as origens do mundo" de Juliana Crispe. Foto: Valéria Beatriz Araújo.

 Cínthia Busato
AP, membro da EBP/AMP
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Existe uma  maneira de falar do que existe? O que poderia nos orientar nesta direção? Essa pergunta me ocorreu no percurso de construção da nossa jornada, cujo argumento inicia com a afirmação de que falamos o tempo inteiro sobre o que não existe, fato inconteste, nós seres falantes vivemos  criando realidades ficcionais. Somos seres de fala afetados por um gozo que a atravessa, nos atravessa. O real do gozo que se imiscui na trama do discurso talvez possa ser pensado como um orientador da pergunta inicial. Já por aí  iniciamos sabendo do impossível de falar do que existe, isso aparece mais como uma experiência de corpo não toda apreendida na fala, e é a base de sua possibilidade.

No primeiro ensino de Lacan, onde o significante tinha um lugar privilegiado, o que ficava fora do sentido, foi denominado mancha, resto, a Coisa, objeto a no Seminário 10. Só no seminário 11, não por acaso depois do Seminário sobre a angústia, a pulsão passa a ser, para Lacan, um dos quatro conceitos fundamentais da psicanálise e a conceituação de gozo foi tomando a forma que tomou em seu último ensino. “As pulsões são no corpo o eco do fato que há um dizer” (LACAN, 1975-1976/2007, p. 18), esse mito original se inscreve no corpo, se fixa, não faz ficção, se opõe a todo pensamento, existe.  

Esse ponto selvagem à domesticação do sentido também esteve sempre presente nas pesquisas  de Freud , foi o que ele pode ouvir das primeiras histéricas e, por não tomar como mentira suas invenções, pode perceber que essas têm por função velar um opaco dentro da narrativa histórica de cada um. Assim a  fantasia ocupa o lugar do fato e o efeito a posteriori remodela as lembranças, conferindo-lhes uma significação que não possuíam. As lembranças não emergem prontas, elas são formadas, construídas a partir de traços mnêmicos. Com isso todas as lembranças contêm algo de autêntico, mesmo não correspondendo a impressão original. A realidade que vivemos é um recorte do real orientado por essa marca que fica de fora, ex-tima.

Gilson Ianinni (2021) fez uma colocação que gostei muito, para ele o último ensino de Lacan, pós Seminário 19-20, faz realmente um retorno à Freud. Os conceitos de inconsciente real e lalíngua capturam algo que estava desde o início da obra freudiana. Um percurso pelas obras iniciais de Freud parece nos confirmar isso.

Em  “Sobre a concepção das afasias”, Freud, em 1891, apresenta um modelo teórico para o aparelho da linguagem em que há duas modalidades de formação de imagens: representação objeto (Objektvorstelung) e representação palavra (Wortvorstelung).

Para ele, a percepção não nos apresenta objetos que em seguida serão nomeados pelas palavras. A percepção nos oferece imagens elementares: visuais, táteis, acústicas que vão formar o que ele chamou de associações de objeto. Essas associações de objeto não formam ainda um objeto, isto é, algo com uma unidade e um significado, elas constituem um disperso sensível a partir do qual o objeto será constituído. E isso só ocorre pela articulação desse conjunto de imagens sensoriais com a palavra. É a palavra que confere às imagens sensoriais dispersas uma unidade e um significado, é ela que transforma as associações de objeto em representação-objeto (Objektvorstellung). As representações  palavra (Wortvorstellung) são concebidas como efeito de associação de duas imagens específicas de representação objeto: a imagem visual e a acústica, ela é arbitrária e expressa o próprio código linguístico.

Por ocorrer um desmembramento inicial das imagens constituintes da representação palavra, sua apreensão é desvinculada do código linguístico, e essa afecção deixa na topografia corporal impressões sensoriais ou marcas de quantidade duradouras e invariáveis que se vinculam aquelas imagens. São estas marcas as precursoras da representação objeto e só parte delas é  aderida nessa, via representação palavra.

É possível dizer que Freud parte do pressuposto de que quando uma percepção afeta o corpo do sujeito, esta é apreendida por ele através de sensações, impressões, que fundam um processo de  inscrição rudimentar, ainda não ligada ao signo  linguístico, mas aberta a ele. Esses elementos  irrepresentáveis, as impressões dos signos de percepção, na carta 52, aparecem como a matéria prima  do aparato psíquico.

Também no texto sobre as lembranças encobridoras Freud escreve que  “o passo intermediário entre uma lembrança encobridora e aquilo que ela esconde é provavelmente uma expressão verbal” (FREUD, 1899/1969, p. 350) e pontua que essa  se constrói a partir de traços mnêmicos cujo registro é permanente, indelével e acrescenta que esse seria o “material bruto utilizável” (Ibidem, p. 353) para a construção da imagem.

Duas dimensões do traço se apresentam , de um lado, ele é utilizável, entra em associações, articula-se à fantasia através do trabalho simbólico, além de se traduzir em imagens e cenas, abre-se para o significante e com a introdução do imaginário, abre-se à significação. De outro, o traço permanece inacessível enquanto elemento primitivo, “o material cru dos traços de memória, a partir do qual a lembrança foi forjada, permanece desconhecido para nós em sua forma original”. É importante salientar que esse desconhecido está marcado pelo significante, não é nem “carne”, nem deus.

Não será desse abismo que o eco no corpo ressoa? Podemos pensar as representações de objeto como elementos constituintes da modalidade de linguagem que Lacan nomeou lalingua?

Berenguer (2021) coloca uma questão que me pareceu fundamental: Troumatisme, neologismo de Lacan para vincular furo e trauma, nomeia o trauma no singular, que entendemos melhor a partir da centralidade do conceito de lalingua  que situa o mais essencial no trou que esta provoca no corpo. Isso nos afeta e nos deixa sem palavras , é o reverso do trauma historicizado, “revelar o furo do trauma permite reduzir o brilho de suas marcas”, então essas podem ser reconduzidas a sua condição de semblante, fazendo furo na consistência imaginária e revelando o trajeto da invenção sintomática do sujeito.


Referências

BERENGUER, Enric. El largo duelo de las marcas. Disponível em:  https://trauma.jornadaselp.com/textos-de-orientacion/to-el-largo-duelo-de-las-marcas/. Acesso em: 02 set. 2021.

FREUD, Sigmund. (1969). Lembranças encobridoras (1899). In: ___. Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Vol. III. Rio de Janeiro: Imago, 1969, pp. 329-354.

____. Sobre a concepção das afasias. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.

____. Carta  112 [52], de 6 de dezembro de 1896. In: ___. Neurose, psicose e perversão. Obras incompletas de Sigmund Freud. Vol. 5. Belo Horizonte: Autêntica, 2016, pp. 35-46.

IANINNI, Gilson. Amores infamiliares. Conferência apresentada em 21 de setembro de 2021 no Instituto Clínico de Psicanálise de Orientação Lacaniana de Santa Catarina.

LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23 – o sinthoma (1975-1976). Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

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