O Inconsciente entre o Sonho e a Verdade

 

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Gustavo Dessal
Analista Membro da Escola (AME), membro da ELP/ AMP

Algumas semanas atrás, uma de minhas filhas, que é veterinária, me enviou um lindo vídeo de um polvo que foi filmado enquanto dormia. Ele dorme, e seu corpo muda de cores. Um caleidoscópio mágico e iridescente, um desfile de tons que deixam o expectador sem palavras. O polvo sonha. Segundo os biólogos, a metamorfose cromática acompanha as fases do sono. Com o que sonha um polvo? Sonhará que seus tentáculos se entrelaçam com os da fêmea por quem seu coração bate? Ou sonhará com o caranguejo rosado pelo qual se lambe e em seu sonho ele se vê devorando o objeto de seu desejo? O polvo sonha. Se os cientistas pretendem explicar o comportamento humano deduzindo-o do comportamento dos ratos, sinto-me plenamente autorizado a afirmar que o polvo sonha e que seu sonho é uma realização de desejos. Sinto-me plenamente autorizado a supor um desejo no polvo, embora não seja certo supor que ele tenha um inconsciente.

Qual é a validade que os sonhos têm no tratamento analítico? Vou tomar algumas referências teóricas, sem perder de vista que em todo momento falarei a partir da minha própria prática, como analista e como analisante. Porque ser analisante também faz parte da prática analítica, uma parte sem dúvida indispensável. Vocês sabem que ser analisante é mais do que apenas visitar um psicanalista. Isso, claro, é necessário, mas não é suficiente. Para ser um analisante é preciso contar com uma condição que nem sempre se cumpre. Portanto, não são todos os nossos pacientes que são analisantes. Alguns podem estar conosco por um certo tempo, inclusive um tempo considerável, e obter resultados que são satisfatórios tanto para eles quanto para nós mesmos. Mas não são exatamente analisantes. Para ser uma analisante, me parece que tem que estar disposto a consentir com o sujeito suposto saber, tem que ser um tolo do inconsciente. É assim que Lacan finaliza seu seminário “Os não tolos erram”. Ele diz isso de um modo muito bonito. Para se psicanalisar, é preciso estar apaixonado pelo inconsciente. Não é algo que acontece com todo mundo. Lacan diz: alguém pode optar por não se apaixonar pelo inconsciente – e é compreensível –, pois o inconsciente é um saber que incomoda. Sempre existiram resistências à psicanálise. As atuais não são maiores que as anteriores. Simplesmente são outras. Na época de Freud, a Associação de Mães Alemãs (vocês podem imaginar o perfil ideológico dessa associação) empreendeu todas as ações possíveis para solicitar a proibição da psicanálise, por considerá-la uma teoria e um método imorais, além de judaizantes. Hoje em dia, não a questionamos por esses motivos.

O paradigma contemporâneo não é muito favorável a estimular que as pessoas se enamorem de seu inconsciente. Temos que levar em conta que a afirmação de Lacan, que soa muito bem e parece entender-se com clareza, no fundo contém questões muito complexas. Enamorar-se de um saber que é incômodo é algo semelhante ao que acontece com qualquer parceiro: não é fácil amar nele aquilo que destoa de nossas identificações, de nossos ideais e de nosso modo de gozar. O amor, o verdadeiro amor, aquele que é capaz de transcender a dimensão narcisista para se dirigir ao outro em sua alteridade radical, não é algo que está ao alcance de qualquer um.

Do mesmo modo, também não é qualquer um que pode amar esse saber que, em um primeiro momento, não é muito amável, mas exatamente o contrário disso. Por isso, quando acontece, o mais frequente é que o sujeito se enamore de seu inconsciente pouco a pouco. Não costuma ser uma paixão, um amor à primeira vista, embora isso também possa acontecer. Mas são casos muito particulares. Em vez disso, a era atual incentiva as pessoas a se apaixonarem por aquilo que reafirma o seu bem-estar, que não põe em questão o gozo a que se está fixado, e fundamentalmente, que não o compromete a ceder nenhum pedacinho de sua satisfação. O sujeito, que permanece fundamentalmente um escravo e goza como tal mesmo que não saiba, tem prazer em acreditar que é mestre.

A vida atual consiste nisso, na crença de ser mestre de tudo, de poder escolher seu nome, seu gênero, sua orientação sexual, a qualidade de sua descendência, do mesmo modo que se escolhe algo no cardápio de um restaurante. Quando o sujeito se crê amo, é bastante difícil que possa se agradar com o sentimento de que há algo que nos determina, que existe um saber que governa uma parte fundamental de nossas ações.

E quando alguma circunstância da vida põe em xeque a crença de ser amo e o sujeito se decompõe um pouco porque foi invadido pela angústia, ou porque um sintoma se instala, então, o mundo contemporâneo põe à sua disposição uma série de recursos para remediar isso, sem ter que lidar com esse saber irritante que é o inconsciente. Nós conhecemos muito bem até que ponto essas soluções são feitas para que o sujeito possa retornar ao estado anterior, que é o estado de sonho. Como vocês sabem – e Lacan enfatizou isso durante toda sua vida –, para sonhar, não é preciso estar dormindo. E se há algo no mundo atual que prolifera cada vez mais, são as possibilidades narcóticas, a infinita oferta de soníferos que o sujeito tem à sua disposição. Portanto, enamorar-se do inconsciente, ou não se enamorar dele, é definitivamente uma posição ética. O que significa isso? Que o inconsciente não é um ser de pleno direito. Não é uma substância. Não é um ente. O inconsciente só se torna existente com a condição de que o sujeito o faça existir na transferência. O inconsciente real não espera a análise para existir, mas, ao mesmo tempo, pode-se padecer dele até o máximo sofrimento sem que isso coloque o sofredor no caminho de querer saber.

Sem dúvida, enquanto clássica formação do inconsciente, do inconsciente tal qual Freud descobriu e teorizou, o inconsciente que Lacan elaborou em termos de um saber não sabido, o sonho constitui uma parte fundamental da experiência de uma análise. Aqui devo introduzir de imediato uma matização: o que acabo de dizer não tem uma validade geral. Há sujeitos que não costumam trazer seus sonhos para a análise, simplesmente porque não se recordam deles. E não se recordam porque não fazem transferência com eles. A vida onírica não tem a mesma intensidade para todos. Pelo contrário, existem muitos exemplos de tratamentos em que os sonhos são muito importantes, traçam uma direção, medem a verdade que está em jogo. Imediatamente, me vem à memória uma paciente psicótica, uma daquelas psicoses que costumamos chamar de ordinárias, para quem seus longos anos de análise estavam focados na atividade dos sonhos. Para ela, a análise teria sido impossível sem os sonhos. Eu nunca precisei interpretá-los, pois ela mesma executava essa tarefa seguindo um método hermenêutico que proporcionava imenso alívio ao seu mal-estar. Toda vez que algo em sua vida a desestabilizava, confiava que um sonho viesse em seu socorro, trazendo um sentido pacificador necessário. Suas interpretações, fundamentalmente baseada nos elementos do simbolismo imaginário que o conhecimento popular geralmente dá aos sonhos, foram para ela o preenchimento de sentido que lhe permitia se recuperar mesmo quando ela se sentia prestes a ser invadida pela proximidade de um real perseguidor. Sua confiança no valor curativo dos sonhos era tamanha que, em alguns momentos de angústia, podia dizer coisas como: “espero que hoje à noite o sonho venha me iluminar” ou “isso não acontecerá até que eu tenha um sonho”. Na verdade, mais do que o sonho em si, ou melhor, seu relato, o que produzia esse efeito era o fato de que, sob transferência, ela se entregou ao trabalho de decifrá-lo. Um dado não menos importante é que a maioria dos argumentos oníricos girava em torno do rio em que vivera na infância. Tendo nascido em ambiente rural, os significantes da natureza eram uma parte substancial de sua história. O rio fez para ela as vezes de uma estrada principal, um Nome do Pai que lhe permitiu que se desenvolvesse na vida e que os sonhos o aproximavam quando as coisas ficaram difíceis. Através do rio e outros significantes da natureza, ela fabricou um inconsciente e, com esse inconsciente funcionava no mundo. Não estava completamente desabonada do inconsciente, porque, para alguns, natureza é, em suma, uma forma de sujeito suposto saber. Ela era tributária desse saber que ordenava sua existência e de cuja verdade nunca poderia duvidar. Os sonhos eram os porta-vozes do Outro que não engana, diferente da vida cotidiana, na qual a qualquer momento ela poderia se sentir vítima da mentira.

Pessoalmente, acho que o sonho e sua interpretação continuam sendo uma parte fundamental do tratamento analítico. Sua validade não pode ser questionada, a menos que consideremos que a psicanálise é uma disciplina que se desenvolve em uma direção progressiva, e que, como se fosse uma técnica, tem uma evolução pela qual o novo torna caduco o anterior. Não existe isso na psicanálise. O primeiro Freud e o primeiro Lacan permanecem tão atuais quanto os subsequentes e nosso maior desafio é não perder de vista como articular o caleidoscópio de suas elaborações. Portanto, quando afirmo que o sonho e sua interpretação continuam sendo uma parte fundamental do tratamento analítico, devo acrescentar que sua função nem sempre é a mesma. A fórmula geral do sonho como realização de desejos (Wunshrerfüllung, o termo Erfüllung não é sinônimo de Befriedigung, que significa “satisfação”), cuja validade não discuto, tem suas variações. Sabemos que o próprio Freud estava inclinado a considerar isso, por exemplo, no caso de sonhos traumáticos. Ele se perguntou se esses sonhos questionavam sua teoria, ou mostravam que o sonho é uma formação que é governada pela lógica do não-todo: nem todos os sonhos são interpretáveis e nem todos os sonhos são realização de desejo. A isso, devemos acrescentar algo mais: todo sonho é composto de três estádios. O primeiro é o processo de fabricar, fazer o sonho. Eu não preciso voltar a isso, porque vocês sabem muito bem como isso sucede. Embora Freud tenha conseguido reconstruir os processos metapsicológicos da elaboração onírica, a verdade é que não sabemos grande coisa do sonho como um processo que ocorre enquanto dormimos. Nós temos acesso ao sonho enquanto o sonhador nos conta algo dele e sabemos que, para os sonhos, a memória geralmente é fugaz. É um bom exemplo do caráter pulsátil do inconsciente: uma vez aberto, fecha novamente quase sem nos dar tempo. Por isso, frequentemente, a memória do sonho nos escapa. Freud nunca recomendou fazer nada para impedir isso. Ele afirmou que anotar os sonhos para não esquecer não acrescenta muito ao processo analítico, mas ao contrário. O escrito – e, claro, me refiro a esse sentido de “o escrito” – nesse caso, tem o valor de uma resistência. Não nos dá nenhuma aproximação à verdade. É muito semelhante ao que atualmente acontece com a mensagens do WhatsApp, quando o analisante deseja ler textualmente o que alguém escreveu para ele. Nem sempre posso evitá-lo, mas geralmente tento solicitar ao paciente que não leia, mas que use suas próprias palavras e não me recite a mensagem, mas diga-me o que ele lembrar. O terceiro estágio é do sonho em transferência. Claro, contar a alguém um sonho é importante. Um dos meus analisantes, para quem sua esposa é seu maior e melhor sintoma, nunca deixa de relatar a ela seus sonhos. Como sempre, ela não é um sintoma desse homem por acaso, suas habilidades de intérprete estão realmente acertadas, a ponto de eu lhe dizer em algum momento que ele tem dois analistas. Isso o fez rir muito, embora meu comentário tenha sido realmente uma intervenção na transferência. Com efeito, o analisante tem dois analistas. A esposa dele é, antes de mim, o sujeito suposto saber por antonomásia. Não é incomum. Quando ela é sintoma de um homem, não se deve surpreender que ela entende seu inconsciente melhor que ele mesmo. Portanto, nunca interpreto os sonhos desse analisante. Quando me relata algum, o fundamental é que a interpretação dada por sua esposa já operou. O importante aqui não é qual interpretação, seja ou não a que dá a verdade sobre o seu inconsciente, uma vez que a verdade que em tudo isso nos interessa ​​é a função que ela tem e que ele demonstra na transferência. O problema é que, como toda verdade, só pode meio dizer o real e é por esse motivo que seus terrores hipocondríacos ele os dirige a mim, não exclusivamente, pois, como vocês podem imaginar, primeiro passam por uma longa lista de médicos, mas finalmente é o que acaba se estabelecendo na transferência.

Ao falar sobre o uso de sonhos no tratamento, ou seja, sobre os sonhos sob transferência, Freud alerta que, mesmo sendo uma formação do inconsciente, o relato de um sonho e sua demanda de interpretação podem atuar como resistência. É o caso que um dos meus analisantes chamou de, com muito senso de humor, sonhos cinematográficos, verdadeiras superproduções de conteúdo narrativo muito longo, com aventuras incríveis e inúmeros personagens. Durante uma primeira etapa de sua análise, o relato dos sonhos levava um tempo que era preciso interromper. O corte da sessão não tinha a intenção de desprender um significante amo, pois era impossível distingui-lo nessa profusão de sentidos, mas privar o sujeito de sua gozosa satisfação fálica. Foi em um segundo tempo que os sonhos começaram a recuperar uma relação com o inconsciente, isto é, quando seu valor de gozo na transferência pode ser reduzido. À medida que a análise prosseguia, a produção onírica diminuiu até converter-se em restos sem sentido, fragmentos voláteis de imagens, ou mesmo apenas a memória de uma sensação indefinida. Não é estranho a toda essa mutação o fato de o analisante ter dito no primeiro dia que seu sintoma fundamental era sua compulsão por mentir. Um caso verdadeiramente interessante, pois, como esperado, a mentira logo se tornou o protagonista da transferência. Não me refiro aqui à verdade mentirosa que todos conhecemos graças a Lacan, ao fato de que o inconsciente mente sobre o real, e que mentir sobre o real é a função do inconsciente como intérprete. O sujeito mentia conscientemente e, desse modo, me punha à prova.

Do seu jeito, ele introduziu o famoso paradoxo que Lacan analisa em várias ocasiões. Como escutar esse “eu minto”? Com todas as diferenças, essa pequena vinheta me permite tomar o famoso exemplo da jovem homossexual analisada por Freud e a importância crucial que teve um sonho no desenvolvimento desse tratamento. Aquele sonho que foi interpretado por Freud como um desejo de enganar, como um desejo que transferiu para a análise a relação hostil da analisante com a figura paterna. Nesse sentido, e seguindo o próprio Freud, Lacan nos lembra da necessidade de distinguir o sonho como tal, da função que cumpre em determinado momento da transferência: “um sonho que se produz no decorrer de uma análise comporta sempre uma certa direção para o analista, e essa direção nem sempre é, obrigatoriamente, a direção inconsciente” (LACAN, 1995 [1956-1957], p. 137). O próprio Freud alerta que o sonho e o inconsciente não são totalmente equivalentes:

O sonho não é o “inconsciente”, é o molde em que pôde ser refundido, graças ao favorecimento do estado de sono, um pensamento descartado do pré-consciente ou mesmo do consciente da vida desperta [...] Na nossa garota, a intenção de me induzir ao erro, como costumava fazer com o pai, vinha certamente do pré-consciente, se não fosse mesmo consciente; pôde então prevalecer ao ligar-se com o desejo inconsciente de agradar ao pai (ou substituto do pai), e assim criou um sonho mentiroso. As duas intenções, enganar o pai e agradar ao pai, vêm do mesmo complexo; a primeira nasceu da repressão da segunda [...] (FREUD, 2011 [1920], p. 141).

É realmente incrível como Freud, tendo na mão o eixo do que acontece, já que nos mostrou todos os elementos em jogo, fique confuso ao ponto de se antecipar – contrariamente ao que aconteceu no caso Dora, anos antes – e de, ele mesmo, pôr fim ao tratamento. Lacan vai apontar isso com grande perspicácia: “o que se expressa no sonho deve ser concebido pura e simplesmente na perspectiva da tapeação, isto é, na sua intencionalização pré-consciente?” (LACAN, idem). Duplamente incrível, já que desde há muito tempo Freud tem a chave de como também na mentira – fundamentalmente nela – pode-se meio-dizer a verdade. Ele escreveu sobre isso um belo texto, publicado em 1913 (sete anos antes do caso da jovem homossexual), intitulado “Duas mentiras infantis” (FREUD, 2010, pp. 317-323). Curiosamente, as duas vinhetas clínicas que Freud nos conta nesse artigo correspondem aos casos de duas mulheres que na infância mantiveram um intenso apego amoroso ao pai, um amor que, em determinado momento, é afetado pela decepção em um e pela descoberta da castração paterna em outro. O que acontece com a jovem homossexual – e Freud vê isso claramente – é que, em um determinado momento da reedição do Complexo de Édipo, há uma queda do pai. De fato, quando ela se joga no fosso – passagem ao ato que tem o significado de “dar à luz” –, não poderíamos também interpretar isso como algo que o sujeito realiza colocando em ato sua identificação ao pai em sua queda? Voltando ao sonho, Lacan nos diz:

o que vemos ser formulado? Sem dúvida, estamos aí numa dialética de tapeação, mas o que se formula no inconsciente [...] é, referido ao significante, aquilo que foi desviado na origem [...] a promessa sobre a qual se funda a entrada na menina no complexo de Édipo. Foi daí que partiu a posição, e articula-se no sonho uma situação que satisfaz a essa promessa (LACAN, idem).

Mas na medida em que o objeto da demanda é sempre impróprio para satisfazer o desejo, como não haveríamos de reconhecer no sonho da jovem homossexual o desejo cuja mensagem Freud recebeu de forma invertida, o desejo de que o desejo do Outro permaneça insatisfeito? Por outro lado, por que haveríamos de nos surpreender que, através do engano, se possa dizer a verdade, se o próprio Freud desde o início nos assegurava que o inconsciente não está regido pela lei da contradição? “O inconsciente preserva uma verdade e, se pressionado, pode se colocar a mentir com os meios que tem”, diz Lacan em seu seminário em 21 de junho de 1967, e o sonho pode ser um desses meios, o que confirma que não há outra resistência senão a do analista.

Isso me permite voltar ao exemplo da pequena mitomania neurótica do analisante de quem lhes falei um momento atrás. Na infância, ele fez seus amigos e colegas de escola acreditarem que estava ficando cego. Foi a primeira mentira sustentada ao longo do tempo e, a partir de então, inaugurou-se uma sucessão de figuras imaginárias de castração, todas ligadas à doença e à ameaça de integridade física. Ele gozava do fato de todos acreditarem nele. Que a mãe fechasse os olhos para a homossexualidade do marido encontrou na cegueira simulada do filho a maneira de dar-se a ver. Se todo casamento é um engano recíproco, esse era o dobro, de tal de modo que, já quando adulto, se viu afetado por uma doença real séria, a posição fantasmática do sujeito foi seriamente tocada e a angústia não demorou muito a levá-lo a iniciar uma longa análise. O que desencadeou a angústia não foi tanto que essa castração era mais real que as outras, mas o fato de não poder defender-se dela usando o engano, que ele exercia como uma satisfação exibicionista.

Como já mencionei, seus sonhos foram produzidos na transferência como uma mostração destinada a me fascinar, a abrir meus olhos para a profusão de elementos fantásticos que compunham um relato interminável e que eu não pude deixar de considerar como um fechamento do inconsciente. E como ele conhecia a teoria psicanalítica muito bem, seus sonhos me ofereciam todo o material do bom analisante, aquele que nos presenteia as melhores peças, imaginando que poderiam satisfazer nossa demanda. No relato de suas produções oníricas desfilaram o Édipo, a rivalidade com o pai, os desejos de morte, a sexualidade infantil, as fantasias incestuosas, o todo e o não-todo. Por trás dessa outra cena, ele se protegia e gozava da captura hipnótica do Outro.

Mas, ao mesmo tempo, esses sonhos que na transferência foram produzidos na direção da mentira se transformaram em outra coisa quando um dia eu disse a ele que, se sua mãe havia se feito de tonta, ele estava tentando dar uma de esperto. A partir desse momento, e após um acesso de angústia que durou um tempo, os sonhos não apenas reduziram na extensão e na espetaculosidade da narrativa, mas se tornaram enigmáticos. Sua interpretação deixou de ter importância e, ao mesmo tempo, o exibicionismo de sua castração imaginária foi reduzido. Os restos desse prazer foram sublimados em uma atividade artística que ele sempre adiou, mas agora encontrou a força libidinal para entrar em movimento.

Eu não gostaria de terminar esta introdução freudiana da relação entre sonho, inconsciente e verdade sem mencionar pelo menos o que os sonhos significaram na minha experiência como analisante. Se é verdade que o sonho protege o desejo de dormir, um desejo que, como Lacan enfatiza em muitos lugares, é algo diferente da necessidade de dormir (vou falar disso um pouco mais na minha segunda conferência), no meu caso essa função sempre se cumpriu quase sem exceções. Do sonho como realização de desejos, não posso dizer que teve um papel essencial na minha análise, mas sim os pesadelos, quase as únicas formações oníricas que recordava com nitidez, começando pela primeira delas, em uma idade muito jovem, quando eu acordei angustiado. No hall de entrada do prédio onde passei minha infância, havia dois grandes espelhos de frente um para o outro. Essa conformação produzia o clássico efeito óptico da multiplicação infinita do reflexo da minha imagem. Era algo que não me inquietava, mas que despertava minha curiosidade. Com três ou quatro anos de idade, eclodiu um pesadelo cujo conteúdo se repetiu por um longo tempo. Nele, eu estava naquele hall, olhei o espelho, e esse efeito multiplicador da imagem que, na realidade diurna, foi divertido para mim, se tornou um sentimento claustrofóbico. Eu era literalmente sugado por essa infinitude sem limites, e toda a atmosfera do sonho expressava uma terrível solidão. O espaço fechado, as paredes completamente brancas sem portas e o abismo do espelho desencadeavam um verdadeiro terror, que, no entanto, não levou a nenhuma das fobias mais ou menos comuns que geralmente afetam crianças dessa idade. Talvez uma das experiências mais interessantes em matéria de sonhos seja a possibilidade, já sendo adultos, de poder levar à análise a memória de um sonho de infância, isto é, de um sonho cuja criação não ocorreu sob transferência, embora sem dúvida a transferência não deixará de estar envolvida quando contamos esse sonho em uma análise. Não vou me estender dizendo a interpretação desse pesadelo. Apenas vou mencionar que ela me desvelou o papel do olhar, um olhar que colocou pela primeira vez em jogo a questão sobre aquilo que eu era para desejo do Outro, um olhar onde o amor e a angústia se entrelaçavam sem palavras, determinando o curso posterior da minha fantasia inconsciente, que acabaria se juntando à contingência de um encontro que mudaria minha vida.

Não é indispensável ser psicanalista para interpretar um sonho analiticamente. Pessoalmente, e com isso terei que terminar esta primeira conferência, acho que a maior evidência da qualidade literária de um autor se manifesta na verossimilhança com que ele pode escrever o texto de um sonho e sua análise subsequente. Em seu comovente livro Patrimônio, que é a crônica da doença e morte de seu pai, Philip Roth relata um sonho. Ele estava em um porto. Ele era uma criança cercada por outras crianças. Um barco velho da marinha, despojado de seu armamento e fora de serviço, lentamente se aproximava da costa. Era uma imagem silenciosa, espectral, fantasmagórica. O sonho tornou-se insuportável e ele acordou. “Não é que meu pai estivesse no navio, mas o navio era meu pai [...] Eu continuei na cama após as primeiras luzes, pensando em como toda a história da família foi resumida naquele fragmento onírico do cinema mudo: todos os temas de sua vida estavam nele encapsulados, tudo que tinha algum significado para ele e para mim [...] O sonho me dizia que – não nos meus livros ou na minha vida – pelo menos nos meus sonhos eu permaneceria para sempre o filho pequeno do meu pai, com a consciência de um filho pequeno, e que ele permaneceria vivo não apenas como meu pai, mas como pai, em permanente julgamento de todas as minhas ações”.
Como Freud assegurou em sua obra, o desejo é sempre um desejo infantil e indestrutível.


REFERÊNCIAS

FREUD, Sigmund. Duas mentiras infantis [1913]. In: ___. Obras completas. Volume 10. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, pp. 317-323.
___. Sobre a psicogênese de um caso de homossexualidade feminina [1920]. In: ___. Obras completas. Volume 15 [1920-1923]. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, pp. 114-149.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 4 – a relação de objeto [1956-1957]. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
___. O Seminário, livro 14 – a lógica da fantasia [1966-1967]. Inédito.
ROTH, Philip. Patrimônio: uma história real. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

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