EXPERIÊNCIAS TRIVIAIS E SEM IGUAL

Cinthia Busato
AP, Membro da EBP e da AMP
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banal cosmopolitanism iiibanal cosmopolitanism [III] - foto: Reginaldo Cardoso

No tocante à orientação de trabalho das Diretorias de Cartéis e Intercâmbio da Escola Brasileira de Psicanálise, interessa-nos aqui interrogar o intercâmbio com a cidade, pensado a partir da perspectiva da Ação Lacaniana. Assim, qual a especificidade de uma conversação convocada pela EBP em torno de impasses de nosso tempo?

Lucíola Freitas de Macedo (2018) aponta que, quando se trata de nos fazermos presentes como psicanalistas no campo político,  está em jogo uma tripartição, em constante tensionamento:

1. o transindividual, tributário da subjetividade da sua época;
2. a diferença absoluta, que visa a desidentificação e o atravessamento da fantasia;
3. a singularidade do parlêtre, onde o sintoma joga sua partida.

Gostaria de pensar a Ação Lacaniana tendo essa tripartição como referência, a fim de questionar as diferentes vias através das quais a Escola pode intervir no horizonte do tempo que nos é próprio. 

A subjetividade de nossa época

A conversa da psicanálise com o Outro Social é de vital importância para sustentar a política da psicanálise, pois estar atentos aos impasses na cidade nos permite averiguar onde o real provoca a irrupção de uma desordem. Como ouvir essa desordem? Sabemos que não se trata de exercer aí um estilo maternal do exercício do poder, numa atitude de escuta das queixas dos cidadãos, reduzindo o sujeito político a uma vítima, cuja queixa deveria ser “ouvida” (LAURENT, 2016, p. 201).

A subjetividade de nossa época se apresenta dividida entre dois pontos principais. Por um lado, uma crescente solidão de Uns sozinhos diante da dificuldade de se inscrever na relação com os outros. Por outro lado, percebemos também a constituição de identificações imaginárias que se cristalizam em torno de grupos que portam um “nós” segregativo, comunidades de gozo fechadas em si mesmas. Ambas as vertentes apresentam em seu funcionamento características que dificultam o laço social.

É importante destacar que, para Lacan, o conceito de sociedade é um conceito duvidoso, pois podemos nos iludir pensando que a sociedade é algo naturalmente dado, mas, na verdade, ela é uma construção.  O conceito de laço social esclarece que o sujeito necessita do Outro para nascer, para se constituir, que o Outro o precede. Então, o laço social não é equivalente ao social, o conceito de laço social está fundado nos discursos.

Quanto mais os contornos de nosso mundo se estirarem para tentar nos fazer pensar que há um “nós” global, mais se instalará uma necessidade de identificação a um “nós” concreto, local, que ressurgiria como o retorno do recalcado. Essa primeira pessoa do plural, lugar a partir do qual os indivíduos do século XXI tomam a palavra e reivindicam novos direitos, diz do esforço de inscrição de uma identidade política local frustrando as leis do global (LEGUIL, 2017).

O filósofo François Jullien (apud LEGUIL, 2017)

afirma que “a reivindicação identitária é a expressão do recalcado produzido pela uniformização do mundo”. A globalização, desfazendo as fronteiras e os particularismos, teria como efeito retorno produzir o isolacionismo identitário, diante do risco de desaparecimento das trajetórias singulares no universo mundializado.

A ordem de ferro do discurso capitalista faz de tudo para desconhecer o poder subversivo das invenções singulares.

A máxima paradoxal de nosso tempo “seja original, faça como todo mundo” empurra todos na direção de uma sinuca de bico: essa identidade que se quer única não suporta sair da alienação do “nós”,  o que dificulta, e muito, tanto a desidentificação e a travessia da fantasia, quanto  a enunciação de algo que toque alguma originalidade. Essas identificações sustentadas no “a cada um seu gozo” vão criando grupos identitários que se apóiam no transindividual, nos discursos construídos sobre o “nós”, e não querem saber nada sobre a diferença absoluta e sua singularidade.

Essa identidade construída sobre esse “nós” engendra efeitos de segregação, pois qualquer diferença a ameaça. Verifica-se a promoção de um ideal sem furos a ser alcançado, por exemplo na criação de várias normas que promovem certo aplainamento das diferenças em nome do reconhecimento, o que gera comunidades de “pertença hostil para com os outros”. Tanto o “eu” assim forjado quanto o eu do narcisismo, surgido da certeza obtida do sentimento de si, que mergulha suas raízes no imaginário, são opostos ao Eu (Je) ao qual se refere a psicanálise freudiana e lacaniana, aquele que, falando dá um lugar ao inconsciente, ou seja, “o Eu da fala que surpreende” (LEGUIL, 2017).   

Desidentificações

Neste mundo de protocolos a surpresa é evitada e, quando aparece, toca num ponto opaco do eu, que faz vacilar o “nós”, pois, em psicanálise, a identidade tem a ver com o que excede toda norma e dá testemunho de nossa profunda inadaptação às normas do Outro. Podemos dizer que é uma relação singular com a existência por meio de nosso sintoma, esse que Jacques-Alain Miller (apud LEGUIL, 2017) afirma ser “a identidade mais garantida de alguém”. Portanto, a identidade, para a psicanálise, não é formulada através de um “nós, alguma comunidade de identificação gozosa social”, ela se formula a partir de um “eu” remetido à sua própria opacidade, um Eu que é também um Outro, um Eu que escapa ao sentido comum.

Nessa alienação imaginária, a opacidade fundamental do sujeito é vivenciada como angústia ou ódio, já que aí só reconhecemos o Outro como o espelho para quem reenviamos repetidamente a pergunta “espelho, espelho meu, existe alguém mais do que eu?”.  Através da resposta a essa pergunta podemos nos defender do trauma que nos desestabiliza dessa identificação ao ser, mas também, assim tentamos negar a opacidade como causa que nos orienta para o laço social podendo portar enunciações.

Numa conversação da Ação Lacaniana, temos que estar atentos a não fortalecer identificações que não queiram saber nada além de si mesmas, que não portem alguma questão quanto ao seu ser. A militância política geralmente se estrutura fazendo da identificação a chave da captura do sujeito, que não pede outra coisa, já que inconscientemente é carente de identidade, vazio, evanescente.

O discurso do mestre produz uma solidificação das identificações, as torna cada vez mais consistentes. Já o discurso analítico tenta diminuir essa potência de fixação narcisista, procede de forma inversa: partindo das identificações do sujeito ele se dirige ao núcleo de gozo que está encapsulado nessas identificações. As identificações vão caindo e o sujeito retorna à sua vacuidade primordial, não mais no desamparo da alienação fundante, mas agora de posse de sua causa de desejo. É nessa reviravolta em que “cai a segurança que extraía da fantasia em que se constituiu, para cada um, sua janela para o real, o que se percebe é que a apreensão do desejo não é outra senão a de um des-ser” (LACAN, 2003, p. 259).  Como, através da orientação de uma política que visa o real em jogo, nossa intenção, podemos sustentar o trabalho em relação à cidade? “É no próprio horizonte da psicanálise em extensão (intercâmbio) que se ata o círculo interior que traçamos como hiância da psicanálise em intenção” (LACAN, 2003, p. 261). Esse comentário de Lacan nos indica a importância desse ato que ata. 

O sintoma em sua partida com a cidade

Lacan (apud MILLER, 2011, p. 2) afirma no Seminário A lógica da fantasia: “Não digo ‘a política é o inconsciente’, mas digo ‘o inconsciente é a política’”.

A primeira é uma afirmação denegativa, que afirma o inconsciente como sendo - “Não digo que a política é o inconsciente” - e pode ser pensada como a política articulada ao pai, estruturada pela instância do pai, e os temas que  organizam sua abordagem são a identificação, a censura, a repressão, pois estas são imprescindíveis para instaurar o inconsciente simbólico. Podemos pensar essa parte como ligada à clínica clássica, essa que tinha como pivô o Nome-do-Pai e se distribuía em função das posições do sujeito em relação a ele.

Em contrapartida, “o inconsciente é a política” é uma afirmação que parte do inconsciente como o que está para ser definido, um inconsciente que não está escrito, “está em constante processo de escritura, num contínuo vir-a-ser, mais de acordo com a época da globalização e do não-todo,  essa em que florescem as patologias descritas como centradas na relação com a mãe, ou [...] no narcisismo” (LAURENT, 2016, p. 206).

A psicanálise tem sua força porque está atenta à surpresa e à contingência e pode trabalhar com isso para não tomar um sujeito como destino, pois o grande risco dessas identificações cristalizadas é colocar a queixa em primeiro plano e acabar tomando-a como orientação na melhoria das condições de vida. O que politicamente é válido, é claro. Mas não é essa a política da psicanálise que, apostando no sintoma, faz outra coisa. Faz laço e não sociedade. E trabalha justamente a opacidade do gozo que segrega, mais do que as identificações que unem, pois o que está fora do sentido é o que produz impasses e, ao mesmo tempo, abre o espaço para a invenção.

Sempre nos identificamos com os significantes do discurso de nosso tempo, e isso pode nos trazer uma ilusão de autoconhecimento que nos impede de entrar na dinâmica de novas identificações, que poderiam preservar essa permeabilidade com o Outro, orientados por nossas marcas de gozo.  

Penso, então, que uma das especificidades da política lacaniana, seja na Escola, seja na cidade, é introduzir uma zona de sombra nessa era da pretendida transparência da relação consigo.

Pensando em como poderíamos nos aproximar desse tensionamento da tripartição inicial:

1. Estar atentos a não usar os significantes da época com a função de evitar a implicação de cada sujeito com sua divisão.

2. Essa divisão sempre está apoiada em identificações; sabendo do valor dos semblantes, continuar em direção ao real, sem oferecer universais para ocultar a diferença absoluta.

3. Apostar nos efeitos, sempre contingentes, da escuta na escrita criativa e singular frente à opacidade, essa que possibilita o que Miller chamou de “Identidade sintomal, que não é do sujeito, mas do Um–sozinho, do corpo do qual não podemos escapar, de seus furos, que a contingência dos significantes colocou em funcionamento nas experiências singulares de cada um, experiências ‘triviais e sem igual’’’ (BROUSSE, 2018, p. 10-11).



REFERÊNCIAS

BROUSSE, Marie-Hélène. As identidades, uma política, a identificação, um processo, e a identidade, um sintoma. Opção Lacaniana online. São Paulo, v. 9, n. 25/26, mar./jul. 2018. Disponível em: <http://opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_25/As_Identidades_uma_politica_a_identificacao.pdf >. Acesso em: 20 ago. 2018.

LACAN, Jacques.  Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola. In:_______. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 248-264.

LAURENT, Eric . O avesso da biopolítica: uma escrita para o gozo.  Rio de Janeiro: Contra Capa, 2016.

LEGUIL, Clotilde. Ilusão do nós, verdade do Eu (Je): abordagem lacaniana da identidade. Opção Lacaniana online. São Paulo, v. 8, n. 22, mar. 2017. Disponível em: < http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_22/Ilusao_do_nos_verdade_do_eu_(je).pdf>. Acesso em: 20 ago. 2018.

MACEDO, Lucíola Freitas de. Campo freudiano Ano Zero, na EBP, hoje. Um por um: boletim eletrônico do conselho deliberativo da EBP. São Paulo, n. 347, abr. 2018. Disponivel em: <http://www.ebp.org.br/1por1/2018/04/18/campo-freudiano-ano-zero-na-ebp-hoje-luciola-freitas-de-macedo>. Acesso em: 20 ago. 2018.

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