IDENTIFICAÇÃO, ACONTECIMENTO DE CORPO E LAÇO SOCIAL[1]


Oscar Ventura
AE, AME, Membro da ELP/AMP
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a contested public2018
a contested public - reginaldo cardoso

Neste testemunho aqui em Florianópolis inclinei-me para produzir um recorte, provavelmente para não enfadá-los com a repetição e para não me enfadar cedo demais de mim mesmo. Selecionei, então, algumas peças soltas do conjunto do tratamento, para colocar, junto com vocês, uma lupa sobre elas. E ainda que a lógica do testemunho não deixe de estar estendida, fiz bascular o fio condutor do tratamento  para poder localizar os momentos lógicos a partir dos quais, em minha experiência, deu-se um franqueamento, um momento de passe, esses flashes do tratamento que reacomodam o sujeito na perspectiva do real.

Por outro lado, trata-se de articular a esses momentos, a essas escansões do tratamento, o tema da identificação e do acontecimento de corpo tal como pude formulá-los na histoeria, ou seja, no relato que pude fazer do que para mim foi a experiência de análise.

Quanto ao tema da identificação, o conhecemos e sabemos que tem um papel decisivo na experiência de uma análise. Sabemos, também, o papel primário e fundamental que jogam as identificações na economia psíquica, como a partir delas o sujeito encontra as primeiras formas de nomeação que lhe advêm do Outro, dos traços do Outro, da voz e do olhar do Outro que se incorpora. Estamos, também, advertidos da estreita relação que a identificação tem com o amor e com o narcisismo.

É frequente encontrar na enunciação que nós, psicanalistas, temos sobre o tema da identificação uma espécie de carga negativa, no sentido de que as identificações são aquilo do que o sujeito teria que se desfazer, teria que franquear. E isso é verdadeiro sem dúvida. Toda a experiência da prática clínica o verifica. Mas não devemos esquecer, também, que tanto Freud como Lacan definem a identificação como um fenômeno irredutível. Ou seja, não é possível pensar um sujeito completamente desidentificado, seria a loucura, ou, pelo menos, a parte da loucura que não é a boa, que não interessa.

Mas sim, é possível pensar um sujeito advertido de como nele operaram as identificações, de uma maneira sempre singular. E poder dar conta de até que ponto o dispositivo de uma análise permite deslocar as identificações até deixá-las cair, destituí-las dos traços de gozo nos quais se fixaram. E até que ponto não.

Pude isolar, a partir de minha experiência, as sequências onde a queda das identificações teve um papel crucial. Não só no que tem a ver com os efeitos terapêuticos que pude experimentar na análise, que são um índice necessário. Mas mais profundamente no que concerne à minha formação, na forma de construção que tomou, pelo menos para mim, essa eleição estranha, melhor dizendo, atípica, sempre na borda que é o autorizar-se a ser um praticante da Psicanálise na orientação do ensino de Lacan.

Penso, também, que o que chamamos a clínica do passe e a transmissão que ela devolve à Escola não só ilumina o final, sem dúvida uma questão fundamental, senão que também é uma bússola para a comunidade ampla dos clínicos que se orientam pela prática da Psicanálise, seja qual for o momento em que se encontrem em suas análises quanto às causas que para cada um desencadearam uma autorização como praticantes.

O passe em nossa história mais ou menos recente, com seus impasses, com suas torções, com seus tempos, suas variações clínicas, epistêmicas e políticas, tem representado para mim, juntamente com a análise, o farol que permitiu que eu me orientasse na prática. Não é a única forma de transmissão, é claro. Mas sim, é a que fez eco em mim, no corpo que como analista me faz sustentar esse lugar no cotidiano. E é fundamentalmente o que me permitiu formalizar, até um certo ponto, o real que se encarna nessa decisão do sujeito que implica fazer-se, até onde se possa, suporte do discurso analítico.

Vou tomar, então, o tema da lógica do tratamento a partir da identificação. Por um lado, tratarei de poder transmitir com a maior precisão possível as consequências concretas, e das quais posso dar conta, do que o ato analítico tocou, e em algumas ocasiões reduziu e transformou, do gozo posto em jogo nos sintomas. E a função que neles cumpriam as identificações. Por outro lado, tentarei, também, definir os limites do que é uma queda identificatória, sobretudo no horizonte do final de análise, no tempo de concluir.

Terei como bússola desse testemunho, então, a identificação e seus avatares, por assim dizer. Tratarei de destacar como o dispositivo analítico operou sobre elas. E além do ajuste epistêmico onde podemos localizá-las, creio que o mais interessante que posso transmitir é a ressonância no corpo que produziram esses momentos nos quais se percebe que uma identificação já não se sustenta. E isso, efetivamente, não é sem a presença de um analista. Nesse sentido, estes movimentos representam tanto um analista concreto como o uso que o analisante faz do analista como instrumento. Como pude me servir dessa presença em benefício do que convinha ao sujeito da enunciação, em cada momento. E os impasses que me permitiu franquear. Desde o primeiro encontro com um analista desencadeado aos quatorze anos, até os diferentes tipos de franqueamentos que experimentei no devir de mais três análises.

Hoje posso dizer que no transcurso de todo esse tempo, sempre se tratou, ao fim e ao cabo, mais ou menos do mesmo. De como fazer para emancipar-me da servidão ao Outro, que em meu caso se declinava sob a forma de uma falsa relação de sujeito com a solidão, a angústia e o silêncio.

A insistência tenaz de um traço melancólico tingia minha subjetividade até o ponto de fazer da tristeza um parceiro, capaz de desrealizar a cotidianidade e converter a relação com o presente da vida num eclipse radical do sentido do mundo e das coisas que poderiam habitá-lo. E não me refiro aqui à perda, à fuga do sentido que poderia liberar-se do jugo de uma metonímia da significação. Mas à impostura de uma enunciação que empurrava, subitamente, a fechar questão sob o argumento de que o destino mortal, o horizonte de uma morte mais ou menos iminente, tinha a capacidade de abolir qualquer signo de alegria. A transitoriedade da satisfação sempre estava contaminada pela inexorável fixidez da fantasia.

No transcurso da gravidez, minha mãe muito precocemente é tomada por uma profunda depressão que vai assumindo um matiz cada vez mais acentuado na medida em que a gravidez avança. Entre os cinco e os seis meses, dado seu estado consulta um médico, o que desencadeia uma crise maior. O médico prescreve que, sob essas condições subjetivas, é melhor provocar um aborto, uma vez que seu prognóstico é de que as consequências do puerpério podem ser ainda piores para seu equilíbrio mental. E descreve que essa intervenção está mais do lado da indução de um parto que de outra técnica.

Foi pela via das coordenadas da minha gestação que recorto, do relato do Outro, o que será a frase que orientava minha maneira de habitar e de interpretar o mundo: “poderias não ter nascido”, este fragmento do que foi escutado se fixa como um S1. É a marca princeps que morde o vivo e que o atravessa em sua condição mortal. Nessa frase, se coagula também a identificação primária e fundamental. E é esse significante mestre o que aspira minha enunciação que se declinava em uma leitura trágica da existência.

Tentar encontrar a fórmula para me desfazer dessa impostura, dessa falta de autenticidade que produzia a tenacidade de uma posição melancólica foi o que definiu todo meu esforço analisante. Essa identificação também produz uma perturbação em toda a lógica da separação, instala uma dificuldade maior que concerne a uma disjunção na qual ficava aprisionado: ficar alienado ali, à mercê dessa identificação ou desaparecer sob a forma de um resto, abortado do Outro como objeto dejeto e desalojado da vida. Posso dizer, também, que a base de operação do supereu se instala a partir dessa conjuntura.

Daí em diante dois afetos: a angústia e a tristeza. Amparados nesta tela de fundo, dão conta de minha relação com o Outro. Por um lado, a tristeza é o afeto que insiste no relato e orienta o campo das identificações imaginárias que são subprodutos, por assim dizer, dessa identificação primária. E, por outro, a angústia que faz sua aparição ante a presença desse objeto resto que sou eu mesmo, encarnado nas formas que toma essa proliferação imaginária.

Houve quatro analistas, embora eu considere que haja uma só análise, a do analisante que se é. Cheguei ao primeiro em um estado de urgência aos quatorze anos. Tinha me convertido em alguém errático, desorientado, à beira da marginalidade e desafiando temerariamente o mundo, no limite da passagem ao ato. O impacto se produziu no transcurso da segunda sessão de análise de minha vida, com uma analista kleiniana, da qual conservo a melhor lembrança. Ali aconteceram duas coisas, um ato e uma interpretação. O ato, súbito, depois de uma única entrevista, foi o de convidar-me, sem delongas, a deitar no divã. Depois veio a explicitação da regra fundamental. Diante do imprevisto da situação o pensamento daquele adolescente foi: “essa aí me deixa sozinho”. Um momento de estupefação, sem dúvida. E a resposta imediata: o silêncio. Estava tratando de dizer alguma coisa quando a interpretação se fez ouvir: Mexia a perna ritmicamente, presa de meu estado, quando escuto: “seu movimento de pernas representa a prática da masturbação, já que o que ocorre é que as fantasias que minha pessoa despertou em você não encontram outra forma de expressar-se”. Enfim, não posso deter-me hoje nas consequências amplas... o que pretendo isolar aqui é seu efeito de verdade, selvagem, mas que acerta o alvo. O pensamento: essa aí me deixa sozinho”, veloz, antes de deitar-me no divã, tocava, sem que eu percebesse, o que era mais fundamental. Deixava o sujeito inerme, sumido na angústia. Havia uma conexão direta entre o fato de estar sozinho e desaparecer, conexão profundamente ignorada e que encarnava, efetivamente, a possibilidade fantasmática de ser destituído radicalmente do campo do Outro. Entretanto se produz aqui um primeiro deslocamento identificatório, é uma primeira comoção de S1. A morte como significante mestre fica velada ante a irrupção fulminante da questão sexual. E é isso que realmente me desperta e me faz esquecer minha obsessão por ela.

Detenho-me um instante nesta sequência, creio que vale a pena, porque teve a particularidade de instalar no tempo desse primeiro encontro analítico esse X que é o desejo do Outro. O que ela queria de mim? E é sob as coordenadas desse deslocamento, inadvertido naquele momento, que a Psicanálise começa a ser minha bússola desde então. Já não a abandonaria mais. Esse primeiro tempo, condensado nessa interpretação, consegue deslocar a morte como S1 privilegiado em benefício desse X que vinha presentificar o desejo do Outro.

Posso transmiti-lo como algo muito simples que se coagulava no binário vida-morte. Posso também dizer que uma significação se depreende dali, à qual, com o passar do tempo, pude dar um alcance esclarecedor. Permitiu-me captar um momento de passagem que vai do inútil da morte ao impossível do sexo, que é um impossível muito diferente do da morte. Posso dizer que comprei um bilhete direto da morte para a sexualidade, que incidiu radicalmente no destino de minha vida.

Posso resgatar um resto de saber que me permitiu captar, com mais precisão, o que ocorreu naquele momento. Algo que encarnei na análise e com o estudo do ensino de Lacan. Sempre havia me fascinado pelo momento no qual Lacan define o fim da análise como subjetivação da morte, sem dúvida um momento memorável que se depreende das primeiras marcas que Heidegger introduz no conjunto de seu ensino. Me parecia algo verdadeiramente impressionante. Subjetivar a morte, aceitá-la na medida do possível, sem dúvida era uma chave em meu caso no qual sempre estava presente a ameaça de ser abortado, a presença de um fim iminente. Mas Lacan também nos ensina, mais adiante, que com a morte, esse Amo absoluto, no final das contas há pouco a se fazer. Sua ausência de representação e sua inevitabilidade marcam um limite lógico. Tudo indica que o melhor é tratar de esquecê-la o máximo que se possa.

E, efetivamente, não é a morte a bússola onde se joga a partida de uma análise, ainda que sua presença esteja convocada pela estrutura mesma do sujeito. Mas a morte é algo que não falha, e por isso, talvez, não seja tão operativa clinicamente, tem uma eficácia limitada. Não é no território da morte, mas em outro lugar muito mais complexo, mas muito mais interessante também, que se joga a partida de uma análise. O mais radicalmente humano que está convocado na experiência analítica é o campo da sexualidade e do feminino. É ali onde reside o verdadeiro enigma. O espaço onde se podem encontrar as fórmulas para fazer algo mais ou menos razoável com a pulsão de morte. Para suportar da boa maneira, no meu caso desde a posição masculina, não a morte, mas aquilo onde habita uma falta de representação muito diferente que a da morte, e que se encontra em A/mulher (A barrado) e o gozo que ela veicula fora de qualquer lógica apreensível pelo aparato simbólico. É com esse real que me vi confrontado sem me dar conta naquele momento, sem ter a menor ideia. Nesse sentido, o deslocamento identificatório que vai do estar alienado ao S1 até o enigma da sexualidade inscreve uma marca radical no tempo. A partir dali o tempo foi escandido de maneira tal que tornou possível o futuro, isso que a identificação à morte negava. O que se impõe nessa eleição tão precoce é esse encontro radical com o enigma da sexualidade, o que permitiu, a partir daí, se inclinar o desejo em direção à psicanálise. Ao final dessa experiência há um ato a destacar. O transmito porque creio que ilustra, além dos benefícios concretos que obtive, o que ainda não havia sido tocado e que era a potência da fantasia sob a qual eu interpretava o mundo. Representa um resto privilegiado porque dá conta do que ainda havia por diante. Compro, por acaso, meu primeiro livro de psicanálise, sem ter a menor ideia do que comprava. É o agudo ensaio de Serge Leclaire, editado pela primeira vez em 1975 pela Seuil que se denomina Mata-se uma criança.

Parece que quando criança eu era alguém que dormia, comia e praticamente nunca chorava, um menino silencioso. Uma cena várias vezes relatada é a seguinte: costumava acontecer de minha mãe e minha avó, inquietas diante do silêncio, irem comprovar se algo andava mal, o temor confessado sob a voz trêmula da avó era verificar se eu ainda seguia com vida, se não estava morto...

No entanto, esse silêncio não me impedia de falar. Fundamentalmente a palavra se desprende da presença de meu avô materno, um tipo magnífico ao qual devo minha imersão precoce na literatura, na poesia, meu gosto pela história. Com ele aprendi a ler e a escrever, antes de ir para a escola.

Esse ser, nomeado pelo Outro como uma criança silenciosa, fixa o silêncio como outro dos significantes mestres. Identificar-me com o silêncio me permitia um refúgio para amortecer, pensava eu, o ruído do Outro. Um ruído que se encarnou em minha infância nas vozes familiares, em discussões que podiam beirar a ofensa, inclusive com traços de violência.

Mas, sobretudo, evocavam um destino de catástrofe, algo que se poderia sintetizar em: vai acontecer o pior.

Durante o transcurso de minha infância, bruscamente, a enunciação familiar báscula no sentido da desgraça. E o silêncio ao qual me identificava era um álibi para não objetar ao Outro em seu vozerio, silêncio cúmplice para gozar também, eu com eles, de uma desgraça iminente. Um silêncio amparado nessa espécie de falso amor que veicula a identificação.

De todo modo, desde muito cedo, a leitura e a escrita permitiram que eu me subtraísse do vozerio do Outro familiar. No entanto, isso não impedia que ambas estivessem também à mercê da tirania das identificações. E o vetor da identificação sempre tinha como meta os traços de gozo do Outro para alimentar-se.

Tomo um exemplo entre outros: um livro marcou minha saída da infância. O que me chamou primeiro a atenção, quando o tive nas mãos, foi o ano de sua edição, era o de meu nascimento. Depois fico fascinado por seu título: Heróis e Tumbas, que evocava para mim o binômio mais primário: vida e morte. Também isso se constituía em mais um engano porque pretender nomear vida-morte a partir de Heróis e Tumbas desalojava a vida já que não há herói que não esteja em sua tumba.

Fundamentalmente, fico tomado por um personagem central daquela novela - Martin – ao qual o gênio de Ernesto Sábato retrata como um melancólico e abúlico, filho de um pintor fracassado e de uma prostituta. Com esse estandarte entro na adolescência. E, claro, Martín é um dos heróis ao qual identificar-me. Ou seja, faço um deslocamento das identificações veiculadas pelo objeto voz alojadas no Outro que passam do vozerio familiar à voz que agora faz eco na leitura.

Acreditava que a leitura poderia introduzir-me em um cenário silencioso, já que era um dos recursos para fugir do vozerio, do ruído do mundo. Buscava o silêncio provavelmente como um ideal, como uma forma de encontrar uma identidade. Mas não podia achá-lo nem de um lado nem de outro. O silêncio absoluto provavelmente não existe. Ou existe como conjectura apenas, só neste Amo absoluto que é a morte. Desta maneira o silêncio ao qual aspirava me fugia, já que a morte não foi a opção, mas deixava a vida excessivamente invadida pela mortificação do objeto voz encarnado nos significantes mestres, pelas identificações coaguladas.

No tempo das duas primeiras análises essas identificações foram, até certo ponto, tocadas, reduzidas em suas vertentes mais imaginárias. Mas foi no transcurso da terceira análise que pude experimentar os efeitos e as consequências de uma queda identificatória fundamental que modifica a relação do sujeito com o gozo. E que esvazia a voz do Outro, tanto de seu ruído como do sentido que imprimia às identificações postas em jogo. Posso localizá-la num momento concreto a partir de interpretação que leva a marca do equívoco e que mobiliza o aparato de lalíngua. Aponta o coração do objeto que eu pretendia ser para o Outro.

Então, como se fez patente e que solução encontra, na análise, esse gozo mortificante, esse pathos da tristeza? Amplifico este momento já relatado em meu primeiro testemunho. Em uma sessão, referindo-me ao momento de meu nascimento, digo: “e então eles me têm, nasço”.

A declinação da voz da analista arranca a vírgula devolvendo-me um: “me têm asco”. Este movimento da análise toca e desestabiliza a identificação ao objeto dejeto, que é extraído junto com a longa série de sentidos com os quais estava recoberto. “Me tienen asco” advém como um significante insensato, que cai da cadeia e tem o efeito de desbaratar a impostura do traço melancólico. A tristeza, pura vitimização, é despejada de seu lugar imperativo.

Que resto de saber pude extrair disso? O que ocorreu a partir de uma interpretação concreta?

Houve, sem dúvida, um poderoso efeito terapêutico. Ao transformar-se o afeto, a alegria e o entusiasmo deram conta de uma nova posição. Mas, se posso dizer algo sobre a lógica desse momento, o que se tornou patente para mim foi um momento radical de destituição do Outro e do objeto nele alojado, uma experiência de solidão sem mortificação nenhuma. Porque o Outro diz o que eu digo exatamente, mas me deixa à mercê de um Outro que já não é Outro encarnado, mas um Outro de lalíngua que eu mesmo teço. E, efetivamente, não há maior solidão que a de se encontrar à mercê de sua própria relação com lalíngua. Mas essa solidão não é uma solidão trágica, posso inscrevê-la em meu caso do lado da Hilflosigkeit, do lado do que é a boa forma de desamparo. Um território, como diz Lacan, no qual já não há angústia. Aceitar de alguma maneira que se é atirado na vida sem nenhum tipo de compaixão pode ser não todo trágico. Algo da ordem da satisfação se põe em jogo quando o Outro é despojado de qualquer enunciação. Quando já não há mais traço ao qual identificar-se.

Se posso localizar um momento da passagem de analisante a analista é este. Ao tocar a identificação ao objeto dejeto e deixá-la cair. Um gozo, que parecia selado ao destino trágico, se deflaciona. E o destino, que acreditava firmemente amarrado, se torna pura incerteza. É dessa maneira que a prática me retornou, e me permito utilizar a metáfora de Imre Hertész: “Sem destino”. Sem destino para o analisante que se é, como sem destino para o analista que a gente diz ser. É um momento de captação radical da inexistência do Outro. Pude, a partir daí, experimentar a passagem que implica encarnar a posição de analista como Outro à de encarná-la como objeto. Em suas duas vertentes: a de ser o agente da causa de desejo e a de consentir com a leveza que significa deixar-se, como analista, ser jogado no lixo. Pode-se desaparecer sem morrer. Ao mesmo tempo, em que se mantém intacto um tremendo paradoxo, a firmeza da vida e sua alegria.

Penso essa interpretação, esse recorte concreto, como o momento privilegiado do devir analista. E considero, também, que sua emergência, ainda que responda à singularidade de meu caso, pode se inscrever como um empuxo a pensar, em cada um, sob que tipo de argumento analítico, extraído do tratamento, pode se localizar esse relâmpago no qual se decanta uma nova posição. Uma recolocação do corpo nas experiências que cada um dirige como analista. Se no transcurso da primeira e da segunda análises o tempo estava escandido por uma cronologia da existência, aqui se produz uma diluição do tempo e do sentido. Uma quebra radical do relato que precipita o momento de concluir.

Pude verificar como a experiência de esvaziamento do Outro me permitiu uma leveza inédita: o objeto voz transforma-se em outra coisa. As identificações ali alojadas evaporam- se. E isso também produz como efeito uma modificação do laço social. Torna-o mais relaxado, sem dúvida. Quero dizer que o laço social que se funda a partir da diluição das identificações implica um reconhecimento radical da alteridade do Outro. O gozo do Outro não é o gozo do Um. E essa diferença permite tomar a distância suficiente do Outro para que ela opere como registro fundamental no qual o laço social se sustenta. Uma versão muito distinta do que é o comum. Melhor dizendo, se organiza a partir do comum das solidões, uma a uma. A solidão que habita o humano produz um laço mais autêntico que a de um conjunto homogeneizado pela identificação.

Entretanto, esse não é um movimento puro. Na realidade, pelo menos eu o entendo assim, nenhum movimento de análise, por mais radical que seja, é puro. Ou seja, sem restos. Em meu caso, depois dessa sequência, depois de transitar um tempo sem analista, um acontecimento de corpo se precipita. É curioso: desencadeiam-se em mim “zumbidos”. Um ruído constante nos ouvidos que toma o corpo e invade o cotidiano. Inscreve-se no corpo o retorno do ruído para o qual pensava ter encontrado uma solução.

Isso precipita que volte a encontrar um analista. Dessa vez, eleito por um traço de sensibilidade que lhe atribuo e por sua extimidade com relação à língua materna. Esse acontecimento de corpo torna meu humor excessivamente variável, mais para depressivo. O ruído se torna um obstáculo. Uma primeira interpretação toca nisso e o enquadra na perspectiva da memória: “Você não pode esquecer”, é a resposta que encontro diante da minuciosidade do relato que construo saturado de sentido. O corolário dessa interpretação é um artigo que escrevo para um jornal e a que ponho o título de ”Como esquecer?”. E me esqueci do corpo e seus ruídos. A análise funcionava de outra maneira, advertido como estava do obstáculo das identificações.

Esse recorte implica um limite. A presença do analista faz objeção ao sentido que a lembrança faz deslizar na cadeia significante. Não há nenhum ciframento possível para o acontecimento de corpo. Faz-se com isso sinthome, no melhor dos casos. Entre outras conceitualizações possíveis penso o acontecimento de corpo como um meio, uma espécie de Aufghebum que implica a possibilidade, para cada um, de construir-se um escabelo à sua medida. Seja muita ou pouca a possibilidade de sublimação em cada sujeito e seja qual seja o destino dessa sublimação,

Se posso pensar uma lógica na qual encarnar a frase de Lacan de que a pulsão “é o eco no corpo do que há de um dizer”, é esta. E se materializa para mim em uma irrupção de gozo que carece de qualquer significação possível. Mas a diferença, aqui, efetivamente é notável: o objeto voz despojado das identificações às que estava ligado e que representavam a potência alienante de uma coalescência entre identificação e supereu mostra agora sua vacuidade. O ruído do zumbido evoca mais um espaço que me permito traduzir como um deslocamento que vai do Outro da linguagem, mortificante, ao Outro como corpo com o qual a gente tem que se arranjar sem garantia nenhuma. E que, até certo ponto, o que para mim é possível, libera a enunciação da viscosidade das identificações.

A análise se relançou da boa maneira, com uma resposta sublimatória a uma interpretação. E assim continuou até o seu final. As cartas estavam distribuídas e a perspectiva do passe no horizonte. Ainda assim, havia uma presença excessiva do Outro. Percebia-se na modulação depressiva de meu relato. Era curioso: fora da análise tinha uma posição mais para maníaca, ativa com o trabalho, com a escola, com a vida. Mas o relato de análise era mais para desolador, o mundo era um deserto. Meu gosto pela história, mais a memória, se inclinavam para frases do tipo: todo o tempo passado foi melhor. Não tinha que ter nascido nesta época: teria sido feliz se vivesse em outro tempo. O de Freud, por exemplo. E podia me estender em uma interpretação trágica e que pensava épica, da história da psicanálise. Idealizava personagens por seus traços de gozo mais que por suas produções que poderiam me apaixonar, heróis que não se sabe bem que martírios haviam sofrido.

Poderia deter-me nas vidas de tipos como Silberer, que se suicidou, Tausk, que se suicidou, Federn, que também se suicidou, o último Ferenczi que, ao final, declina até a loucura e a morte. Abraham, o rei da pulsão oral, engasgado com uma espinha de peixe, causa de sua morte. E se me voltava para meus ideais adolescentes apareciam: Janis Joplin, Jimmy Hendrix, Brian Jones...

Ao final de uma sessão e acreditando que essas histórias poderiam comover o analista, subsumi-lo na fascinação por esse gozo inútil, fazê-lo aliado das desgraças da humanidade, escuto uma frase amável, e ao mesmo tempo contundente: “Mas que vida de merda me relata você de toda essa gente!”. O primeiro impacto foi: ele não me compreende. Mas no transcorrer dos minutos posteriores a essa sessão se tornou patente para mim a serviço de quê eu fazia funcionar minha memória. E voltava a ficar só.

Essa interpretação, tanto por seu tom quanto pela ironia que transmite, me ensinou algo que não deixa de estar presente em minha prática. Adverte-me, sempre, de que não se pode deixar comover pela mão que pede auxilio quando a intenção dessa mão é tomar a do analista para arrastá-lo ao pântano do gozo. O analista, ao qual meu amor pretendia agarrar pelo lado da desgraça, se esquivava sutilmente. O Outro perdia consistência, definitivamente.

Por último, retomo um sonho de final de análise, também atravessado pelo equívoco. No sonho, depois de passar para o parapeito de um apartamento alto, transito num espaço no qual corro o risco de precipitar-me no vazio. Não sem vertigem, transito por essa via de cimento como um equilibrista. Até que chego a uma varanda à qual me agarro e que permite que me estabilize nela, ao mesmo tempo em que, por cima de mim, uma sombra, uma figura sem forma, se precipita no vazio. Quando vou averiguar o que é que havia caído, quem havia caído, uma voz anônima me devolve: “é sueco”. Ao me despertar fraciono o significante em su-eco (seu-eco).

Posso dizer que me dei conta de que existe a possibilidade de atirar o supereu e as identificações pela varanda. Enfim, atirar o supereu e as identificações pela janela é uma metáfora com a qual tento fazer-me entender, mas, certamente, merece uma mínima ampliação.

O supereu não é algo do qual a gente se livra facilmente, tampouco das identificações que a ele estão aderidas. Pelo menos em minha experiência, não entendo que seja algo que se possa eliminar. Melhor dizendo, penso que o final da análise, nesse sentido, é uma forma possível de estabelecer um novo contrato com o supereu. E esse contrato, esse novo pacto com o supereu e com o conjunto das identificações que atravessaram a cada um e o determinaram, pode chegar longe, na medida do que para cada um é longe.

No meu caso em que a tenacidade do traço melancólico era o refúgio preferido, o que se resolve em minha conversa com o supereu, digamos assim, é que o estabelecimento do dever que ele impõe se declina mais do lado de uma eleição do que de um imperativo.

Escolho estar aqui e em nenhuma outra parte. E isso é o que me permite estabelecer também uma relação de amor com o que se faz, com o que se é, por como se surpreende com um novo laço que se estabelece com o Outro e com os pequenos outros que o acompanham na viagem da vida. De um amor que tem a possibilidade de tornar-se Outro quando é despojado desse triturador do desejo que são as identificações.

O ruído da vida, encarnado no acontecimento de corpo, uma voz sem identidade alguma, contradiz e objeta o silêncio da pulsão de morte. E, por mais paradoxal que pareça, me dá a possibilidade de que o ato de escutar, para mim, possa se converter em uma satisfação.

Penso que só uma Escola na qual não se deixa de ser analisante permite o privilégio de dirigir-me assim, com esse grau de franqueza, a todos vocês.


[1] Testemunho de passe apresentado em Florianópolis, em julho de 2018, por ocasião do evento “Do vazio da identidade a uma política do sintoma”, preparatório ao XXII Encontro Brasileiro do Campo Freudiano.

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