SOBRE O ÓDIO[1]
Oscar Reymundo
AP, Membro da EBP e da AMP
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florianópolis, 2018 - tatiane Fuggi
Agradeço este convite e esta oportunidade para falar com vocês sobre questões tão complexas como são as manifestações de ódio que, nestes tempos, constituem um fenômeno social de marcada presença na cultura que interpela, entre outras disciplinas, a psicanálise e também os psicanalistas, e nos põe a trabalho na elucidação do real em jogo nesta contemporaneidade, uma vez que esse fenômeno se apresenta como um grande mal-estar que produz efeitos graves do ponto de vista da convivência em sociedade. Podemos pensar que se trata de um sintoma social que se manifesta através de atos que corroem os laços sociais fazendo emergir o pior, quer dizer, dando lugar a manifestações de violência que são, precisamente, as manifestações desses momentos em que a palavra falha, em que a palavra se demite porque não há mais nada para se dizer e, então, precipita o ato. Assim, no ato de violência há uma suspensão do pacto simbólico, pacto que se faz com palavras. Nesse sentido, o ato violento está fora de todo discurso. Estou me referindo ao ódio enquanto afeto que, nas condições sócio-políticas atuais, pareceria, em muitos casos, ultrapassar os limites extremos do simbólico e dirigir-se até os confins da fala.
Proponho de início não confundirmos o ódio enquanto afeto com o ato violento. No ódio há um sujeito; na passagem ao ato violento o sujeito, ou melhor, o ser falante fica em suspenso. Trata-se de elementos heterogêneos, muito embora hoje pipoquem pela cidade afora situações alarmantes que põem em risco o convívio em democracia e nas quais o ódio conduz a atos de extermínio do que aparece como inassimilável e insuportável para a satisfação de alguém ou de alguns. O assassinato da vereadora Marielle Franco, no Rio de Janeiro, é um exemplo patético dessa ultrapassagem do campo do simbólico para o real do ato. Contudo, ódio e ato violento não são sinônimos.
Quando na psicanálise abordamos a questão do ódio há, geralmente, uma oscilação entre duas tendências, uma na qual a ênfase está colocada nos fenômenos produzidos pelo ódio e outra voltada para a atenção a isso que nomeamos dizendo que o ódio é de estrutura na constituição subjetiva. Vou fazer um breve percurso pelo pensamento freudiano e lacaniano com relação ao ódio como paixão inerente à própria constituição do eu e à própria constituição subjetiva para depois, em um segundo momento, refletir sobre as manifestações atuais do ódio e da agressividade.
Faz parte do senso comum pensarmos o amor e o ódio como sendo duas faces de uma mesma moeda. A experiência afetiva da ambivalência, quer dizer, a experiência de sermos capazes de odiar alguém que amamos é tomada pelo senso comum como a evidência de que afetos seriam complementares, constituiriam uma unidade, como a moeda. Mas Freud, no seu texto Pulsões e seus destinos, de 1915, já nos alertava acerca de que o amor e o ódio não são afetos complementares, que têm origens diversas e que cada um passou pelo seu próprio e diferenciado desenvolvimento. E junto com isto, ele nos disse também que haveria entre esses afetos um descompasso temporal, uma vez que o ódio seria anterior ao amor. Colocada deste jeito, a questão do ódio nos apresenta alguns problemas teóricos.
Com relação ao ódio surgir antes do amor, nesse mesmo texto Freud esclarece que esse descompasso temporal está referido à relação com o objeto, quer dizer, odiaríamos o objeto antes de amá-lo. Devemos reconhecer que esta afirmação de Freud apresenta algumas questões pouco claras sobre o objeto e a relação com o objeto. Poderíamos perguntar, neste ponto, como surgiu o objeto e, mais ainda, como surgiu o eu. Para quem o outro seria um objeto amado ou odiado? Se acompanharmos com atenção o texto freudiano, nos depararemos com que o próprio Freud não continua sustentando a anterioridade do ódio em relação ao amor. Há sim algo da temporalidade que está em jogo e que Freud tenta situar, mesmo com dificuldades. Mas podemos dizer que, finalmente, seu ponto de partida não é esse, que, a partir de um momento do texto há uma virada que permite pensar que a questão do antes o ódio e depois o amor não está bem colocada. O que permite esse ponto de virada é que Freud (2004, p. 158) diz: “o eu só ama a si mesmo e permanece indiferente para com o mundo externo”. Uma referência ambígua, sem sombra de dúvidas, que permite duas leituras. Primeira leitura: haveria uma unidade egóica primordial, fechada no amor a si mesmo e no rechaço ao que é externo. Isso é o que Freud chamou de narcisismo primário. Segunda leitura: o próprio Freud produz um abalo na sua visão do narcisismo primário e nos mostra uma relação bem mais complexa entre mundo interno e externo, uma vez que essa diferenciação não é inata, nem cai do céu. Ela tem que ser realizada e não há garantia nenhuma a respeito de sua realização. Anos mais tarde, será Lacan quem decididamente recusa a ideia de uma unidade primordial, quer dizer que recusa a existência de um narcisismo primário, inato, natural, herdado, e se interroga acerca de como seria possível um sujeito amar a si mesmo antes de que qualquer distinção entre dentro e fora tenha permitido isolar um objeto. A conclusão à qual Lacan chega acaba mesmo com a ideia de narcisismo primário, fazendo uma ressalva acerca do emprego do termo ‘amor’ para qualificar o afeto próprio desse momento constitucional. Decididamente a questão do aparecimento do ódio na psicanálise não continuou pela via dessa tentativa de explicá-lo a partir de um elemento exterior que viria interromper um suposto idílio do eu consigo próprio.
Abre-se assim, na teoria psicanalítica, o momento de situar a emergência tanto do mundo externo quanto do interno. Nesse sentido, há uma passagem muito interessante onde Freud (2004, p. 159) diz o seguinte: “O mundo externo é decomposto em uma parcela prazerosa que o indivíduo incorpora em si, e um resto que lhe parece estranho. De seu próprio eu ele extraiu uma parte que expeliu para o mundo externo e que passa a sentir como hostil.”
Digamos que para abordar o afeto do ódio esta passagem é muito importante. Aqui Freud nos fala de um ato fundacional, isto é, uma expulsão fundadora a partir da qual surge tanto a estranha e hostil alteridade, o Outro hostil, vai dizer Lacan, quanto a internalização do mundo exterior. Precisamente, nesse ato constitutivo do eu, a presença hostil expelida, a parte expelida com ódio, faz parte do próprio sujeito, não do mundo externo. Ou seja, o primeiro intercâmbio com o mundo externo do pequeno humano surge da expulsão de um excesso interno insuportável e impossível de nomear. Em resumo, seria localizar no mundo externo o que internamente se torna insuportável. Vejamos, então, que, depois de várias marchas e contramarchas, Freud conclui que o ódio não deve ser pensado simplesmente como uma reação ao que é externo e produz desprazer. Já em 1915, ele alertava sobre o fato de o ódio ao estranho ameaçador ser constitutivo do próprio eu. Esse estranho ameaçador é lançado para o mundo, mas faz parte de um insuportável do próprio indivíduo. Há um filme intitulado O estranho que nós amamos, aqui se trata do estranho que odiamos.
Agora cabe perguntar, então, de que maneira essa parte expelida e vivenciada como externa e hostil perfaz seu retorno, isto é, volta para o sujeito. Aprendemos com Lacan a diferenciar os registros imaginário e simbólico para melhor situar o que com Freud chamávamos de relação, sempre muito instável e precária. Da relação imaginária vamos dizer que se caracteriza por ser uma relação tensa de interdependência entre o eu e o outro que constitui uma espécie de espiral na qual a percepção da unidade sempre vacila. Isto acontece em toda relação: a ilusão de “eu e tu” podermos constituir uma unidade à qual nenhuma perturbação iria abalar, que não se sustenta por muito tempo. Como todos sabemos pela própria experiência, essa unidade constitui uma miragem que sempre vacila perante o surgimento da diferença. Seja a diferença em relação ao desejo, seja a diferença em relação ao lugar que o outro ocupa no amor, seja a diferença no modo de gozar do corpo próprio e do corpo do outro, mas sempre que a diferença aparece, a unidade imaginária vacila. Digamos que a ilusão de unidade inabalável se sustenta até que algo estranho, incompreensível, impossível de situar segundo as próprias coordenadas do eu, aparece com seu efeito desestabilizador. O que não se encaixa no eu é expelido para o mundo externo e retorna como tendo partido, imaginariamente, do outro, produzindo um efeito hostil que podemos sintetizar dizendo “ou eu ou você”. Temos, então, a dimensão paranoide, de rivalidade, própria dessa dimensão imaginária, inevitavelmente presente, com maior ou menor intensidade, na relação com o outro.
Cabe perguntar, neste ponto, se tal disputa imaginária seria o fundamento do ódio. Lacan nos diz que “Existe uma dimensão imaginária do ódio na medida em que a destruição do outro é um polo da estrutura da relação intersubjetiva” (LACAN, 1983, p. 85), e acrescenta que “o ódio não se acalma com o desaparecimento do adversário” (LACAN, 1983, p.322). Quer dizer, não adianta querer resolver o ódio no plano imaginário da disputa, porque, de um lado, nesse plano o outro adquire o lugar de um adversário muito consistente e, enquanto continuar colocado nesse lugar, o ódio não se acalma, muito pelo contrário, só se realimenta, porque o adversário é sempre ameaçador. De outro lado, não adianta querer resolver o ódio no plano da disputa imaginária porque se na relação com o outro o sujeito se deparou com a frustração do seu ideal e da sua própria imagem, isso engendra uma tensão destrutiva máxima.
Coloco um exemplo clínico: M. consulta porque a relação com os irmãos tem se tornado insuportável pelo grau de agressividade gerado no interior da relação. No seu relato inicial era evidente que ele estava no lugar do injustiçado, maltratado pelos irmãos mais velhos. “Não sei porque eles se comportam desse jeito comigo. É insuportável. Me faz sofrer porque chego à conclusão de que eles me odeiam e eu não quero odiar os meus irmãos, mas eles me odeiam”, ele disse. “Eles estão o tempo todo numa guerra comigo e já não há lugar para tratar coisas urgentes que precisam de uma solução”. Sem entrar em detalhes, posso dizer que esses irmãos tinham que resolver uma questão de herança depois da recente morte do pai.
Nessa situação específica sobre o destino do investimento da herança, este sujeito tinha uma posição diferente dos irmãos. “Eles não vão me convencer a mudar de opinião. Eu não vou dar o braço a torcer”, ele repetia. Do ponto de vista da ética psicanalítica aqui não se tratava de pacificar a relação fraterna pela via de “dar o braço a torcer”. A psicanálise nunca foi nem será uma disciplina da submissão à perda nem um forçamento da aceitação da falta. Isso seria enredar-se na ética da resignação que só faz o ódio perdurar e manifestar-se através de condutas sádicas fantasiadas de amor ao próximo.
Do que aqui se tratava era de se fazer um lugar de escuta para que algo do insuportável para este rapaz pudesse se colocar. A proposta que os irmãos faziam com relação ao destino da herança não era nenhuma loucura e a proposta que ele colocava também não. Não era disso que se tratava e, de algum modo, ele se dava conta. Até que, numa sessão, uma frase que saiu de improviso e que o surpreendeu, jogou luz nesse impasse: “Eu sei que minha proposta seria a proposta do meu pai”, ele disse. “E você, como sabe?”, perguntou o analista. “Porque eu sou o filho que sempre soube como deixar meu pai satisfeito”, ele respondeu. “Sempre?”, interrogou o analista. Esta intervenção o surpreendeu e o deixou sem palavras por alguns minutos, pois nessa, sua intervenção ficou em evidência o plano imaginário em que essa discussão com os irmãos estava colocada. Nessa ocasião, ele lembrou que o pai lhe dissera, depois de uma briga com sua mulher que suspeitava da fidelidade do marido: “Você é o único que me compreende nesta casa”. De fato, ele tinha assumido a defesa do pai perante as suspeitas da mãe que, na ocasião, fora apoiada pelos outros filhos.
Quer dizer, a própria imagem de filho que sempre soube satisfazer o pai estava no centro do conflito com os irmãos. Era essa imagem que ele tinha que defender, não o destino da herança que, diga-se de passagem, ele nunca pensou que corresse perigo. Depois de ter se escutado falando sobre aquele episódio, começou, na análise, um momento de elaboração de um luto, não só pela perda do pai, mas, acima de tudo, pela perda desse ideal de ser o filho preferido que sempre soube como satisfazer o pai. Foi assim que na análise ficou claro que essa posição fantasmática de ser o filho que não deixaria o pai em falta tomava outras dimensões da vida do sujeito. Por exemplo, a dimensão amorosa. Sua relação com as mulheres estava fortemente marcada pela fantasia de que as mulheres que ele escolhia seriam as mulheres que o pai escolheria para si mesmo. Desde que começara a interessar-se pelas mulheres, sempre pensou que concorria com vantagem em relação aos irmãos porque as suas namoradas eram mais bonitas que as namoradas deles e porque, certamente, as suas seriam as que o pai escolheria. Mas havia um detalhe que devia ser considerado e que muito o incomodava: ele sentia inveja dos irmãos porque eles manifestavam satisfação ao lado das namoradas, enquanto ele não sabia o que fazer com as suas, uma vez conquistadas. Muitas vezes essa inveja deu lugar a atos hostis e de maus-tratos com os irmãos. Ele se satisfazia satisfazendo o pai, mas era infeliz ao lado dessas mulheres que, supostamente, seriam as escolhidas pelo pai.
Se um outro ser falante é capaz de perturbar um sujeito por colocá-lo em contato com seu próprio impensável, com o estranho que o habita, por lançá-lo a uma posição impossível de suportar simbolicamente, é de se esperar que esse outro seja alvo do ódio do sujeito. Mesmo que nos fenômenos da vida quotidiana uma cena possa esconder-se por trás de outra, é fundamental dar-se conta de que o grave na relação com o outro acontece quando a montagem subjetiva é abalada e perturbada pela intervenção desse outro, para além de suas intenções. Nesse caso clínico o que se tornou grave na relação com os irmãos não foi o fato deles não concordarem com a proposta de encaminhamento da herança que o sujeito fazia. Não era a racionalidade da proposta sobre o destino da herança o que estava em jogo. Não era essa a cena que importava, embora parecesse que sim. O grave para este sujeito era que a posição diferenciada e majoritária dos irmãos não permitia a esse rapaz continuar sustentando sua montagem de ser, seu ideal de ser o filho que sempre soube satisfazer o pai. Em outras palavras, o grande perigo do conflito imaginário não é a derrota em si, mas a dissolução da montagem subjetiva do ser. É por isso que Lacan afirma que o simples desaparecimento desse outro perturbador não representa uma solução eficaz contra o ódio, se a montagem subjetiva do ser já foi atingida. O ódio continua, mesmo assim. Talvez por isso seja tão comum buscar a humilhação pública ou a degradação do outro odiado, como forma de destruir esse outro capaz de representar para quem odeia, mais do que a sua derrota, sua perda de ser. Odeio quando sinto que o outro, querendo ou não, desmontou minha imagem ideal, e isso faz com que eu me depare com minha falta-em-ser, que me depare com a precariedade do meu ser. Em outras palavras, que me depare com a minha castração. Nesse ponto o ódio é uma carreira sem limite. Há, portanto, algo ilimitado que me habita que a relação com o outro que fala põe em ação, para além das suas intenções. Numa análise, o que fazemos é localizar e delimitar esse ilimitado visando que o sujeito saiba fazer algo com isso, algo diferente do que estragar-se a vida e o laço com os outros.
Talvez, porque no reino animal o ilimitado não existe porque está regulado pelo instinto, talvez por isso o indivíduo derrotado na luta pelo domínio territorial pode encontrar um bom lugar na comunidade sem ficar alimentando vinganças e reações hostis.
Nessa mesma linha de raciocínio, também podemos dizer que nada concentra mais ódio no ser falante, que esse dizer que irrompe na própria fala como algo não planejado, como uma presença que introduz a dimensão da verdade que o sujeito desconhece e da qual nada quer saber. A irrupção desse dizer inesperado é o que muitas vezes nos faz dizer “Não pode ser que eu disse isso!”, deixando transparecer a perturbação que nos gera a manifestação do estranho que nos habita e ao qual repudiamos. No caso do rapaz do caso clínico foi essa frase que irrompeu, “Sempre soube deixar meu pai satisfeito”, que introduziu a dimensão da verdade de sua rivalidade com os irmãos pela preferência do pai. Assim, a posição de irmão injustiçado, odiado, vítima da maldade fraterna do primeiro tempo da análise deu lugar a um rival decidido a ser o filho preferido do pai a quem ele, supostamente, nunca iria deixar em falta.
Coloquei este caso clínico porque me parece um bom exemplo de como a carreira do ódio, que pode acabar no ato violento, poderia ser contida com a criação de espaços nos quais algo funcionasse como significantes da lei que dá uma orientação ao que excede desmontando a ficção do “eu sou”. Acima de tudo porque aí onde “eu sou”, não penso. Isto constitui, aliás, um princípio geral da prática psicanalítica desde que Freud opôs a fala ao ato. Enquanto a fala conduz à rememoração, afirmava Freud, o ato faz um curto circuito e, literalmente, realiza o que deveria se rememorado. Neste sentido, Lacan disse que o que pode produzir-se numa relação inter-humana são a violência ou a fala. Nos dias de hoje, em tantas situações, pareceria que a fala está impossibilitada criando, então, lugar para a violência.
E aqui chegamos ao ponto das condições atuais da cultura ocidental onde o que hoje parece se impor é um recuo da função pacificadora do simbólico, recuo que deixa o ódio, e a agressividade que dele pode surgir, deslizando sem referências até o limite do suportável pela fala. Para além desse limite, o ato violento.
Um colega psicanalista da Escola Lacaniana de Psicanálise, da Espanha, Jorge Alemán, que tem vários livros publicados sobre a relação da psicanálise com a Filosofia, sustenta uma ideia muito interessante sobre esta contemporaneidade. Ele diz que o neoliberalismo constitui um novo tipo de racionalidade que vai se tornando incompatível com as tradições liberais modernas sustentadas na crença na lei. Ele tem a hipótese de que a característica mais notável do neoliberalismo é a transformação do ser falante, mortal e sexuado, em um ente considerado, tão somente, como “capital humano”, submisso ao imperativo da permanente auto superação, capaz de se auto avaliar ilimitadamente e que pode prescindir dos outros na sua carreira para o sucesso. Neste cenário onde a subjetividade se torna “capital humano” e os outros potenciais adversários, todos os pactos, os procedimentos, os contratos sociais e institucionais que constituíram a democracia moderna ingressam aceleradamente em um processo de liquefação, reduzindo a democracia e suas instituições a meros simulacros que progressivamente vão perdendo sua eficácia simbólica com os consequentes efeitos subjetivos. Um desses efeitos pode ser sintetizado numa palavra de ordem do tipo “salve-se quem puder”, quer dizer, um modo de assinalar a quebra dos laços solidários que visam um saber fazer com a diferença, um saber fazer que não é a segregação. Aludindo a uma frase da professora de Ciência Política da Universidade de Berkeley, Wendy Brown, Jorge Alemán disse que o neoliberalismo se assemelha mais ao cupim do que ao leão, porque sua degradação começa pelo interior do edifício com a constância, velocidade, ferocidade e eficácia de um dispositivo que já nem sequer precisa de políticos competentes que tenham alguma noção de Estado e de perspectiva histórica. Quer dizer que a eficácia da dominação neoliberal sobre a subjetividade consiste, justamente, no empobrecimento ou, definitivamente, na ausência de uma significação, mais ou menos estável, ausência esta que deixa o sujeito sem outro relato que o de “ser gerente de si mesmo”, “ser empreendedor de sua vida”, ser um obediente incondicional a um imperativo feroz de sucesso que, irremediavelmente, deixa o ser falante na borda da catástrofe subjetiva e transforma a vida mesma numa “vida matável”, numa “vida sacrificável”, sem luto nenhum para ser feito. Esse ideal neoliberal, que uma linha sociológica chama de “individualismo de massa”, empurra o sujeito ao silêncio da auto satisfação autista e à ruptura do laço com o outro.
Vejamos, então, que não é tanto que a lógica neoliberal vise o ódio como objetivo de sua operação, quanto que essa lógica produz efeitos devastadores na dimensão simbólica, deixando o sujeito exposto à ferocidade dos imperativos de gozo da época, gozo sempre autista e tirânico que pode encontrar no outro semelhante, ora um obstáculo para a sua realização, ora um alvo para seus excessos. Um dos nomes desses efeitos devastadores na dimensão simbólica é a segregação, mais especificamente, a segregação do sujeito da palavra. Talvez, um dos sintomas sociais que melhor expõem as consequências do ser falante ser segregado da palavra possa ser localizado no campo da política.
Hoje constatamos no dia a dia da vida comunitária que a política, enquanto solução para lidar com o impossível que, habitando em cada um de nós, habita a relação com os outros, tem se degradado. Uma das manifestações alarmantes desse momento é que, em lugar de se fazer política, se difama, se humilha, se insulta, provas do ódio ter ultrapassado a borda da lei simbólica. Na orientação do Campo Freudiano sustentamos a ideia da política como uma resposta produzida no interior do laço social perante o impossível de se complementar, de se articular harmoniosamente, idilicamente, sem atritos, nem arestas, sem impasses nas relações entre os seres falantes. Ai onde reina o abismo entre minha singular vontade de satisfação e a singular vontade de satisfação do outro, só a política pode se constituir como uma solução para não se impor a destruição do que não se encaixa nessas vontades singulares e individuais. Esse é o desafio da democracia: produzir soluções aí onde o impossível de se complementar se faz presente. Clausewitz já disse que a política é a continuação da guerra e na psicanálise pensamos que a política é o recurso para não dar continuidade à guerra.
Pensemos, só um momento, nesta ideia: a política é a forma de não dar continuidade à guerra, quer dizer, a guerra para a humanidade chegou antes da política. Essa ideia nos remete ao que Freud já dissera, em 1915, acerca de que o ódio seria mais antigo que o amor.
Contudo, o que me interessa destacar é a potência que a política pode manifestar na produção de feitos pacificadores na sempre conturbada convivência entre os sócios da sociedade humana. Às vezes, a política falha.
Nos dias de hoje nos deparamos que o próprio do individualismo de massa contemporâneo é rejeitar fazer a política sem medir as consequências que isto pode ter na sempre frágil convivência humana. Assim, a racionalidade do individualismo de massa alimenta a confusão que existe entre o fazer a política e a falta de ética de tantos sujeitos que se apresentam como políticos, mas que não fazem a política porque só perseguem a satisfação individual, sem negociações que impliquem em algo ceder da própria satisfação. Quem nada quer perder não faz política e torna impossível o laço com os outros. O vazio na política nos deixa expostos ao pior de cada um de nós, isto é, nos deixa expostos ao impulso a submeter, controlar, explorar e até mesmo eliminar o outro diferente. A racionalidade do neoliberalismo rejeita o saber lidar com a diferença e, portanto, rejeita a negociação, rejeita perder para algo ganhar, enfim, rejeita o fazer política e, desse modo, dá lugar à agressividade com relação aos outros que demostram ser diferentes nos seus desejos, nas suas aspirações, nos seus modos de satisfação, enfim, agressividade com relação a todos aqueles que, por não gozarem como o amo goza, são repelidos, rechaçados, isto é, odiados. Ódio ao que não se compreende por ser diferente e que pode adquirir as formas do racismo, da violência contra o opositor político, contra as mulheres, os homossexuais, os transgêneros, os negros, os índios...A lista é comprida.
Constatamos, então, nos tempos que correm, que um empuxo totalitário ao “Todos iguais!” se infiltra na cultura e, assim, se impõe silenciosamente esse imperativo que nos faz detestar e segregar qualquer resto, qualquer diferença que não se submete ao imperativo do “Todos iguais!”, isto é, a segregação do singular de cada um, esse resto inassimilável no qual os psicanalistas apostamos porque é sabendo fazer com esse resto que nos singulariza que podemos visar uma vida digna de ser vivida por cada um com alguns outros, a partir das soluções que cada um inventa para poder fazer algo com isso que o torna radicalmente diferente. Essa é a política que há que se saber fazer para poder conviver na polis. Digo na polis, não no paraíso.
Digamos, então, que do ponto de vista da ética da psicanálise, saber fazer a política abre a possibilidade de desejarmos que a sociedade humana seja algo diferente de uma sociedade de formigas, do formigueiro, onde todas as funções já estão definidas por instinto e nenhum individuo ousaria jamais sair fora do já estabelecido. O formigueiro é o sonho dos ditadores e é o pesadelo dos que apostam no desejo por uma vida em democracia, com todas as incertezas e turbulências que ela possa apresentar. Uma sociedade humana que funcione segundo as leis do formigueiro é o sonho dos inimigos do gênero humano.
[1] Conferência apresentada na I Jornada de Pesquisa do LAPCIP – Laboratório de Psicanálise, Processos Criativos e Interações Políticas – da UFSC, em maio de 2018.
REFERÊNCIAS
LYRA, R. Camargo, C. Ódio, um sentimento lúcido. In: ______. Ódio, segregação e gozo. Rio de Janeiro: Subversos, 2012.
FREUD, Sigmund. Pulsões e destinos de pulsão. In: ______. Escritos sobre a psicologia do inconsciente. Rio de Janeiro: Imago, 2004. v.1, p.133-173.
LACAN, Jacques. O Seminário, livro 2: O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
_______. O Seminário, livro 1: Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
MILLER, Jacques-Alain. Política Lacaniana. Buenos Aires: Colección Diva, 1999.