CLARICE, A SINTHOMA?

clariceClarice e Maury Gurgel Valente no vulcão Vesúvio. Imagem faz parte do livro "Clarice Fotobiografia".

Fernanda Turbat[i]
Participante das atividades da EBP e AMP

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A mudança de perspectiva do sintoma a sinthoma para Lacan indica uma separação desse termo com aquele utilizado pelo discurso da ciência. Com a nova grafia, “o sinthoma”, adotada por Jacques Lacan (2001, p. 569) é possível evocar os efeitos da língua sobre o corpo. “Deixemos o sintoma no que ele é: um evento corporal, ligado a que: a gente tem, a gente tem ares de a gente areja a partir do, a gente tem. Isso pode até ser cantado, e Joyce não se priva de fazê-lo”!

Neste Escrito sobre o escritor irlandês “Joyce, o sinthoma” torna-se um paradigma. J. Lacan se interessa pela matéria do sintoma e é como se neste momento de seu ensino perguntasse: do que é feito um sintoma? Traçamos uma ideia, um sintoma é feito de sua materialidade, pela canção que forma o ressoar do significante: l'on l'a, l'on l'a de l'air, l'on l'aire, de l'on là bas (LACAN, 2001, p. 569).

Essa sonoridade tem a ver com a beleza do som, de sua ressonância e não com o sentido. Lacan diz que Joyce faz do seu sintoma seu escabelo[ii]. Um sinthoma se mostra, se eleva à categoria do belo.

James Joyce faz bricolagens com a língua e um longo trabalho de escrita que segue a partir delas. Em Stephen Hero James Joyce (1993, p. 113) explica as epifanias: “Uma manifestação súbita, quer na vulgaridade do discurso ou do gesto, ou em uma fase memorável da própria mente”. Joyce registra estas epifanias com cuidado extremo e faz ao longo dos anos um trabalho de construção com o que poderiam ser seus restos.

  1. J. Joyce corta o significante, usa-o solto ou conectado de formas diversas e um texto surge. É o caso da famosa frase de Finnegans Wake: Three quarks for the Muster Mark. Para a anedota, a palavra quark (sem sentido) composta nesta frase foi pega emprestada em 1964 por Murray Gell-Mann, físico quântico, para designar a menor partícula da física que só se transforma em matéria quando do número de três.
  2. J. Lacan se utiliza dessa mesma fórmula ao dizer que o sinthoma é uma produção feita por elementos heterogêneos e mantém-se unidos entre si. Esse nó é a própria matéria do sinthoma.

O sinthoma de Joyce compreende dois pontos, a meu ver. É patente a sua produção literária e o uso que nossa civilização faz dela e a maneira nova e musical de utilizar a língua. É original a forma em que Joyce passa o oral para o escrito. Os efeitos de linguagem no corpo sempre singulares servem neste caso para reconstruir uma língua que porta o gozo pulsional e ao passar para o escrito passa/porta também ao universal.

A invenção joyciana situa-se entre singular e laço social. Lacan se interessa pela articulação entre acontecimento de corpo que emerge do uso da língua, transmissão do que no corpo ressoa, ou seja, o pulsional (joy = alegria em inglês) e o nome que Joyce se faz.

Clarice

  1. E. Laurent (2012) em conferência sobre o Seminário XXIII “O sinthoma” de Jacques Lacan comenta a histeria rígida a partir de Dora de Cixous. O acento aqui é para uma histeria sem par, sem um intérprete e sem o amor dirigido ao pai. O lugar do analista na trama, no caso S. Freud é de alguém que se encontra aturdido pela fala de Dora.

Alguns anos antes, J. Lacan (1975, p. 41) evoca o que S. Freud aprendeu da histeria: “esta substância que inteiramente se sustenta nisso que há significante”. Hélène Cixous retrata Dora embaraçada com os efeitos da língua sob o corpo. E. Laurent exemplifica este tipo de histeria como menos tocada pelo sentido, menos dirigida ao pai, mas que representa a potência da palavra no corpo e seu desdobramento. Temos como exemplo, continua E. Laurent, “Clarice, a sinthoma”.

Clarice faria assim uso da língua, incluindo o corpo na fala como é o caso de James Joyce para J. Lacan?

Clarice Lispector denomina-se como uma “mulher de letras”. Em entrevista à Rede Cultura a escritora diz ser considerada pelo público como hermética e íntima, não considerando-se ela mesma como referência literária para outros. Como entender esse dizer, sendo Clarice uma das mais lidas de seu tempo?

Clarice inicia a escrever aos 9 anos quando envia algumas linhas para a seção infantil de um jornal. Conta que na época não queriam publicá-la porque enquanto os outros começavam por: era uma vez, e os delas eram sensações, contos sem fadas, sem piratas.  É inegável o seu estilo: salta a gramática, a pontuação e a sintaxe, fazendo uso particular da língua. Poderíamos dizer, fazendo (a) sua (a) língua portuguesa? Miquel Bassols (2016) esclarece sobre lalíngua como “o que na sua singularidade ressoa e que torna singular o sentido. Um corpo falante fala do que fala nele”.

Em Água Viva (1981, p. 21), p. ex., “É-se. Sou-me. Tu te és” permite evocar de maneira impessoal, mesmo estando mergulhada na enunciação. Em Hora da estrela, Clarice  (1995, p. 27) dá vida à Rodrigo S.M., personagem/escritor que pode ser Clarice mesma. “Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz o conteúdo.

Quando a forma faz conteúdo não é certamente pela via do sentido. Lacan considera a forma da língua como o motor mesmo da palavra, moterialidade. Em outros termos, sua imagem é diferente da especular, é uma imagem sonora que não comunica, mas transmite.

Sintoma de outro corpo

  1. J. Lacan faz diferentes alusões à Aristóteles e proponho reter uma: o indivíduo é um ser político. A troca entre os seres é essencial e para o filósofo e a felicidade está ligada ao fato de viver com outros homens.

A concepção de homem político há aqui duas significações: a primeira é a necessidade da coletividade, de compartilhar com a polis. No entanto outras espécies dependem igualmente desta organização para viver. A segunda é a importância da linguagem. O ser humano é o único que teria capacidades discursivas e de dar sentido às coisas da vida, o que estabelece uma comunidade.

No entanto, no seminário 20 J. Lacan (1975, p. 41) dá um passo e sublinha que Aristóteles não parou de enunciar a ideia de criação a partir do significante. O significante é criacionista, quer dizer “uma criação a partir de nada”. Já não é o espírito do coletivo que o evoca, mesmo que isso não negue a sua importância.

  1. J. Lacan (Ibid, 2021, p. 569) traz uma nova leitura de Aristóteles em “Joyce o sintoma” ao propor que os indivíduos que a filosofia toma por corpos são sintomas eles mesmos relativos a outros corpos[1]. Isso aponta para um homem político não pela troca entre a polis, nem pelo que ele comunica, mas pela capacidade de criação e de transmissão, o que se estabelece (n)a parceria com outros.

Sobre este ponto, consideramos o que escreve Clarice Lispector (1981, p. 21) em Água Viva: “a palavra como isca: a palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não-palavra- a entrelinha- morde a isca, alguma coisa se escreveu.

Diferente do eu pensava, lalíngua não seria um aparato do auto-erotismo, onde o sujeito se satisfaz da sua língua própria. Seguindo a perspectiva do sinthoma, a língua passa pelo corpo (próprio e do outro) e comove. Este fascínio por Joyce, Clarice e tantos outros, tem menos a ver com o conteúdo e sim com o gozo que ele(a) mesmo(a) experimenta de seu jogo de criação com o significante.  


Referências

BASSOLS, M. Ecoutons la musique de lalangue. Disponível em: https://psychanalyse-map.org. 2016.

LACAN, J. “Joyce, le Symptôme” (1975). In: ___. Autres Écrits.  Paris: Seuil, 2001, pp. 565-570.

LACAN, J. Le séminaire, livre XX. Encore (1972-1973). Paris: Seuil, 1975.

LAURENT, E. In: https://www.youtube.com/watch?v=17-cxWD5CH0, Seminário organizado por  Marlène Belilos e Renato Seidl, « Lacan lecteur de Freud », Eric Laurent comenta o Seminário XXIII « O sinthoma » de Jacques Lacan, Lausanne, 2012.

LISPECTOR, C. Água viva. S/l: Des femmes/ Antoinette Fouque, 1981.

LISPECTOR, C. A Hora da Estrela. S/l: Digital Source, 1995.

Panorama com Clarice Lispector. Entrevista de Júlio Lerner com a autora.  In: http://tvcultura.com.br/videos/5101_panorama-com-clarice-lispector.html

RESUMO: Este trabalho tem o intuito de abordar “o sinthoma” de Jacques Lacan. O psicanalista utiliza a antiga grafia grega, com th, a fim de apontar que o sintoma implica o corpo e a língua singular de cada sujeito. Para abordarmos esta formulação lacaniana recorreremos a obra e vida de Clarice Lispector que foi considerada por outros psicanalistas como um paradigma feminino do conceito do sinthoma lacaniano.  

PALAVRAS-CHAVE: “O sinthoma”, “Joyce o sitnhoma”, Clarice Lispector, lalíngua, histeria rígida, psicanálise.

 

[i] Fernanda Turbat exerce a psicanálise em consultório particular e em instituição. Tem laço com a cidade de Florianópolis, cidade onde estabeleceu sua prática clínica. Atualmente reside em Paris onde pratica a psicanálise em Instituição. Tem mestrado na Universidade de Estrasburgo onde estudou a passagem ao ato na adolescência e atualmente realiza um mestrado na Universidade Paris 8 onde estuda a articulação da psiquiatria com a prática contemporânea da psicanálise.

[ii] Escabelo consiste na sublimação de Freud na óptica lacaniana. É sobre o que o falasser se eleva para se fazer belo. 

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