TEMPO, DESEJO E ATO
 

Liège Goulart
Membro da EBP-Seção SC e AMP
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rua
the art of life - reginaldo cardoso

“Teus olhos regressam de um país arbitrário onde nunca ninguém soube o que é um olhar.”
Paul Éluard

Trago aqui algo sobre “a erótica do tempo” (MILLER, 2000, p.11-79) em sua relação com o desejo e com o ato. Falar do tempo como de uma erótica já coloca de saída que a experiência do tempo é uma experiência libidinal e, portanto, situa a posição do sujeito na relação com o Outro. A libido aqui evocada será a que se articula ao traumático e promove uma descontinuidade em relação ao tempo: um tempo presente que, atravessado pelo tempo da retroação, atualiza uma significação inconsciente. Tem-se a impressão de que “estava escrito”, mas trata-se de uma construção lógica, libidinal, que produz o efeito de surpresa e traz a marca da imprevisibilidade. Há libido no tempo que retroage e, nessa dimensão libidinal, há a atualização de um acontecimento passado pelo movimento de retroação de um acontecimento presente.

Decidir-se a concluir algo sobre si ou sobre o outro implica sempre uma questão de tempo, uma suspensão do tempo. O sujeito, muitas vezes, se detém na dúvida, em cada passo ou “despasso” (mau passo) que dá em seu tempo de viver. Porém, em alguns momentos dessa existência, uma conclusão adquire uma tal força que um ato é dela uma imposição. Vou chamar de ato, no sentido psicanalítico do termo, aquele que muda um arranjo subjetivo, que implica – certeiro – uma resposta outra a uma vacilação fantasmática revirando uma posição de gozo. Embora presentifique um ponto de separação, é preciso passar pelo campo do outro para que possamos falar em ato. No entanto, sabemos que o falasser se constitui a partir de um desconhecimento todo especial da realidade do outro e de si mesmo. Então, qual o saber implicado no ato?

O tempo lógico articula o simbólico ao campo de forças da libido. É a erotização de um tempo de saber em ato em que ver, compreender e concluir dependem de uma tensão libidinal, tocando o inconsciente como real. O tempo lógico não é uma lógica do tempo, mas uma lógica do ato.

No sofisma dos três prisioneiros (LACAN, 1998, p. 197), não é a certeza lógica que produz a conclusão, mas é o ato de conclusão que verifica uma particular certeza a partir da qual o sujeito pode fazer uma afirmação sobre si. O ato incide sobre a tensão temporal, desregula a dimensão do tempo e permite que o tempo de compreender – que poderia ser infinito – seja absorvido pelo momento de concluir que absorveu também o instante de ver, atravessando-se o umbral em que o sujeito é pura evanescência.

A certeza que produz o ato é uma certeza sem verificação anterior. Ela desampara o sujeito, pode horrorizar o menos tolo e, por isso, muitas vezes, o sujeito recua diante do ato, estendendo o tempo para compreender. A presença da angústia denuncia “a hora da verdade”, pois o ato situa, em seu cerne, a questão do desejo.

Um ato se localiza no ponto contingencial do encontro com o S(Ⱥ), um encontro contingencial com a demanda do Outro, um enigma não somente ao nível do significante, mas ao nível do gozo: uma falta no Outro articulada à libido. A suspensão implicada nos tempos do ato é um tempo de espera, de pausa. E sabemos o quão devastador pode ser o tempo da espera quando essa espera significa uma espera no campo do outro. Ou se faz um ato, ou se fica preso no tempo, ops!, na demanda, do outro.

Um ato se faz a partir do campo do sujeito e faz um corte nos tempos da espera que não permitia concluir. “A precipitação, a pressa, a aceleração temporal que antecedem o ato indicam a entrada do sujeito numa zona de radiação máxima do objeto a, com seus efeitos de desregulação do tempo”. (MANDIL, 2001).

Essa é a lógica do ato que se liga à economia de gozo e se dá em três tempos: o instante de ver, o tempo para compreender e o momento de concluir.

A função da pressa é isso que faz com que o sujeito não hesite mais que o necessário para que um ato possa ter lugar. “A vida de um homem é só o tempo de se contar ‘um’”. (SHAKESPEARE, 1996, p. 127).

A parada necessária para que um ato seja ato não se refere somente ao que o sujeito vê do outro e da realidade desse outro, mas ao que o sujeito descobre por aquilo que não vê. Há um ponto de mancha no olhar (em que o sujeito não vê que não vê, que é o objeto olhar, o mais oculto da visão) onde o objeto olhar, como causa, se destaca e manifesta a coordenada libidinal do sujeito. Se há esse tempo de parada e se há uma descoberta ali – precisamente, onde não se vê – é porque se trata de significantes e, portanto, inclui o que o sujeito vê e o que ele não vê. Esse clarão do que não se vê ilumina o instante de ver, como uma fala analisante que tenta dar conta de um ato de separação: “Hoje, ao sair dali, obtive a certeza do que vi, por não ver, há tempos atrás”. Essa frase, tão surreal quanto o verso de Éluard, esclarece que o melhor que se pode ver e saber, da relação entre olhares, parte justamente do ponto de mancha no olhar, essa presença, pois é ali que o vivo da causa cumpre sua função. Por isso o olhar é sempre alguma coisa que rasga, que golpeia. Ele é feito de significantes e inclui o que não é significante e nunca será. O punctum1 é o detalhe que atrai, é a presença pungente (BARTHES, 1984, p. 46), concerne à posição do inconsciente e à esquize do olho e do olhar.

A conclusão está lá, sincrônica ao instante de ver, mas não sem o tempo para compreender.

Quanto tempo? Toda uma vida, às vezes. Um frágil instante, em outras, mas ao preço de se saber que não se sabe sobre si, é ao preço de um des-ser: o ato é correlativo de um desaparecimento do sujeito que ali não se faz representar por nenhum significante. Nesse ponto, se está só.

O desejo é sua interpretação (LACAN, 2016, p. 18-19). Não há interpretação no ato. Trata-se de uma verdade sem saber. Mas é de nosso desejo que ela diz, como causa, fora do sentido. Há uma direção libidinal, uma erótica, cujas coordenadas implicam uma história mas apontam para um ponto “fora da linha”. Trata-se de um desejo que tem efeitos de real, que ex-siste ao saber e é causa singular, encarnada.

Poderíamos dizer que só existe verdadeiramente o momento de concluir em ato, pois ele contém e captura os outros tempos “para que não haja demora que gere o erro” (LACAN, 1998, p. 207). Quanto tempo? Um lapso de tempo, antes que um sentido se aloje e fixe o sujeito, impedindo o ato.

A surpresa e a espera são experiências que desregulam o tempo, afetam o corpo e, portanto, incluem uma erótica.

A pressa, a urgência, apresentam-se logicamente e a instantaneidade empurra para uma nova resposta à pulsão, ao evocar esse tempo libidinal, pulsional, experimentando no corpo o que era antes a opacidade do gozo. (SANTIAGO, 2005). Por visar ao seu atributo, por ele mesmo ignorado, o sujeito atinge uma verdade que só poderá ser verificada se ele a atingiu primeiramente na certeza antecipada. Mas ele não a atinge, no entanto, a não ser através dos outros.

Não é por uma contingência dramática que possa estar em jogo ou porque o tempo urge que o ato se impõe, mas pela urgência do movimento em função da causa que precipita. A singularidade do ato é se antecipar a sua certeza numa urgência lógica que produz a descarga da tensão em ato – e não em saber – e cuja surpresa inaugura um corte e ao mesmo tempo um novo infinito atual.

O sujeito é sempre responsável de seu ato, pois ele contém em si uma lógica que não desconhece o insuportável: se é na pressa que concluo, nem por isso deixo de ser responsável pelo inominável, pela Coisa que me habita. (VIDAL, 2006).

Um ato, se ele é um, tem a fulgurância de um instante, a força que dirige um desejo, a lâmina que corta um ponto de gozo, a fragilidade do ser na angústia e pode convocar o sujeito ao amor ou mesmo à sua interrupção.

É extraordinário.


NOTAS 

1 “Em latim existe uma palavra para designar essa ferida, essa picada, essa marca feita por um instrumento pontudo; essa palavra me serviria em especial na medida em que remete à ideia de pontuação [...] pois o punctum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte – e também lance de dados. O punctum [...] é esse acaso que [...] me punge”.

 REFERÊNCIAS 

BARTHES, R.  A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

BRODSKY, G. O princípio de imprevisibilidade.  Opção Lacaniana, São Paulo: Eolia, n. 37, p. 40-49, set. 2003.

ÉLUARD, P. L’égalité des sexes. Disponível em: <https://poemasenfrances.blogspot.com/2005/12/paul-eluard-lgalit-des-sexes.html>. Acesso em: 20 ago. 2018.

LACAN, J. O Seminário. Livro 6 – o desejo e a sua interpretação. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.

_______. O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada. In: ______.  Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 197-213.

MANDIL, R. Tempo e o ato analítico. Ornicar?, Paris: AMP, n. 157, fev. 2001. Disponível em: <http://wapol.org/ornicar/articles/ 157man.htm>. Acesso em: 20 ago. 2018.

MILLER, J.-A.  A erótica do tempo. Latusa. Rio de Janeiro, Escola Brasileira de Psicanálise, n. Ed. Especial,  2000.

SANTIAGO, J. A sessão lógica: extrair o tempo de sua duração. Opção Lacaniana online, São Paulo, n. 1, mar. 2005. Disponível em: <http://www.opcaolacaniana.com.br/antigos/n1/pdf/artigos/Sansessao.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2018.

SHAKESPEARE, W. Hamlet. [Ato V, Cena II]. Tradução de Millôr Fernandes. Porto Alegre: L&PM, 1996.

VIDAL, P. Em tempo: sozinho, mas não sem os outros. Latusa Digital. Rio de Janeiro, v.3, n.23, jul. 2006. Disponível em: <http://www.latusa.com.br/pdf_latusa_digital_23_a1.pdf>.

Resumo: O texto aborda a imbricação dos conceitos de tempo, desejo e ato que, em psicanálise, implicam numa lógica indissociável do campo de forças libidinais, portanto, de uma erótica. O tempo lógico, para Lacan, é uma lógica, não do tempo, mas do ato que, por sua vez, se impõe a partir da causa do desejo em jogo.

Palavras-chave: Tempo. Desejo. Ato. Erótica. Des-ser.

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