NA BORDA DO DIZÍVEL

 

1951Rooms By The SeaRooms By The SeaEdward Hopper: 1951

 

José Fernando Velásquez
AME, membro da NEL/AMP

Freud propôs que “em todas as épocas os homens meditaram sobre o enigma da feminilidade” (2010 [1930-1936], p. 264). Mas para um analista é essencial situar esse mistério (LACAN, 2010 [1966-1967], p. 23). Apesar dos muitos anos de existência da psicanálise, há um desalento dos analistas frente ao tema, inclusive Freud (LACAN, [1969-1970], p. 67). A dificuldade em ter uma mínima ideia disso, em sequer admitir que existe, ou que pode ser reconhecido e separado do pensável, é a isso que Lacan se dedica depois do Seminário 18. Anteriormente, já havia sugerido “a cada um e, em especial, ao que pode haver de feminino reunido neste auditório, expressar-se assim sobre o gozo feminino” (LACAN [1966-1967] 2010, p. 23).

Esse campo faz referência ao que Freud qualificou como o Urverdrängt, que é traduzido como o incognoscível, o indizível, o reprimido primordial; ali onde não há a Behajung, não há possibilidade da bipolaridade (+, -). Ao estar no limite da linguagem, não se diz, mostra-se. Que assuntos concernem a esse campo? Ali onde o real aparece como Mestre. Exemplos:

1) o imperativo de gozo kantiano tem parentesco com o capricho feminino ou com a insensatez, onde a pulsão se assume como vontade de gozo: “é assim que eu quero, é assim que eu ordeno”[1]. O Desejo da Mãe é o capricho, ou seja, a vontade sem regras (MILLER, 2010);

2) na chamada devastação, que, na mulher, é (com frequência) a relação com a mãe (LACAN, 2003, p. 465).

3) no místico;

4) quando os órgãos e suas funções estão fora do discurso, no psicossomático, nos fenômenos do corpo que não fazem apelo ao Outro e que carecem de todo sentido fálico (LACAN, 2003, p. 456). O exemplo é a fibromialgia, que “(...) está no corpo. Ela não é endopsíquica, está fora” (LAURENT, 2012);

5) quando a vida se rege por invenções de gozo “fora do padrão”[2] (LAURENT, 2011, p. 10), amorfas, ilimitadas, aditivas, que resistem à norma, (é o que chamamos a feminização do mundo), com poder para desestabilizar a ordem simbólica e que, em muitos casos, levam ao estrago angustiante de laços sociais, ao sacrifício de si mesmo e do corpo em que se habita;

6) quando na experiência analítica se isola um “gozo” chamado pulsional, exterior ao desejo e independente da demanda do Outro.

O que se abre no último ensino de Lacan é o gozo feminino concebido como princípio do regime do gozo como tal, que não obedece ao esquema freudo-hegeliano. Um gozo que se basta a si mesmo; a expressão de sua vontade não é da ordem da harmonia, mas, antes disso, é um gozo-índice de “um disfuncionamento absoluto”[3] (MILLER, 2008). A psicanálise de orientação lacaniana reconhece a presença desse outro gozo, diferente do que se pode alcançar por meio do falo (LACAN, 1985, p. 100). É o gozo sexual como tal, “a ser entendido no sentido em que o ser falante o apresenta como feminino” (LACAN, 2003, p. 368), que não é suscetível de castração, que escapa à dialética proibição-permissão. A esse gozo é preciso concebê-lo independente da articulação do desejo, do macho ou da fêmea, porque em ambos esse desejo se referencia na lei (LACAN, 2005, p. 220). É um gozo primário, um gozo que está “à deriva” em relação à significação[4], e assentado no corpo como acontecimento” (LACAN, 1966-1967). “[...] ela é, propriamente falando, o que se chama de ilegível” (LACAN, 2009, p.104), está por fora da linguagem, fora da enunciação, fora do simbólico (LACAN, 2011, p. 32), por isso é que “quando tentamos capturá-lo com palavras, se nos escapa” (SCHEJTMAN, 2012, p. 64).

A esse gozo a psicanálise chamou de gozo feminino, porque representa o Outro absoluto para a dialética apoiada no falo (MILLER, 2010). Também por sua fixação com o materno, o qual não tem nada da fantasia de harmonia (LACAN, 2003, p. 365) que lhe foi suposta desde as psicologias ou desde a própria psicanálise. A esse gozo não se pode atribuir um ser, porque “um ser, quando vem a ser apenas pelo símbolo, é justamente um ser sem ser” (LACAN, 2012, p. 103). É um gozo que ex-siste; não é aquele gozo que se apoia na “falta e nos tampões”[5] (MILLER, 2001, p. 80); pelo contrário, é um gozo que itera sem necessidade; que esteve no passado, e que terá que se enfrentar no futuro. É o índice da singularidade do “há-Um” que provoca a barra a qualquer presença do Outro. É um gozo que está fora do que é válido para “Todos”.

O que caracteriza esse Outro Gozo é um “sem limite”, “sem sentido”, “sem medida”, “sem produto sexual verificável”; é um “sem” que remete a uma ordem diferente da satisfação fálica; é um gozo que, quando se desata, não há para ele condições de verdade, não se cifra em formas lógicas de pensamento, nem se concretiza em uma figura.  É aquele outro espaço de gozo que se abre para a Alice do conto, quando atravessa o espelho, sem lógica, sem temporalidade, sem controle, sem normativa.

Propor a disparidade que há entre o gozo feminino e o gozo masculino a partir da sexualidade genital é improdutivo, porque os sujeitos de ambos os sexos dispõem de ambos os gozos. Por isso, a ênfase em diferenciar a posição histérica e a posição feminina: a histérica não se toma pela mulher, pois encarna um sujeito suposto saber com respeito ao desejo (LACAN, 2008, p. 373), enquanto que o feminino não tem nenhuma relação com o saber, nada faz limite (LACAN, 2003, p. 466) à satisfação. Lacan advertiu sobre a necessidade de não nomear esse gozo como complementar, mas, sim, como suplementar “em relação ao que designa de gozo a função fálica” (LACAN, 1985, p. 99).

Nada há de tão “escorregadio” como esse gozo; um gozo do qual nada sabe o parlêtre, a não ser que o sente; sabe-o, quando ocorre (LACAN, 1985, p. 100).

A existência desse gozo é inapreensível pela via do sentido, mas se pode abordá-lo na medida em que está “forçado a passar pelo símbolo para se sustentar” (LACAN, 2012, p. 103).  E o símbolo aqui se entende como o escrito: a letra e a escritura da mesma, se situam na ordem do Real; elas são litorais, bordas, S1, e, portanto, compartilham a falta de sentido, “não significam”. Elas se escrevem na superfície do corpo como substância gozante, sem nenhum efeito de sentido. É lalangue que se inscreve como uma tatuagem no corpo, determinando uma realidade sintomática.

Uma análise torna legível esse mais além da palavra, libera o sentido do dito. A eficácia da psicanálise é uma consequência de localizar as bordas ou litorais desse gozo indizível para extrair o Uno sinthomático. “A análise chega a desfazer pela palavra o que está feito pela palavra” (LACAN, 1977).

Quando se trata de habilitar a compreensão desse gozo sem sentido, o psicanalista, diferentemente do filósofo, cerca-o pelos limites, pelos véus, ao deixar que se mostre como testemunho de gozo; mas deve estar advertido de que a tentativa de transgredir o limite traçado entre o sentido (a significação fálica) e o sem-sentido, não conduz a nenhum lugar, mas à deriva infinita de sentido que se faz gozo.

Da concepção desse gozo se ilumina uma forma de intervenção analítica que seja o chamariz da verdade, como pode sê-lo uma mulher para um homem, “algumas delas, por serem nãotodas, venham a criar para o homodito [l’hommodit] a hora do real” (LACAN, 2003, p. 495). A interpretação analítica descontextualiza, aponta o litoral, assinala o corte que marca aquilo que está fora de seu contexto natural, no “fora-do-discurso”: quando o dizer tropeça, titubeia; quando o ideal aparece roto; quando o objeto pulsional não encontra inserção em um sentido. Esses litorais se revelam pelo embaraço que produzem e, então, neles há que “visar o essencial… para não ser aquela que alimenta o sintoma com sentido” (LACAN, 2011, p. 25). É a única forma de aceder a esses significantes sem-sentido, a essas palavras imbecis (LACAN, 2011, p.14) que marcam uma existência e desvelam qual é essa forma singular de gozo.


REFERÊNCIAS

FREUD, S. A feminilidade (1933). In: ______. Obras completas. Volume 18 [1930-1936]. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 263-293.
LACAN, J. A lógica da fantasia (1966-1967); trechos do seminário 14. Opção Lacaniana – Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo: Eolia, v. 58, pp. 9-30, out. 2010.
_______. O Seminário, livro 14 – a lógica da fantasia [1966-1967]. Inédito.
_______. O Seminário, livro 16 – de um Outro ao outro [1968-1969]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.
_______. O seminário; livro 17 – o avesso da psicanálise [1969-1970]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1992.
_______. O Seminário, livro 18 – de um discurso que não fosse semblante [1970-1971]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.
_______. O seminário, livro 19 – ... ou pior [1971-1972]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2012.
_______. O seminário, livro 20 – mais, ainda [1971-1972]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.
_______. O seminário – momento de concluir [1977]. Inédito.
_______. A Terceira. Opção Lacaniana; Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo: Eolia, v. 62, pp. 11-36, dez. 2011.
_______. O aturdito. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
_______. Alocução sobre as psicoses da criança. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
LAURENT, E. Falar com seu sintoma, falar com seu corpo.  27 de setembro de 2012. Disponível em: <http://www.enapol.com/pt/template.php?file=Argumento/Hablar-con-el-propio-sintoma_Eric-Laurent.html>
_______. El sentimiento delirante de la vida. Buenos Aires: Editorial Diva, 2011.
MILLER, J.-A. Mujer coraje. Página 12. 4 de novembro de 2010. Disponível em: <https://www.pagina12.com.ar/diario/psicologia/9-156235-2010-11-04.html>
_______. A merced de la contingencia. Revista Consecuencias. Nov. 2008. Disponível em: <http://www.revconsecuencias.com.ar/ediciones/002/template.php?file=arts/alcances/miller.html> (aula de 30 de janeiro de 2008, publicada também sob o título “Contingencia de lo Real”. In: ______. Todo el mundo es loco. Buenos Aires: Paidós, 2015, pp. 161-175)
_______. De la naturaleza de los semblantes. Buenos Aires: Paidós, 2001.
_______. Mulheres e semblantes I e II. Opção Lacaniana Online, n. 1, março 2010. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_1/Mulheres_e_semblantes_I.pdf>
SCHEJTMAN, F. Elaboraciones lacanianas sobre la neurosis. Buenos Aires: Grama, 2012.


[1] Citação de Juvenal referindo-se a uma mulher que não cessa de exigir de seu marido que mate um escravo.

[2] N.T. A tradução é nossa. No original: no estándar

[3] N.T. A tradução é nossa. No original un disfuncionamiento absoluto.

[4] O esforço de Lacan se situa nos textos: Seminário 20, “O aturdito”, “Televisão”, “Alocução sobre as psicoses da criança”.

[5] N.T. A tradução é nossa. No original: la falta y los tampones

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