DA IDENTIDADE IMPOSSÍVEL A UMA POLÍTICA DO SINTOMA1

Oscar Ventura
AE, AME, Membro da ELP/AMP
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camerawork I birth of a vision origem de um fantasma                                  camerawork I - birth of a vision (origem de um fantasma) - reginaldo cardoso

Escolhi esse título para o seminário a partir de um percurso que me conduz das últimas Jornadas da ELP até as próximas que ocorrerão na EOL. Basicamente, propus-me a trabalhar, em primeiro lugar, o tema da identidade e da identificação no ensino de Lacan que é, sem dúvida, um tema muito apropriado, já que ele está em sintonia com toda uma série de acontecimentos em que estivemos transitando nos últimos tempos do Campo Freudiano. Este também é um tema que, em termos mais gerais, atravessa as problemáticas clínicas e políticas tanto na Europa quanto na América Latina e até poderíamos dizer que no conjunto da civilização, no mundo globalizado tal qual o conhecemos. Por um lado, pode-se observar como fenômenos identitários e, por outro, como os novos caminhos, as novas formas que as identificações assumem no mundo contemporâneo e que, por consequência, produzem tanto novos sintomas no laço social quanto fenômenos já clássicos, conhecidos por nós e que se repetem, portanto. Interrogava-me se haveria um novo modo de entender o campo das identificações através de um deslocamento produzido a partir daquilo que entendemos como identificação – fundamentalmente aquela sustentada no traço unário – até um modo de laço que já não se sustentaria tanto no traço, mas, antes, na veiculação do afeto decorrente do acontecimento de corpo. Esse é um tema que Éric Laurent desdobra consideravelmente no livro O avesso da biopolítica.

Esse também é um tema que, sem dúvida, permite articular de uma maneira bastante precisa clínica e política. Entendendo-se por política aquela que está no plano da política da psicanálise e aquela em termos mais gerais.

Vou propor, então, uma perspectiva mais ampla sobre o tema da identidade e das identificações. Há um número enorme de referências de Lacan sobre isso que atravessa praticamente o conjunto de seu ensino, seja nos seminários, seja nos escritos. Obviamente, é impossível nomeá-las todas. A Escola, na Espanha, concentrou-se, em suas últimas jornadas, sobre o tema “A psicanálise diante das novas identidades”. Foi uma oportunidade para fazer um trabalho de levantamento bibliográfico muito preciso e de muita utilidade para fornecer alguma orientação. Ele pode ser consultado na página web da Escola.

Para começo de conversa, creio que é importante poder estabelecer as diferenças e as articulações existentes entre identidade e identificação. O significante “identidade” como tal não é um conceito psicanalítico; “identificação”, por outro lado, é. Ainda que a palavra “identidade” frequentemente esteja presente nos textos de psicanálise, o discurso do analista não produziu uma teoria ou uma lógica da identidade, tal qual estabeleceu, de modo muito preciso, um funcionamento e uma doutrina das identificações na economia psíquica. A identidade é, antes, um conceito transversal utilizado de maneiras muito diferentes por uma pluralidade de discursos.

Uma das coisas que observamos no desenvolvimento dessa pluralidade de discursos que fazem referência à identidade é que sempre encontramos pelo menos um elemento que as atravessa, um elemento em comum, poderíamos dizer. É essa espécie de sonho que consiste em interpretar, em pensar que a identidade seria algo equivalente a ser um mesmo, que se poderia entender como um sujeito etiquetado, aderido a uma identidade. Por outro lado, aquilo que a prática da psicanálise revela é que a identidade está longe de ser una. De fato, isso que chamamos de identidade está constituído por uma variedade de identificações. Essas identificações são múltiplas e se movem, se deslocam. Se nos detemos com um pouco mais de atenção sobre isso, percebemos que o próprio conceito de identificação está baseado em um questionamento sobre a identidade, de tal sorte que a identificação se opõe à identidade. Há identificações porque, na realidade, não há identidade passível de ser nomeada enquanto una. Em vez disso, do lado da identidade, há multiplicidade – identidades, no plural. É isso que encontramos na organização do laço social contemporâneo sob a denominação de “política das identidades”. Voltaremos à essa questão.

Contudo, para nos orientarmos no ensino de Lacan, podemos nos perguntar, por exemplo, sobre aquilo que o sujeito teria como mais próximo, como recurso mais imediato ao qual poderia apelar para se reconhecer em uma identidade, como instância que poderia dizer algo sobre sua identidade. A resposta cai por si mesma, pois essa instância é seu eu. O eu seria o lugar onde poderia residir uma suposta identidade. No entanto, sabemos que a formação do eu, que a estrutura desse eu – no qual a identidade poderia se sustentar – não é sob nenhum ponto de vista uma unidade. O eu está habitado pelas identificações que se precipitaram sobre ele e que, por isso mesmo, o dividem e que, em hipótese alguma, fazem dele uma unidade, um lugar de síntese a partir do qual se poderia captar uma identidade.

Nesse sentido, Lacan, desde muito cedo em seu ensino, rejeitou essa ideia do eu como lugar de síntese, especialmente nas críticas que teceu em torno da teoria da ego psychology e sobretudo da ideia de que, no eu, existiria uma área livre de conflitos na qual o sujeito poderia fundar uma identidade e reestabelecer as relações com o princípio de realidade tanto naquilo que se refere ao seu laço com os outros quanto na concepção mesma do tratamento e da transferência. Pensar a transferência no sentido de que seria possível enlaçá-la em uma suposta aliança terapêutica, na qual essa área livre de conflitos no eu seria aquilo que estabelece, no tratamento, a relação com o analista é verdadeiramente um disparate. Teríamos duas áreas livres de conflitos, a do terapeuta e a do paciente, por assim dizer, que seriam o eixo da direção do tratamento.

Por outro lado, na atualidade, também vemos como as abordagens cognitivo-comportamentais se sustentam, a partir de outra perspectiva, no postulado de uma síntese egóica, a partir, por exemplo, das terapias denominadas de aceitação e de compromisso, que são as que mais têm presença e expansão no campo clínico. Nas terapias cognitivas, considera-se a existência de uma verdade objetiva e universal à qual nosso pensamento tem que se ajustar para ser saudável. Essa suposta verdade objetiva seria a chave de unificação egóica em que o sujeito poderia se sustentar enquanto identidade capaz de se reconhecer na realidade daquilo que é. Podemos acrescentar, para substantivar as coisas, que ele se reconheceria objetivamente.

Pois bem, esses são pequenos exemplos que ilustram suficientemente a aspiração ao Uno da identidade que veicula o discurso do mestre. Também sabemos que a busca pela identidade, que a pergunta sobre aquilo que sou efetivamente é algo que está no núcleo do pensamento, da filosofia, da sociologia, daquilo que chamamos de ciências humanas em seu conjunto, mas também, se seguimos Lacan em torno da loucura humana, dessa paixão por querer responder ao questionamento sobre aquilo que é um homem, por outorgar-lhe uma identidade que seja una e na qual ele possa se representar enquanto tal, ou seja, como homem.

Desde os primeiros encaminhamentos do ensino de Lacan, encontramos uma profunda objeção ao desenvolvimento conferido ao eu, ao lugar que lhe era outorgado na economia psíquica. O eu, tal como a psicanálise o descortina, está afetado muito primariamente por um desconhecimento radical daquilo que o constitui.

Esse desconhecimento do eu, essa impossibilidade de dar conta de uma identidade que poderia ser nomeada enquanto una é o ponto de partida de Lacan. Na leitura que Lacan faz da teoria freudiana das três formas de identificação, ele conclui que há identificação porque não há identidade passível de ser sustentada enquanto una. A identidade é concebida, ao longo do ensino de Lacan, como um vazio, ou melhor, como ausência – ela é aquilo que não há. Lacan coloca em relevo em diferentes momentos de seu ensino essa vacuidade da identidade. Podemos dizer que se crer uno é uma ilusão, uma paixão ou uma loucura, conforme se vá explorando as diferentes formas pelas quais Lacan abordou o narcisismo. Por exemplo, no escrito de 1946 sobre a causalidade psíquica, Lacan assinala que “as primeiras escolhas identificatórias da criança [...] não determinam outra coisa [...] senão essa loucura pela qual o homem se crê homem”. (LACAN, 1998, p. 189). Nesse momento do ensino de Lacan, esse crer-se uno é abordado por meio do imaginário e da paixão narcisista – e escreve:

Surge aí essa ilusão fundamental de que o homem é escravo, bem mais do que todas as “paixões do corpo” no sentido cartesiano, dessa paixão de ser homem, diria eu, que é a paixão da alma por excelência: o narcisismo, que impõe sua estrutura a todos os seus desejos, mesmo os mais elevados (LACAN, 1998, p. 189).

Aquilo que Lacan opõe à paixão narcisista como fundamento é a dimensão da causa no que ela se refere à identificação que estaria fundada, diz Lacan, em “uma forma de causalidade que é a própria causalidade psíquica – a identificação, que é um fenômeno irredutível”. (LACAN, 1998, p. 189).

Então, esse fenômeno primário e irredutível que é a identificação se torna um suporte; é a matriz mais primária pela qual o sujeito vai aprender a se nomear, nomear-se como tal no Outro. Contudo, como bem sabemos, no Outro como tal, o sujeito falta, ele não está ali senão representado por um significante para outro significante. O sujeito do inconsciente, esse que é falado pelo Outro, é diz Lacan, não só contraditório e vão, mas também vazio e evanescente. Aliás, justamente em função dessa condição de ser vazio e evanescente, carente de identidade, poderíamos dizer, ele busca apaixonadamente uma nomeação a partir das identificações que o determinaram. A partir da identificação, ele aspira a se nomear de uma maneira ou outra. Encontramos aqui precisamente aquilo que é a estrutura, a célula elementar do discurso do mestre, que Lacan correlaciona ao discurso do inconsciente

S1 → S2

$

Para dizer de outra maneira, podemos tomar como exemplo a forma através da qual o discurso político se desenvolve. O discurso da política se estrutura justamente fazendo da identificação uma chave de captura do sujeito. Como diz Jacques-Alain Miller em uma entrevista publicada em Cités, no 16, “aos olhos de Lacan, a política procede mediante identificação, manipula os significantes-mestres e, dessa maneira, busca capturar o sujeito. Ele, o sujeito, é preciso dizê-lo, não pede outra coisa, sendo, ao passo que inconsciente, carente de identidade, vazio, evanescente”. (MILLER, 2003/2004, p. 111). Esse discurso do mestre é exatamente o avesso do discurso do analista, ou seja, procede de maneira inversa à da psicanálise. A psicanálise parte, antes, das identificações do sujeito para, então, se dirigir ao núcleo de gozo que as identificações comportam, ao núcleo de gozo que está encapsulado nas identificações, desfazendo-as uma a uma, fazendo com que caiam como as camadas de uma cebola – para utilizar a metáfora freudiana. É por isso que devolve ao sujeito sua vacuidade primordial, fazendo com que retorne a ela. Devolver ao sujeito sua vacuidade primordial é a fórmula que permite a Lacan falar, por exemplo, do atravessamento da fantasia, da travessia da fantasia.

O que é a travessia da fantasia? Não é outra coisa senão aquilo que o trabalho de uma análise produz sobre o campo das identificações, como que as erodindo, retirando os véus tecidos pelas identificações em torno do objeto. Em última instância, aquilo que Lacan denomina des-ser é o ponto de encontro com essa vacuidade primordial, com essa ausência de nomeação pela qual o sujeito do inconsciente é atravessado.

Podemos tomar como demonstração disso uma frase de Lacan. Ela ilustra isso com bastante precisão. Trata-se de uma frase que aparece em “A direção do tratamento” para fazer referência ao momento da interpretação e alude ao dedo de São João, que aponta ao “horizonte desabitado do ser”. (LACAN, 1998, p. 648). Em seguida, virão outras definições e outros ajustes relativos à interpretação, mas essa citação permite captar muito bem a orientação, ou melhor, para onde aponta o vetor da lógica do tratamento. Ela vai em direção oposta ao discurso do mestre: onde o discurso do mestre aponta para a produção de uma solidificação das identificações, pretendendo torná-las consistentes, o discurso do analista se orienta pela destituição de sua potência ou, pelo menos, da potência do pathos veiculado pelas identificações.

Esse detalhe do pathos das identificações é importante, porque de fato tanto Lacan quanto Freud assinalaram o aspecto irredutível das identificações. Ou seja, não existe um sujeito absolutamente desidentificado. Isso é impossível. Aquilo de que se trata é retirar, fazer caírem as identificações alienantes, os traços de gozo do Outro que habitam alguém. Trata-se de se separar disso, portanto. Esse é um percurso que vai desde as identificações imaginárias – que são as formas pelas quais Lacan nomeou aquilo que, em Freud, eram as identificações secundárias – até as identificações primárias, ou melhor, o campo dos S1, dos significantes-mestres que vieram para ocupar o lugar desse vazio de identidade de que estamos falando.

Creio que aí se vê com bastante clareza, segundo os discursos, a oposição de dois regimes da relação entre identidade e identificação. Por um lado, o discurso do mestre, que pretende capturar a identificação, fixar os S1, e, por outro, o discurso do analista, que opera desfazendo as identificações em que o sujeito se vê preso.

Então, se seguimos o desenvolvimento do ensino de Lacan, podemos apreciar como progressivamente começa a operar uma mudança no regime das identificações que também diz respeito à questão da identidade.

Em Psicologia das massas e análise do eu, Freud situava três níveis de identificação e fazia com que esses três níveis de identificação estivessem na dependência do Outro, ou seja, do Outro que era garantidor da identidade pela via da identificação. O primeiro mecanismo isolado por Freud, a forma mais primária da identificação é aquela relacionada ao pai pela via do amor. É isso que asseguraria, por assim dizer, a estabilização da realidade. O pai sustentado pela identificação garantiria a unidade do mundo.

O segundo processo de identificação foi definido por Freud a partir da histeria – conhecemos, aliás, o laço estreito do discurso da histérica com a psicanálise. Jacques-Alain Miller propõe chamá-lo de identificação participativa ao outro na medida em que esse outro, esse semelhante, falta. Ou melhor, a histeria habitada pela paixão da falta-em-ser se dedica a encontrar, no semelhante, a falta pela qual está habitada e produz, pela via da identificação, o sintoma.

A terceira forma de identificação diz respeito ao traço unário, não importa qual ele seja; sua única condição é que esteja no Outro. É a identificação a um traço qualquer, aleatório. Trata-se, então, de uma marca que o sujeito extrai do Outro, incorporando-a como um elemento próprio e que, desse modo, condiciona sua forma de habitar o mundo, ou seja, sua forma de gozar.

É isso que temos em primeiro plano quando partimos da teoria da identificação em Psicologia das massas. É um fato de estrutura. É a partir do Outro que se organiza o campo das identificações.

No curso de 2006-2007, intitulado O ultimíssimo Lacan, Jacques-Alain Miller descortina uma solução de continuidade crucial no ensino de Lacan. Esse último ensino marca um verdadeiro ponto de inflexão, pois, nele, assistimos a uma mutação conceitual, a uma transformação da perspectiva através da qual estávamos acostumados a nos mover – ou seja, aquela que partia dos significantes que orientavam o aparato doutrinal clássico, por assim dizer, do ensino de Lacan. Penso, contudo, que essa transformação não invalida ou anula de nenhum modo aquilo que faz referência ao ensino anterior.

Esse é um fato a levar em conta, já que, às vezes, corremos o risco de nos introduzirmos nesse último ensino precipitadamente. Na realidade, pelo menos eu penso desse modo, existe uma solidariedade entre o último ensino e aquele anterior – um não é sem o outro. Também precisamos levar em conta que ainda estamos transitando de uma experiência clínica até a outra. E que, nesse sentido, ainda se faz necessário verificar os modos de articulação, os efeitos que vamos encontrando. Apesar disso, aquilo que, sim, podemos colocar em relevo é que essa última clínica permite que nos orientemos muito bem na apreciação dos sintomas contemporâneos. Ela permite uma flexibilidade que faz com que a clínica se torne muito operativa para decifrar sintomas inéditos, os quais recorrem a um vasto leque que pode abranger, por exemplo, desde as problemáticas trans, que têm uma articulação muito precisa com a questão das identidades, até a proliferação de sintomas que, na psicopatologia clássica, se apresentavam de maneira muito mais discreta e em número muito mais reduzido de casos, como as toxicomanias, as anorexias, os chamados transtornos do humor. Enfim, poderíamos fazer uma lista de sintomas que hoje se apresentam como epidêmicos. Creio que é lícito dizer que uma nova psicopatologia está se impondo e que temos uma nova ferramenta – i.e., o último ensino de Lacan – para decifrar tais sintomas, para encontrar sua lógica e poder operar sobre eles.

De fato, na última parte do ensino, assistimos a uma reformulação, a uma torção de conceitos clássicos – é uma operação topológica. As coisas já não funcionam da mesma maneira que antes e justamente o conceito de identificação desempenha um papel central nessa mutação.

Em Psicologia das massas, tínhamos o regime da identificação organizado pelo Outro. No último ensino de Lacan, o Outro se encontra destituído na medida em que o sujeito é pensado a partir do real, do simbólico e do imaginário, os quais são três consistências. Depois disso, de acordo com um movimento progressivo, modifica-se o estatuto do sujeito. Já não se trata do sujeito do significante nem tampouco do sujeito da identificação, mas do homem – UOM, como Lacan abrevia na conferência sobre “Joyce, o sintoma” –, do ser humano enquanto tal, qualificado por Lacan como ser falante ao fazer uso do neologismo falasser [parlêtre]. De algum modo, é a isso que se vê reduzida a primazia da linguagem que Lacan havia elaborado anteriormente.

Nessa perspectiva do falasser, encontramos uma modificação do regime das identificações. No lugar do Outro, que já se encontra deslocado, há um princípio de identidade totalmente diferente que é o corpo. Trata-se de uma passagem que vai do Outro do significante, do S1 ao qual nos identificamos, ao Outro como corpo – não ao corpo do Outro, mas como nos acostumamos a dizer, ao corpo próprio. Há como que uma dobra sobre a função originária da relação com esse próprio corpo que é fundante do falasser, diferentemente do que acontece na relação do S1 com o sujeito.

Esse corpo próprio é uma consistência, Um-corpo [en-corps], conforme nomeia Jacques-Alain Miller no curso de que lhes falava há pouco. Tudo aquilo que estava investido na relação com o Outro se desloca até esse corpo como uma consistência. Sobre esse corpo, Lacan diz que se tem uma ideia, uma ideia como que de si mesmo, que ele chama, resgatando a velha palavra freudiana, de ego. Mas é preciso esclarecer que Lacan assinala com muito cuidado que a definição daquilo que alguém é enquanto ego não tem nada a ver com a definição do sujeito que passa pelas representações do significante. O ego se estabelece, antes, a partir da relação com Um-corpo. Nessa instância, nessa impronta primária já não há identificação, mas pertencimento, propriedade.

Trata-se de algo que está além da divisão psíquica operada pelo traço unário, esses pedaços aos quais alguém se identifica. Além do mais, isso tampouco aponta para a falta no outro, tal qual ocorre na identificação histérica. Mesmo assim, isso tem algo a ver com o amor, mas não, tal qual em Psicologia das massas, como amor ao pai e sim como amor ao corpo próprio, no sentido do amor ao Um-corpo.

“O falasser adora seu corpo”, diz Lacan (2007, p. 64) no Seminário 23, sobre Joyce. Esse corpo, pensado como uma consistência, é aquilo que de mais seguro se tem. Esse corpo é aquilo que viria no lugar dos três modos de identificação freudianos. Quando Lacan insiste nessa propriedade do corpo e circula ao redor dessa mudança de estatuto da identificação, diz que, esse corpo, não se é ele, senão que se tem ele. Ainda que essa noção de ter um corpo não seja mais do que uma crença, tal qual diz Lacan – ou seja, crença no sentido de ter um corpo como se ele fosse um objeto disponível –, é mais do lado do ter, em detrimento do ser, que se apresenta um corpo. Esse Um-corpo, diz Lacan, é a única consistência do falasser. É preciso acrescentar que, quando Lacan fala de “consistência”, assinala que se trata de uma consistência mental, de tal sorte que se pode deduzir que ela não é física: “O falasser adora seu corpo, porque crê que o tem. Na realidade, ele não o tem, mas seu corpo é sua única consistência, consistência mental, é claro, pois seu corpo sai fora a todo instante”. (LACAN, 2007, p. 64). E prossegue: “Já é um grande milagre que ele subsista durante o tempo de sua consumação, que é de fato, pelo fato de dizê-lo, inexorável. Nada pode ser feito, ela não é reabsorvível”. (LACAN, 2007, p. 64). Podemos dizer, então, que o corpo de fato subsiste ao tempo de destruir-se, mas ele não evapora, não se esfumaça e, por isso, Lacan o trata como uma consistência.

Assim, em primeiro plano, não encontramos a noção de identificação, mas aquela de pertencimento, de propriedade. O Outro, através dos processos de identificação, tão somente produz falta-em-ser, vazio, ao passo que Um-corpo não se apreende senão por sua consistência. No lugar do amor pelo Outro, o pai, encontramos a adoração pelo corpo que é uma mistura de imaginário e de real. Ou seja, imaginário na medida em que Lacan define essa consistência como mental, já que o pensamento não faz senão transmitir essa adoração, e real porque esse corpo é a sede do gozo que não tem nenhuma possibilidade de ser representado, pois escapa à lógica da metáfora, da metonímia e, por consequência, do sentido.

Por outro lado, não devemos esquecer que Lacan já tinha construído uma teoria do narcisismo freudiano despida das roupagens e da vertigem do imaginário, em benefício do real da marca, daquilo que de alguma maneira fazia signo para além das representações imaginárias. Mas esse momento do último ensino de Lacan já não consiste em definir o corpo por sua imagem nem como um efeito de sentido, senão como corpo gozante organizado pelos orifícios corporais em torno dos quais Freud tinha articulado certa solidariedade com as pulsões. Esses buracos do corpo emitem sentido na medida em que têm sua origem nas experiências de gozo que, depois, procuram recuperar. Os buracos do corpo localizados no Um-corpo funcionam como marcadores. Trata-se de uma espécie de escritura indecifrável, não inscrita, paradoxal, se assim se quiser, e radicalmente refratária a qualquer tentativa de formalização pelo simbólico.

Creio que é importante seguir passo a passo pelo último ensino de Lacan, porque ele requer que se coloque em dia uma série de passagens mediante as quais se produz um aggiornamento conceitual. É preciso levar em conta qual é a lógica pela qual os conceitos vão mudando, os diferentes passos que permitem captar uma reformulação clínica.

Faço referência aos passos, por exemplo, que vão do sintoma, como aquele que veicula o deciframento e o sentido, ao sinthoma, que mostra, antes, um modo de funcionamento e exclui o sentido em favor de um saber-fazer com o irredutível do gozo sempre encapsulado no próprio sintoma. Também há a passagem que vai do sujeito do inconsciente ao falasser e que dá conta de uma mudança de estatuto do inconsciente. O Outro, por sua vez, já não se apresenta como tesouro dos significantes, de tal sorte que Lacan tende a descrevê-lo como um enxame de significantes, antecipando a passagem que vai do inconsciente à lalíngua, escrita toda junta. Esse conceito de lalíngua permite que nos aproximemos de um ponto que vai além da identificação. É um conceito que aparece no Seminário 20 – mais, ainda [encore] –, que inaugura seu último ensino.

Na primeira parte de seu ensino, Lacan privilegiava a linguagem diante da diversidade das línguas. No Seminário 20, ao contrário, privilegia as línguas em vez da estrutura da linguagem. Se seguimos esse desenvolvimento no Seminário 20 veremos onde podemos situar com precisão o questionamento da estrutura da linguagem.

No lugar do inconsciente estruturado como uma linguagem, no lugar disso, encontramos lalíngua, a partir da qual Lacan afirma que não está nada seguro de que a língua sirva para o diálogo. Ao escrever lalíngua em só uma palavra sem distinguir artigo de substantivo, indica com essa escrita que a língua serve para o gozo e o gozo não comunica. Estamos, então, diante da presença de uma língua que não comunica, que está a serviço do gozo.  E fundamentalmente fixada no gozo do sentido, jouissance, o sentido-gozado, como diz Lacan.

Na realidade, no Seminário mais, ainda, a linguagem e sua estrutura aparecem como secundárias e são derivadas do que Lacan chama de lalíngua. Podemos definir lalíngua como a palavra antes do seu ordenamento gramatical e lexicográfico, separada, portanto, da linguagem. Com essa condição, Lacan formula uma inclusão originária e privilegiada do gozo em detrimento da estrutura e suas articulações. E esta inclusão, esta irrupção de gozo, seria anterior à toda construção de sentido veiculada pelo funcionamento das identificações. Seria pré-identificatória, se podemos dizer assim.       

A identidade na primeira parte do ensino de Lacan não seria o produto de uma identificação que é sempre, em última instância, vazia, passível de ser destituída, trocada. Com lalíngua, Lacan aponta, precisamente para o que há antes da identificação: se posso dizer assim, unidades pré-identidade. De tal modo que a identidade sempre viria a ser uma elucubração a partir da ausência mesma de identidade.

Vamos, então, com o corpo a partir dessa nova perspectiva que é concebido desde o mais estritamente primário, em um tempo anterior. Se pensarmos com atenção, o que chamamos de acontecimento de corpo revela justamente algo que é solidário ao conceito de lalíngua. Um corpo que é atravessado, impactado por lalíngua. O que quer dizer com isso?

Entendo o acontecimento de corpo – essa irrupção de gozo, como o define Jacques-Alain Miller – como um dos eixos para captar a mudança que se opera no último ensino de Lacan. O acontecimento de corpo nos permite, entre outras coisas, entender a lógica de um deslocamento definitivo do campo da identificação tal como a tínhamos pensado classicamente. E isto se dá em benefício de situar um encontro anterior ao imaginário e até mesmo anterior à mordida mesma do significante no corpo. Se podemos dizê-lo assim, de uma maneira rápida: um encontro com lalíngua onde impacta o afeto e se imprime no corpo. Uma marca, um tom vital que se encarna e que faz laço para além da identificação.

Podemos captar muito bem o destino dessa marca e sua formalização na experiência clínica. Por exemplo, é o que se põe em relevo na experiência do passe, em que se verifica, de maneiras sempre singulares, como a queda das identificações costuma suceder um acontecimento inédito que impacta no corpo e que faz eco para além de toda representação. O que podemos dizer de outra maneira: quando o corpo deixa de estar perturbado pelo pathos do sentido, quando o sentido, por assim dizer, cessa de ser a enfermidade do falasser, o corpo se orienta de outra maneira no laço social, tudo parece indicar que, de uma maneira mais amável, mais direta, mais em consonância – como diz Laurent em O avesso da biopolítica – com a reson, ou seja, com o que ressoa, com o que faz eco, do que com a razão.

Não há nenhum ciframento possível para o acontecimento de corpo. Faz-se com ele sinthoma no melhor dos casos. Entre outras conceituações possíveis, penso o acontecimento de corpo como uma mola, uma sorte de Aufhebung que implica a possibilidade, para cada um, de construir um escabelo, a sua medida. Seja muita ou pouca a possibilidade de sublimação, o potencial em cada sujeito, seja qual for o destino dessa sublimação.

A identificação, então, o campo da identificação, segue estando no Outro e, efetivamente, este é um processo essencial. Mas o Outro não dá uma identidade, que possa ser nomeada como una, antes, como dizíamos, sempre inscreve uma pluralidade. O Outro, de fato, é uma condição necessária para a constituição de nosso marco, para o que chamamos de acesso à realidade que está fundada em uma falta. O Outro, podemos dizer assim, empresta-nos significantes pelos quais desfilam as identidades, que se confundem, que se atropelam umas às outras, que se contradizem e que no desenvolvimento da experiência analítica, vão caindo, vão perdendo sua consistência, deixam de ser operativas quando o sujeito consegue separar-se dos pontos de alienação aos traços de gozo do Outro.

Se seguimos essa orientação, podemos dizer que se há uma identidade que, de alguma forma, possa se sustentar, seria o que Jacques-Alain Miller propôs chamar identidade sintomal (symptomale). E que não é um tipo de identidade que corresponda ao sujeito, mas sim que se inscreve do lado do Um, do Um-todo-só, do corpo mesmo, do corpo do qual não podemos escapar, dos buracos do corpo nos quais a contingência dos significantes pôs a funcionar, em cada um, experiências diferentes, experiência únicas e inigualáveis, sem nenhum tipo de homogeneização possível, sem escrita identificatória nenhuma. Experiências que podem ser triviais, inclusive, mas que dão conta de uma forma estritamente singular de habitar o mundo, de mostrar algo que é da ordem do que Lacan chamou de diferença absoluta.

O que seria, então, uma política do sintoma? A princípio, podemos defini-la pelo que ela não seria: uma política de identidades. Antes, uma política do sintoma se inscreve como uma política da desidentificação. Podemos pôr em relevo a expressão de Lacan “identificar-se ao seu sintoma”. Qual seria o modo de produção disso em uma análise? Nessa direção, a política do tratamento opera por extração e por redução. Trata-se de encontrar as formas singulares, com os recursos que cada sujeito dispõe, que permitam desprender-se do Outro e sustentar-se aí, na medida em que se consente com isso, já que não há Outro do Outro. É preciso dizer também que é necessário tratar com uma certa prudência, sem dúvida, esse desprender-se do Outro, essa fórmula radical de separação. O que quero dizer é que a experiência da inexistência do Outro não é uma experiência pela qual o sujeito transita o tempo todo, isso é impossível ou é a loucura. Antes, são momentos em que isso se apresenta como efeito de uma análise, momentos de destituição do Outro, pelo menos é assim em minha experiência. A experiência de uma solidão que, no meu caso, não se torna um tormento.

Em uma análise, trata-se de extrair essas marcas indeléveis de cada um, essas experiências únicas que dão conta do gozo sintomático do sujeito. Em uma análise, extraem-se os momentos em que um dizer marcou um corpo, isso implica uma redução dos enunciados e uma liberação da enunciação. A enunciação, a boa forma de dizer, é o efeito dessa operação e isso faz eco no corpo. A pulsão é o eco no corpo de que há um dizer, diz Lacan. Desde essas coordenadas clínicas, podemos formular, por assim dizer, uma identidade a partir do sintoma que mesmo sendo produto de uma contingência, não deixa de ser a única garantia de unidade, uma solução para o falasser. Uma vez que os obstáculos, os impedimentos, os enredos das identificações que eram alimentadas pelo sentido, caem, o que resta é um funcionamento que modifica o laço com o corpo e o laço com o outro. A queda do sentido e da interpretação permitem positivar o sintoma, colocá-lo não-todo a serviço do gozo, ordenar um saber-fazer com isso.

Tratei de isolar a passos largos, mesmo com grandes riscos, as modificações, as transformações que no ensino de Lacan concernem ao problema da identidade e das identificações. Fundamentalmente, no que concerne esta modificação do estatuto do corpo, que já não é o corpo da imagem, sede das identificações imaginárias, nem tampouco o corpo preso nas identificações simbólicas que respondem à constituição do ideal. Trata-se do corpo como uma consistência, o corpo pensado a partir da relação do sujeito não com o Outro da linguagem, mas sim da relação do falasser com lalíngua. E nesta conjuntura, o acontecimento de corpo é um instrumento que permite esclarecer, fazer contraponto ao que é uma política das identidades. Éric Laurent, no livro O avesso da biopolítica, desenvolve esse tema com profundidade, recomendo-lhes a leitura. Ali, ele opõe o acontecimento de corpo à política das identidades a partir da clínica que se depreende do último ensino de Lacan.

Para ir concluindo, então, vamos pôr agora a lupa sobre algumas questões que se inscrevem no laço social contemporâneo e que permitem orientarmo-nos a operar sob uma política do sintoma.

Na atualidade, assistimos a um surto, a uma espécie de efervescência dos fenômenos identificatórios que se produzem em muitos níveis e que são diversos, heterogêneos. E o que comprovamos em primeira instância é que as velhas identidades estão em crise e isso é solidário com o declínio, com a evaporação das coordenadas simbólicas, com a diluição e a debilitação dos significantes que regulavam os intercâmbios no laço social.

Penso que estamos todos mais ou menos de acordo que estamos na época da queda dos grandes relatos unificadores e do rompimento dos semblantes que sustentavam a confiança na organização do mundo. Para isso, basta dar uma olhada na atualidade mais imediata, ao desencadeamento de todo o tipo de crise, tomem elas as formas que tomarem: imigratórias, financeiras, os fenômenos de terrorismo, religioso ou não... O que podemos verificar é até que ponto se torna impossível reestabelecer a confiança em algum significante mestre. Antes, o que verificamos é que toda a tentativa de regulação se torna refratária à lógica mesma do discurso. Nos encontramos com uma dispersão que questiona radicalmente as formas de organização nas quais havíamos nos sustentado. E sob essa tela de fundo, efetivamente, as velhas identidades estão em crise e novas identidades surgem, e não sabemos qual será sua duração nem qual será sua intensidade, torna-se impossível qualquer tipo de mediação e de cálculo.

Nesse plano, vemos amplificada a complexidade de uma ordem do mundo onde o deslocamento dos objetos é vertiginoso, onde nos encontramos com uma enorme dificuldade para fixar as significações, para que as significações durem tempo. Esse fenômeno que concerne ao tempo, à subjetivação do tempo em nossa época, essa espécie de aceleração pela qual estamos atravessados, efeito de uma coalescência cada vez mais sólida entre o discurso do capitalismo e a técnica, promove, sem dúvida, uma perturbação do campo das identificações no laço social como as que havíamos concebidos com Freud. E isso, sem dúvida, nos concerne.

É interessante nos determos por um instante na questão do tempo, porque nos cabe viver numa época em que a ciência operou uma pragmática definitiva sobre o tempo. No que se vai consumando uma redução do tempo. E efetivamente podemos comprovar que os laços que se constituem sobre esta redução do tempo parecem não ser solidários com os intervalos necessários, com o vazio que se requer para fixar representações sólidas até certo ponto. Vivemos, como diz Gilles Lipovetsky, no Império do efêmero. E, nesse sentido, efetivamente, verificamos no laço social uma mudança da situação dos mecanismos das identificações como Freud havia isolado em Psicologia das Massas.

Ao produzir um levantamento sobre a história científica do tempo, Jacques-Alain Miller se pergunta em seu livro A erótica do tempo se, quando observamos esse passo da história científica do tempo, há ou não uma foraclusão do tempo. Uso essa palavra com precaução, diz Miller, mas é o que a especialização científica do tempo parece implicar (MILLER, 2000). E, de fato, as formas que o laço social se constrói na contemporaneidade implicam esta redução do tempo operada pelo discurso.

É difícil nos encontrarmos com coisas que durem, que se perpetuem no tempo. As coisas, as representações na contemporaneidade, escoam pelas mãos. Essa é uma questão sobre a qual, de diferentes formas, distintos pensadores vêm advertindo e que qualificaram, ao seu modo e desde de diversas disciplinas, a debilidade de uma tradição que se amparava no Nome-do-Pai para sustentar uma certa unificação do laço social.

Lacan, efetivamente, o antecipou em seu ensino. Desde os Complexos Familiares, quando já falava do declínio da Imago Paterna, até a previsão que faz em 1967, na Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola, quando vaticinava que o destino dos mercados comuns iria aprofundar as formas de segregação. E é algo que já estamos vivendo. Sem dúvida, os fenômenos segregativos são evidentes, e se impõe, cada vez com maior clareza, a intolerância em relação ao outro. E no que está fundada esta intolerância que é o que está no fundo dos fenômenos de segregação? Em um sentido analítico é o rechaço ao gozo do Outro como tal, à forma que o Outro tem de gozar, a essa alteridade radical que concerne ao gozo.

E o que esse comum dos mercados produz, paradoxalmente, é um comum que não pode se articular a uma unidade, ainda que esse seja o empuxo. Mas se divide, se parte, se fragmenta, se organiza por formas de gozar que mudam. E que não estão orientadas por ideais simbólicos, mas sim por promessas de gozo. Há uma mudança na forma em que se começa a organizar a política. Se a velha política se organizava a partir dos grandes relatos e dos ideais e era, podemos dizer, uma política sustentada desde o simbólico, o que hoje se põe em jogo é a política de gozo que se organiza a partir de um fantasma comum e que produz, como efeitos, comunidades de gozo. Ao mesmo tempo em que se verifica uma queda do relato no discurso político e no discurso em termos generalizados, assistimos uma banalização do discurso, tanto na pobreza que encontramos, como na enunciação. Esse é um dado que verificamos na clínica cotidiana.

Sem dúvida, a queda dos grandes relatos não deixa de ter consequências sobre a queda do relato singular. Sobre o sujeito mesmo, empobrecido pela invasão de objeto, saturado por isso. Na clínica, nos encontramos cada vez com mais frequência com um grande obstáculo. O tratamento, enquanto tal, atravessado por essa nova ordem do discurso demostra que o Nome-do-Pai, embora não tenha perdido de todo a sua operatividade clínica, mostra que cada vez é mais complexo que o sujeito encontre as boas formas de servir-se dele. E não digo de orientar-se por ele. Refiro-me à dificuldade em encontrar uma forma mais ou menos razoável da qual servir-se dele. Inclusive essa grande alternativa clínica, da pluralização dos Nomes-do-Pai, não é tão fácil de ser operativa, que se sustente no tempo. A clínica contemporânea em um sentido geral, mostra-nos as enormes dificuldades dos sujeitos para poder construir uma narração, um relato que permita um certo grau de formalização simbólica. Antes começa a ser habitual uma clínica da passagem ao ato, uma clínica que tem uma relação direta com o gozo e seu imperativo, onde o convite à elaboração costuma ser rechaçado. É o imperativo de satisfação imediata o que orienta o campo da demanda, e sob essa perspectiva, a interpretação e o amparo simbólico em que nos orientávamos desde Freud, começam a demostrar que não têm nenhuma eficácia.

O sujeito contemporâneo não costuma apresentar-se em busca de um saber, ao contrário, apresenta-se com a demanda de um manual de instruções. Não costumam apresentar nenhum interessa pela causa que empurraria, que seria o motor da construção de um relato. E é frequente que nos encontremos com uma dificuldade para fazer os pacientes falarem, é preciso inventar as manobras para isso, vê-se isso com clareza na clínica com adolescentes, mas é extensivo a um amplo conjunto. Essa dificuldade de organização do relato é solidária com a invasão de gozo a que os corpos estão submetidos, de diferentes formas, é claro. Mas é um índice disso que afirmava Lacan: de que o gozo não comunica. Bem, a psicanálise opõe-se a esse gozo. Questiona-o, isso é o interessante do desafio, como fazemos para regular essa invasão na época do instantâneo, das coisas que se tornam fumaça, da ausência de tolerância e de paciência.

Provavelmente um dos substantivos mais apropriados para definir nossa época foi-nos brindado por Zygmunt Bauman qualificando-a como líquida, o que assinala muito bem a ausência de consistência.

Efetivamente, o que encontramos nas novas identidades que se propõem é que elas estão marcadas pelo transitório e pelo precário, por sua fugacidade. É, sem dúvida, necessário introduzir-se na variedade dos fenômenos que se desdobram e que se veiculam a partir dessas novas identidades, é preciso construir sua cartografia pela dispersão mesma com que se apresentam, como diz Éric Laurent, para discernir o que tratam de nomear.

No plano político, por exemplo, encontramo-nos com o auge das identidades nacionais e religiosas, tanto na Europa como nos Estados Unidos, que não podem ser reduzidas a um retorno às formas que haviam tomado os movimentos nacionais de massas que se desencadearam no século XX. Elas já não respondem à mesma lógica que a da Psicologia das Massas. Nesses movimentos encontramos características novas que concernem a uma forma de laço que deixou de estar vinculada só pela identificação ao líder e ao Ideal.

Por outro lado, vemos também uma demanda de nominação sob as formas das “etiquetas” que formam parte do cotidiano e que partem tanto dos meios de comunicação e das redes sociais quanto das burocracias políticas. Vemos surgir nomes, categorias, diagnósticos diante dos quais os sujeitos contemporâneos se vêm empuxados a escolher. Uma oferta massiva é proposta como chamariz bastante enganoso: são significantes que se oferecem como uma forma de nomear sua particularidade, é um movimento que apaga toda singularidade. A psicanálise, ao contrário, funciona na direção oposta, no sentido de que é uma aposta radical pela singularidade, pela maneira em que cada um é suscetível de encontrar um lugar no mundo, para além, podemos dizer assim, dessas ofertas que levam à ilusão de uma possível homogeneização de gozo sob a forma de um empuxo ao identitário.

Vivemos o mundo de uma babel de identidades. Identidades de gênero, identidades nacionais, identidades coletivas, embora frágeis, que duram um instante, fenômenos de massa evanescentes e sem memória que possa elaborá-los.

No plano clínico, vemos como os diagnósticos se multiplicam e pretendem conferir identidades ligadas às condições ou enfermidades do corpo. Tudo isso mostra uma multiplicação da noção de identidade. Observamos na clínica uma busca ansiosa de nomeações muito diversas que adquirem, frequentemente, a forma de uma reivindicação ou de uma exigência de reconhecimento. Algo que podemos ler, em última instância, como uma demanda de identificação.

Essas identidades como tentativa de nomeação não se inscrevem na mesma vertente que a identidade que, no fim, é sempre vazia. O que nós tratamos de nomear nesta cartografia está, antes, do lado do sintoma, de uma política do sintoma. E uma política do sintoma implica não responder à demanda de identificação em benefício de um isolamento da singularidade. Trata-se de ir na contramão das políticas de identidades para poder isolar o mais próprio, tanto no plano da clínica propriamente dita, quando na intervenção que a psicanálise pode fazer na política. Na disjunção que a psicanálise pode operar na hegemonia do discurso, até onde pode introduzir uma diferença.

Como é a leitura que Lacan faz dessa nova forma em que se organiza o laço social?

Lacan constrói uma nova Psicologia das Massas. Para Freud, a representação do líder na massa encarna não o pai do Édipo, senão o pai de Totem e Tabu, o mito da horda primitiva. Diz Freud: “O líder da massa continua a ser o temido pai primordial, a massa quer ainda ser dominada com força irrestrita, tem ânsia extrema de autoridade, ou, nas palavras de Le Bon, sede de submissão”. (FREUD, 2011, p. 91). Esse funcionamento está fundado sobre a base pulsional da identificação. O que não faz com que o laço social seja harmônico. Há o ilimitado que o pai da horda primitiva encarna. No laço social sempre há um princípio de ilimitado. Lacan produz um deslocamento deste pai, prescinde dele e verifica que há um regime distinto do laço social que se constrói a partir do fantasma e do gozo e não a partir da identificação. É uma articulação diferente da identificação. Porque o fantasma é, ao mesmo tempo, inscrição da perda do sujeito – ou seja, o que vem no lugar de uma ausência de identidade – e representação de gozo.

E vemos que a articulação do laço social com o modo de gozo, na ausência de líder, é evidente. Por exemplo, a partir dos modos de subjetivação que se socializam para compor as formas contemporâneas de viver a orientação sexual. Podemos pensar nas comunidades LGBTQ ou sadomasoquistas. Ou nas comunidades de gozo, que ampliam o vocabulário das identidades, os estilos de vida alternativos, os swingers, os trans de todo o tipo... Toda problemática do gênero podemos inscrever nesta dimensão de um laço social que se organiza em relação ao gozo etc.

Também estão presentes as comunidades que Éric Laurent chama “de desconcerto” e que se inscrevem na outra face do fantasma, do lado da perda de gozo e da demanda de reintegrá-lo. São as comunidades que se reúnem em praças, movimentos transversais, fenômenos políticos do tipo Podemos, com matizes diferentes o Cinco Estrelas na Itália. Ou as grandes manifestações espontâneas dos indignados que se estabelecem ao redor de um grito, de uma pura enunciação da perda de gozo. São comunidades de jovens universitários, urbanos e sem emprego, sem dúvida interessantes, mas que não encontram a enunciação que os represente, não há enunciados sólidos. É difícil articular um programa clássico de reivindicações comuns, dispersa-se, atomiza-se. O sujeito não pode inscrever-se em nenhum enunciado do Outro.

O laço social que se estabelece a partir do fantasma consuma também a articulação com o gozo. O corpo de que partem esses gritos de desespero, não é tanto sabedoria senão paixão. É um corpo que está atravessado por afetos poderosos, entre os quais a angústia é o mais poderoso de todos. Um corpo, para Lacan, implica pensá-lo em duas dimensões que são solidárias, o corpo do sujeito e o corpo político. É nesse sentido que Lacan diz que um corpo não é biológico, porque um corpo pode estar vivo ou pode estar morto. O corpo é o lugar, a única sede segura dos afetos e das paixões, tanto do corpo político quanto do corpo de cada um. As paixões políticas novas parecem surgir como acontecimento de corpos políticos novos, que vão se transformando. E que se enodam e desencadeiam, não pelo laço da identificação senão pelo acontecimento de corpo.

A partir daqui, trata-se de captar e poder operar o tipo de destino que toma o acontecimento de corpo, é uma questão clínica e política. Do lado da clínica, da prática analítica como tal, mostra que os efeitos das desidentificações dão lugar a uma relação distinta com o corpo, experimenta-se de outra maneira o campo dos afetos. Entretanto, não há que deixar de ser prudente, porque a liberação da identificação é diferente para cada sujeito e a caixa de ressonância disso, que é o corpo, toma direções absolutamente singulares. A prudência clínica sempre convida a pesar o que são os efeitos das quedas identificatórias no corpo de um sujeito. Porque pode realizar-se também uma aliança entre identificação e pulsão, uma carga de sentido absoluto que desata a pulsão, e especialmente a pulsão agressiva.

Nesse sentido, penso que é muito importante ter em conta o que é a teoria da sublimação no último ensino de Lacan. O acontecimento de corpo chama ao ato porque sua emergência mobiliza o afeto. A questão é a direção que isso toma. Porque ao final de seu ensino, Lacan toma a sublimação de um modo diferente a partir do sinthoma. A sublimação já não só se sustenta na definição do Seminário 7, entendida como elevar o objeto à dignidade da coisa. Senão que, no último ensino, transforma-se em elevar o eu à dignidade do sinthoma. E o interessante de pensar a sublimação desta maneira, em relação ao sinthoma, é que não só desloca a sublimação do campo do ideal, o que é sempre uma tentação, mas também, em relação ao que dizia antes, a sublimação implica uma pulsão agressiva, desencadeada pelo acontecimento de corpo, ou seja, pela promessa de gozo do fantasma posta em jogo. E essa carga é mais potente na medida em que mais saturada de sentido se encontra, o fenômeno do terrorismo religioso ilustra com precisão essa dimensão de fechamento do discurso sob o amparo do sentido absoluto.

Mas a sublimação se inscreve também sob o amparo da sapiência, do sentido que foge. De inventar algo ali onde não há sentido. E que isso faça laço de alguma maneira autêntica, nova.

As formas do comum que se produzem a partir do acontecimento de corpo são compatíveis com a sublimação em ambas as direções, tanto do lado da boa forma que não fixa nenhum destino para o gozo pela via do sentido e que dá lugar à reinvenção do laço com o outro e com a comunidade, como também do lado do afogamento sob o sentido que coagula a pulsão de morte do lado da loucura e do fanatismo. A partir dos acontecimentos de corpo, articula-se uma nova lógica do laço social que se afasta definitivamente da política de identidades. E a questão interessante é fazer bascular a coisa em direção ao sinthoma, inscrever as coisas, até onde se possa, para além das identidades. Uma política que permita esburacar as significações absolutas.

Bem, paro por aqui. Creio que haja muitas coisas ainda, e o interessante é que possamos conversar.      


NOTAS

1 Seminário apresentado durante a Atividade Preparatória ao XXII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano “Do vazio da identidade a uma política do sintoma”, realizada em Florianópolis, SC, nos dias 27 e 28 de julho de 2018, por iniciativa da EBP – Seção Santa Catarina. Tradução: Diego Cervelin e Flávia Cera.

REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. Psicologia das massas e análise do eu e outros textos (1920-1923). São Paulo: Companhia das Letras, 2011. v. 15. 

LACAN, Jacques. Formulações sobre a causalidade psíquica. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

_______. A direção do tratamento e os princípios do seu poder. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

MILLER, Jacques-Alain; CLÉRO, Jean Pierre; LOTTE, Linda. Lacan et la politique. Cités, n.16, p. 105-123, 2003/4.

_______.  A erótica do tempo. Latusa. Rio de Janeiro, Escola Brasileira de Psicanálise, n. Ed. Especial,  2000.

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